Scorn — o corpo como prisão perpétua de carne | Análise

Scorn

SCORN é um “suposto” jogo de survival horror de estética biopunk desenvolvido pela sérvia Ebb Software, financiado inicialmente em 2014 pelo Kickstarter com a intenção de ser lançado em duas partes (voltaremos a esse detalhe), até ser apoiado por investidores privados em 2015 e, então, anunciando que ambos os capítulos seriam fundidos em um único jogo em 2018.

“Neste mundo somos jogados

como um cão sem seu osso”

Riders on the Storm” (1971), The Doors

Scorn como “jogo”

É engraçado como certos jogos poderiam se beneficiar muito mais se simplesmente aceitassem a sua intrínseca simplicidade. Adianto minha opinião: NÃO TEM PROBLEMA um jogo ser meramente um “walking simulator”. Não tem problema ser um jogo de aventura sem combate. Não há necessidade para rejogabilidade infinita se a experiência primordial for marcante e significativa o suficiente para o jogador.

Mas eles TINHAM que forçar no conteúdo. Afinal de contas, Scorn é um “jogo”, não é?

Já vi ele ser comparado múltiplas vezes com Myst, por exemplo, por conta de sua natureza complexa, não-linear, recheada de puzzles a serem resolvidos sem ordem em particular. Também me lembrou bastante Tormentum – Dark Sorrow, que também se aproxima das artes oníricas e surreais de Beksiński. Concordo com essas ligações.

Até aí, Scorn também me lembrou muito dos cenários e da arquitetura presente nas fases posteriores de Portal 2. A desolação, os espaços liminares, as conquistas arquitetônicas colossais que um dia serviam para atingir enorme progresso e que agora só são restos de maquinarias enferrujadas executando tarefas em loop – com uma pitada da direção de arte inspirada em Giger e Beksiński, claro.

O problema é que ao se propor ser muito mais que um mero museu digital, como por exemplo foi a experiência Kid A Mnesia Exhibition do Radiohead, você também se propõe a criar uma estrutura de puzzles e caminhos suficientemente cativantes para serem trilhados, já que a experiência do jogador entra na equação e vira uma preocupação a mais para o estúdio.

Falando da posição de “veterano em Resident Evil™“, todos os puzzles apresentados são belíssimos, mas sofrem igualmente de conceitos extremamente simples e tediosos, todos muito fáceis e propositalmente lentos de se resolver, tentando então se sustentar unica e exclusivamente com suas maravilhosas animações e uma sonorização intoxicantemente grotesca.

Enquanto mundo, a inexplicável dimensão de Scorn é nojenta e encantadora, mas navegar nele sem o mínimo de auxílio (como uma interface, um mapa ou até pontos de interesse) é a receita para o caos, resultando em muitas das frustrações expressadas por jogadores internet afora. É o primeiro de dois grandes elementos que “estragaram a experiência” de muitos.

Não me entenda errado, a presença de uma interface completa demais com bússola, minimapa e pontos luminosos em toda a glória do estilo Ubisoft completamente destruiria todo e qualquer senso de imersão que o jogo oferece, mas ainda há algumas soluções que poderiam ser exploradas pelo estúdio de forma mais sutil.

Por fim, o segundo grande problema foi o combate. Apesar de eu ser fã de survival horror, com seus controles geralmente terríveis e arrastados, acredito que os confrontos foram inacreditavelmente chatos e relativamente injustos (você morre com muita facilidade no jogo).

Scorn como arte

Toda a produção foi fundamentalmente inspirada nas obras de dois artistas: o suíço H. R. Giger, particularmente creditado pelo design dos xenomorfos de “Alien: O Oitavo Passageiro” (e pelo estranho erotismo presente na semiose de suas artes), e pelas obras de realismo fantástico do polonês Zdzisław Beksiński; também identifiquei óbvias inspirações no cineasta canadense David Cronenberg, o “Rei do Terror Venéreo” responsável por encabeçar o controverso, asqueroso e maravilhoso movimento de “body horror” ou “horror corpóreo, horror biológico” de Hollywood.

Mal começamos esse capítulo da análise e já se tornaram incontáveis as inspirações que trouxe à tona. É essa a sensação que tive com Scorn: a de analisar cada peculiaridade e de me enfiar em cada orifício de seu universo na esperança de encontrar inspirações e significados. E é por isso também que me sinto na necessidade de ensinar ao leitor um pouco da magia por trás do gênero de horror biológico – ou, ao menos, explanar um pouco sobre minhas interpretações dessa linha de raciocínio.

Se entregar sem questionamentos às palpitações meladas das incompreensíveis bio-maquinarias de Scorn é possivelmente a melhor forma de experienciar o jogo – ou qualquer obra de horror biológico, pra ser sincero. Não ficar buscando justificativas ou forçando racionalizações sobre como o universo terminou daquele jeito, ou como tudo funciona por trás das ligações viscerais feitas de músculos e terminações nervosas, é essencial para inteiramente vivenciar muitas dessas criações.

No fim das contas, nada faz sentido. E nada precisa fazer.

É isso que encanta alguns e afasta outros das obras de David Cronenberg, como The Fly (1986), eXistenZ (1999) ou o mais recente Crimes of the Future (2022): roteiros que giram em torno de relações parasíticas, mutações transhumanistas e doenças infecciosas viscerais pouco importam se você não considerar a perda ou degeneração da humanidade como ponto central no roteiro, um foco principal na vida dessas pessoas. Acredito que esse é o fragmento fundamental para apreciar o horror biológico, que é compreender o estado de “ser humano”.

