A.I.L.A — si[m]ul[acro] s{o/u}b(re)-humano | Análise

A.I.L.A Key Art by Pulsatrix

Trabalhar com desenvolvimento de jogos é uma experiência multidisciplinar, um tipo de arte extremamente complexo, que (em tese) engloba equipes enormes, gordos orçamentos e prazos prolongados. Conquistar uma posição de prestígio na indústria — ou uma de mínima estabilidade financeira — não é privilégio pra muitos. Mesmo assim, estúdios corajosos como a Pulsatrix continuam na luta diária pelo seu lugar ao Sol.

O conceito de A.I.L.A é ambicioso. Samuel é o mais novo testador beta da Inteligência Artificial da Sytekk, responsável por participar de experiências imersivas criadas sob medida para brincar com os medos mais peculiares do usuário. A justificativa é ser uma tecnologia “voltada à cura dos males do corpo e mente humanas”; ou seja, uma espécie de “terapia de choque” que usa experiências imersivas — jogos de Realidade Virtual — para solucionar hábitos problemáticos e traumas não-processados do indivíduo. É parecido com o Animus de Assassin’s Creed, projetado para “acessar o inacessível” dentro das pessoas, seja explorando seu subconsciente (no caso de AILA), seja seu DNA (no caso do Animus).

  • Console A.I.L.A
  • Manual de Instruções da A.I.L.A

A filosofia de AILA, a garota cibernética que conversa conosco entre cada capítulo, é simples: “quanto mais personalizada a história, mais imersiva será a experiência”. É com esse pretexto que nossos problemas éticos começam: a Sytekk considera isso suficiente para que a IA invada toda a sua privacidade ao ler seus históricos, observar hábitos, compreender suas preferências pelo sistema da Casa Inteligente, monitorar seu sono e seu estado de vigília, tudo em prol da “personalização perfeita” à qualquer custo. Ela literalmente engole sua existência e processa essa montanha de dados sem o mínimo de transparência, e ainda resiste e faz gaslighting com voz de coitadinha se você tentar lutar contra seus avanços.

Sacrilégios Semicondutivos — o impiedoso estrangulamento do Mundo Real

O jogo em si possui uma estrutura isekai-esca muito bem delimitada: é um ciclo de acordar e passar um tempo no apartamento > receber uma tarefa qualquer como abrir um pacote enviado por drone, responder e-mails ou alimentar seu gatinho > testar uma nova campanha produzida pela AILA, com sua temática e historieta específica > encerrar o dia de trabalho e ir pra cama. Simples.

O fato da história ser contida exclusivamente ao apartamento de Samuel dá oportunidades de explorar mais sobre o passado e presente íntimos do protagonista, para além de uma construção de mundo que até me surpreendeu pela sua riqueza, visto que o ambiente real ao qual temos acesso é bem limitado. Quarto bagunçado, pilhas de comida estragando na geladeira e uma máquina autônoma que serve vinho dão dicas do funcionamento interno na mente de Samuel, servindo como combustível para as engrenagens do jogo: se a psiqué de Samuel é a tinta, AILA é a pintora e o software é o cavalete, trabalhando em uníssono para criar experiências de terror personalizadas… perdão, quis dizer “soluções neuropsicológicas através do entretenimento audiovisual”.

  • A.I.L.A: quarto de Samuel
  • Entrega da FromSky em A.I.L.A

A.I.L.A se nutre com todo esse fértil contexto para brincar com diversas tropes de horror conhecidas: a mulher perdida na estrada, as criaturas da floresta, o navio fantasma, o abominável mistério sem nome que faz pessoas ficarem insanas, e por aí vai… mas esse “horror” não acontece apenas dentro das simulações. Ele também é sobre o cotidiano de um mundo perdido, que sacrificou tudo e mais um pouco pelo desenfreado progresso tecnológico. Um mundo silenciosamente devastado pelas produtoras de microchips e semicondutores, que secou seus oceanos extinguindo a insaciável sede das colinas de data centers espalhadas pelos continentes. Um mundo onde é normal vermos hackers sequestrando sistemas de Casas Inteligentes para vender dados íntimos em massa; onde temos que lidar com um dia que supera os 50ºC e a noite que chega aos negativos; onde a logística de uma metrópole pode ser interrompida por falhas e até protestos das inteligências artificiais alocadas aos serviços rejeitados pelos humanos.

O medo que todo esse contexto me causa é diferente. É político, é existencial. É sentir que tudo isso pode facilmente acontecer conosco, ainda neste século (!), e o maior horror de todos é pensar que talvez sejamos incapazes de impedir esse apocalipse fabricado pelas mãos da própria humanidade.

Para a sorte da Sytekk, não faltam pessoas com problemas mentais nesse mundo. Talvez estejamos sendo dessensibilizados ao ponto de tornar o fim inevitável.

Colina do Sil[í/ên]cio — o Surreal sequestra o psicossoma

A proposta narrativa de A.I.L.A (o jogo da Pulsatrix) é ser um terror experimental de natureza plástica, se adaptando às demandas-chave que AILA (a inteligência artificial) identifica no usuário. Por mais que esse conceito seja ousado e repleto de possibilidades, ele não chega a seguir os passos ousados de outro jogo com conceito parecido, o Silent Hill: Shattered Memories, cuja cidade se transforma à medida que a campanha é interrompida por sessões de terapia com o Dr. Kaufmann. Lá, por exemplo, as respostas do jogador aos testes e avaliações psicológicas determinam a forma e o ritmo em que o mundo se apresenta, também alterando o comportamento de outros personagens diante de Harry e até mesmo a aparência dos inimigos. Aqui, todas essas interpretações ficam à mercê de AILA, que usufrui mais do conceito de IA procedural como um dispositivo narrativo do que como uma mecânica presente no jogo.

Ah, e uma observação: apesar do jogo girar em torno do polêmico tema do uso de inteligências artificiais, o estúdio assegura que 100% do trabalho foi produzido à mão, por humanos.

Nas simulações de AILA, o significado das adaptações feitas após analisar a individualidade de Samuel é apenas evidenciado no twist final do jogo — um que infelizmente não me agradou, mas não tratarei de spoilers — mas há também a (ineficaz) dica de que há um “sistema de Carma” vigente que ajusta a história de acordo com as escolhas do jogador. Isso joga uma luz ao fato de que há mais de um final… e acredite em mim, há mais finais do que você imagina, o que juntamente dos troféus interessantes torna a rejogabilidade minimamente atraente.

Mas, de resto, não há divergências significativas ou alterações dinâmicas que façam a narrativa ser considerada “emergente” ou adaptável entre cada playthrough. A história tem uma base forte e interessante, mas a execução, apesar de boa, acabou pecando por ser mais segura do que precisava, dependendo demais de elementos como as escolhas cármicas que particularmente não me agradaram, pelo fato de que suas escolhas sofrem com uma falta de clareza com relação às verdadeiras intenções e consequências relacionadas.

Apesar do potencial imenso, quase infinito dos temas abordados em A.I.L.A, há a sensação de que as possibilidades de escopo maior foram sufocadas pelo fato de ser um estúdio indie brasileiro com orçamento limitado, assets com diversidade de design limitados e uma atuação de dubladores inflexível, particularmente o de Samuel, que infelizmente sofreu demais com a “síndrome de voz do Batman”.

Cada historieta das simulações de AILA são vinculados à história pessoal, aos gostos, aos pedidos e feedbacks de Samuel, mas a justificativa das experiências serem da forma que são nem sempre dialogam tão bem com o que se esperaria de uma IA adaptativa como a AILA. A escolha de certos tipos de monstro, ambientações, estilos narrativos e até lições de moral podem até ser pertinentes para um público geral, mas nem sempre são coerentes com o esquema mental que conhecemos de Samuel ao explorar seus hábitos e vasculhar seu apartamento. Se, assim como em Silent Hill, o projeto AILA serve como uma penitência espiritual para indivíduos desafortunados, as escolhas presentes em alguns dos simulacros se perdem ao não serem tão específicos quanto o conceito do jogo propõe.

Ressalto, mesmo assim, que isso não é de todo mal: a qualidade do pacote de A.I.L.A como um todo é surpreendentemente boa, com pouquíssimos bugs significativos e uma notável disposição da Pulsatrix em fazer célere manutenção do título.

No fim das contas o “Terror Psy-tech” da Pulsatrix pode possuir uma uma roupagem interessante e contemporânea, posturando coragem e exalando possibilidades, mas a sua estruturagem orgânica — sua gameplay — não supera ser uma réplica dos moldes de Resident Evil 7 e RE Village (o que não é ruim para mim, sendo fã veterano da série).

  • A.I.L.A Resident Evil reference

“Terror Psy-tech” — a (quase)-nova face do survival horror

Se o complexissíssimo tema de A.I.L.A já não facilitava para a Pulsatrix em termos de desenvolvimento narrativo, outra complicação inerente a qualquer survival horror é a forma como ele é executado. Não se engane: apesar do recente revival observado, esse é um gênero bastante delicado pela forma como precisa equilibrar a “tensão” e a “frustração” dos jogadores. Qualquer erro que balance o pêndulo longe demais para um lado pode fazer com que o jogador acabe largando a experiência, e isso obviamente seria uma grande falha.

Eu disse que esse é um gênero delicado, sensível a deslizes, não? Pois bem, A.I.L.A é uma montanha russa. Uma montanha russa que se explora de forma mais positiva que negativa, mas uma montanha russa de qualquer maneira.

Resumidamente, o survival horror consiste dos seguintes elementos: puzzles (que vão dos interessantes aos insuportáveis), backtracking (totalmente dependente de um bom ritmo narrativo e um level design inteligente), um combate minimamente regido pela gestão de recursos escassos e, por fim, uma boa ambientação que instigue o medo do desconhecido e alimente as paranóias do jogador.