Esses moldes de pensamento dentro dos quais a estética cronenbergiana opera não são mera fachada para seus filmes: em 2022, como forma de promover um dos conceitos explorados no filme Crimes do Futuro, o cineasta comercializou NFTs de 18 pedras retiradas dos seus rins, numa performance batizada “A Beleza Interna”. Em outro curta, intitulado “A Morte de David Cronenberg“, o artista se depara isolado num quarto com uma réplica hiperrealista de seu corpo, uma espécie de cadáver surreal. Cronenberg se aproxima, beija sua testa e se deita abraçado… “consigo mesmo”.

A filosofia das artes de Cronenberg (assim como similarmente se discute a validez da violência excessiva nos trabalhos do Tarantino) é explorada como algo que vai “para além da mera violência” e tenta explorar outras perspectivas do significado da dor, do sofrimento, da vida e da morte, indo até os limites do que é considerado “humano”, dentre outros temas que também tentei discorrer sobre na minha análise de Crimes of the Future.

Um último paralelo que tracei entre o jogo e o filme “eXistenZ” é o design da pistola de ossos que dispara dentes, na qual acredito ser bem similar à pistola que adquirimos no jogo. Mas enfim, paramos por aí. Já estou divagando demais do assunto em si, que é o próprio Scorn.


Você deve estar se perguntando o porquê de eu dissertar tanto sobre essas tantas inspirações. Você se lembra de quando comentei que o jogo era para ser dividido em dois capítulos, duas “versões”? Percebeu quantas pessoas na internet já acusaram Scorn de ser “divisivo” e “inconsistente”? Pois é, vamos descobrir o porquê já já.

Infelizmente (e digo isso com real, profundo pesar), o jogo não se limita apenas às interações com dispositivos ósseos e interfaces biotecnológicas compostas por músculos e carne exposta. O jogo não se resume exclusivamente à catatonia dos personagens e inimigos berrando de dor, asfixiados, acorrentados à excruciante dor de suas existências deformadas, brutalmente desmontadas e remoldadas por máquinas como se fossem brinquedos de massinha.

O tempo todo nos perdemos no delírio delicioso de Scorn, contemplando as espetaculares façanhas arquitetônicas inspiradas na mente do brilhante Zdzisław Beksiński. Arquiteturas inexplicáveis, oníricas, surreais, que contemplam o apodrecimento do mundo através de paisagens secas e mortas até a infinitude do que o olho consegue ver.

Não, Scorn não é só sobre isso. Não é um ode ao movimento biopunk, como a infernal carcaça do computador AM que os personagens de I Have No Mouth and I Must Scream devem navegar, ou a eterna deformação da Master of the Super Mutants em Fallout. Não é só sobre a “estética”.

“Scorn precisa ser, também, um jogo”, alguém deve ter dito durante a produção no estúdio Ebb. E foi a partir daí que tudo começou a desandar, como já vimos no capítulo “Scorn como Jogo”.

O significado de Scorn (ou, “há significado em Scorn?”)

ATENÇÃO: este segmento do texto possui alguns SPOILERS; se você quiser evitá-los, pule para a CONCLUSÃO logo abaixo.

O jogo se encerra com um ato final em uma espécie de “céu” (se é que tal conceito existe no universo desgraçado de Scorn). Templos espetaculares inspirados em uma arquitetura gótica com traços do bio-mecano-erotismo esquisito e inexplicável de H. R. Giger começam a vir à tona. A paleta de cores predominantemente vermelha, marrom e preta, visceral e deprimente, sofre uma brusca mudança para tons azulados e arroxeados, quase como se simbolizassem a aproximação ao purgatório, ao sagrado, à figura da Virgem Maria em seu confortável manto azul.

[…] Para a tradição bizantina/ortodoxa, o AZUL do manto de Virgem Maria tem outro significado.

O azul, na iconografia, representa a transcendência, o mistério e o divino. É a cor do céu e, por isso, é vista como uma cor celestial.

O VERMELHO, em contraste, é visto como uma cor terrestre, a cor do sangue.

Fonte: Aleteia
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Já deixei claro que tenho minhas confusões (apesar de suas artes serem incomparáveis e espetaculares) com relação aos temas abordados nas obras de Giger. Você vê, os templos finais do jogo são simplesmente abarrotados de estátuas e figuras explícitas, todas conectadas a prazeres carnais (relações sexuais) ou à concepção de um novo ser (lê-se: estátuas de mulheres grávidas), e é a partir desse tipo de figurativismo que eu parei de tentar interpretar o significado por trás do jogo.

As estátuas de homens com pênis gigantes apontados para o corpo celestial que é o Sol, mulheres de pernas abertas com suas vulvas expostas… Seria sobre o significado da procriação? O momento abençoado da concepção de um novo ser? O ciclo da vida e da morte? Isso sem levar em consideração a cena final do jogo, sobre a qual nem tentarei elaborar uma explicação.

Mas, de novo, para apreciar body horror você simplesmente não pode tentar racionalizar tudo, não é? Só absorver…

Conclusão

Todas as críticas direcionadas ao “jogo” Scorn são absolutamente válidas. O sistema de survival horror, enquanto interessante e visceral, não chega a se comparar com a funcionalidade e estética de um DOOM (2016), por exemplo, apesar de aparentar querer ir por esse caminho. Já o sistema de aventura deixou a desejar, com uma navegação no mínimo confusa e na pior das hipóteses tediosa.

Isso não tira o mérito do marco artístico atingido pela equipe de Scorn, sendo um jogo com boa duração e uma direção de arte inacreditável, espetacular e encantadora. Um jogo que mergulha inteiramente na mentalidade do biopunk foi algo que sempre desejei, e fiquei satisfeito com a experiência apesar de tudo que foi dito aqui. Não me arrependo de nada.

Scorn
(Foto: Divulgação)

Uma cópia gratuita de Scorn foi concedida para análise no Recanto do Dragão, na plataforma Steam (PC).