Com exceção de um ou outro, a maioria dos puzzles de A.I.L.A dançam graciosamente em cima da linha do satisfatório, sendo interessantes e inovativos e se encaixando perfeitamente na temática de cada simulação, com uma dificuldade dedutiva bem balanceada. Isso me surpreendeu, até achei alguns memoráveis, mesmo considerando que minha expectativa era de que fossem extremamente difíceis ou completamente feitos para bebês. Já os documentos relacionados não são universalmente prestigiados, visto que alguns possuem uma excelente escrita (particularmente os de literatura fantasiosa!), enquanto outros se perdem em macarronadas de descrições prolixas extremamente entediantes, a ponto de eventualmente me fazer desistir das histórias que contam.

Outro elemento que sofreu foi o level design, e sofreu por uma razão: a estrutura compartimentalizada de A.I.L.A, que engloba simulações com diferentes temáticas (assim como os castelos de RE Village), pretendia trabalhar com diferentes propostas e ritmos de horror, conceito que na prática nunca é fácil de se executar. O problema não residiu nas campanhas mais simples e lineares, mas sim nos capítulos maiores, repletos de salas interconectadas, corredores longos e puzzles que exigiam backtracking, sendo esse outro calcanhar de Aquiles dos survival horrors indies. A ausência de um mapa fez com que alguns segmentos específicos se destacassem pela sensação de serem uma perda de tempo, me forçando a rondar um tempão até lembrar onde-cada-item-encaixa-em-qual-lugar.

Perceba que o problema não foi encontrar a solução de um puzzle, mas sim localizar onde ele sequer fica. Acredite em mim, ter o segundo problema é muito menos frustrante que o primeiro: pelo menos para mim, ficar perdido dói menos que me sentir burro. Talvez seja só minha individualidade falando. Espero que a AILA não leia esse texto.

Complementar ao level design fica a ambientação (particularmente a sonora), igualmente importante, e novamente sofremos com a inconsistência de ideias e de qualidade. Assim como Village, era óbvio que as múltiplas perspectivas de horror não agradariam a todos, mas acredito que a Pulsatrix perceberá que uma das campanhas pecou mais que as outras: carregada com uma sonorização cacofônica e desconexa, a atmosfera de uma simulação específica contribuiu não para um senso de paranoia, mas sim para matar a imersão do jogador e trazer mais confusão do que o medo de possivelmente estar despreparado — algo que, ironicamente, é executado com muito talento em outro ponto do jogo, durante a última campanha.

Por fim, mas ainda muito importante, temos o combate, que em menos de uma semana de lançamento recebeu ajustes e rebalanceamentos fundamentais ajustando o feedback dos impactos balísticos nos inimigos. Nesse aspecto, o jogo optou por fazer o feijão-com-arroz dos Resident Evils em primeira pessoa, oferecendo recursos aos montantes para o jogador lutar contra inimigos básicos e desinteressantes, incluindo chefões com golpes telegrafados e ineficazes, mesmo que visualmente memoráveis. Por alguma razão, o jogo também trouxe uma ênfase inesperada nas armas corpo-a-corpo, algo que praticamente não usei (exceto na simulação Medieval, por motivos óbvios) por conta da câmera trêmula e os timings estranhos de ataque contra os inimigos, algo que ainda pode ser regulado em atualizações futuras com mais opções de acessibilidade.

Conclusão: o terror no “macro” e o horror no “micro”

Sim, A.I.L.A foi um experimento de sucesso para a Pulsatrix. Um experimento verdadeiramente corajoso, um experimento de paixão. Um monumento que apesar de não ter a estruturalidade perfeita, foi criada com um embasamento teórico e um planejamento sólidos e robustos o suficiente pra tirarem do papel o jogo que ele se tornou hoje, e isso eu considero louvável.

Seria injusto da minha parte se eu deixasse de falar que o jogo me agradou mais do que produções de estúdios muito mais robustos e capacitados para a complicadíssima tarefa de se fazer um jogo nessa escala — tô falando de você, Bloober Team — e afirmo que o vislumbre do futuro da Pulsatrix presente nessa obra é de um futuro grande, brilhante até. Se você é fã do gênero survival horror e quer apoiar um estúdio brasileiro nessa jornada, vai sem medo. O que foi entregue provavelmente vai te agradar.

Antes de encerrarmos o texto, vou fazer algo que nunca fiz antes, que é recomendar outra análise de A.I.L.A (essa em inglês) que gostei, principalmente pelas observações sobre a construção bastante detalhada do mundo real visto do apartamento de Samuel. O texto é do Checkpoint Gaming: A.I.L.A Review – Machine-made horrors, man-made machine.

Um dia, meus amigos, veremos o Brasil alcançar a lua. Um passo de cada vez.

  • A.I.L.A referência ao MaxMRM
  • A.I.L.A referência ao Chaves - Bruxa do 71