Em minha primeira contribuição para o Recanto do Dragão gostaria de comentar uma das HQs mais fascinantes que já tive o prazer de ler. Apesar de ser considerada um clássico entre fãs de quadrinhos, creio que não é uma obra muito comentada e mesmo alguns entusiastas podem não a conhecer. Trata-se de Red Son (Entre a Foice e o Martelo no Brasil) publicada originalmente em 2003, escrita por Mark Millar e desenha por Dae Johnson. É uma história de Superman, lançada pelo selo Elseworlds, selo este que conta histórias dos heróis da DC em realidades diferentes da do universo compartilhado da editora – muito embora, recentemente, a DC tenha declarado que todas as histórias já publicadas agora são consideradas oficialmente canônicas, um assunto para outro momento.
A história tem uma premissa básica: e se a capsula do jovem Kal-el tivesse caído não nos EUA, mas sim na União Soviética? Mesmo sendo muito simples este postulado cria um potencial incrível para a imaginação, um potencial que Millar e Johnson souberam explorar muito bem não apenas dando uma interpretação diferente aos heróis, mas criando uma história rica e única. É uma daquelas histórias que nos convencem do poder de significado dos super-heróis e de como suas histórias servem para pensar e repensar o mundo em que vivemos. Uma verdadeira obra de arte entre os quadrinhos.
A Guerra Fria em um Universo DC
A primeira história (trata-se de uma minissérie em três partes) traz o cenário dos EUA, na metade do século XX, sendo alertada pelos jornais e pelo seu próprio presidente de que a URSS tem uma nova e poderosa arma, informação suficiente para piorar o quadro de tensão daquela época. Tudo fica mais misterioso ainda quando o próprio presidente vai às telas falar do que se trata a nova arma soviética: “um super-homem alienígena, coprometido com os ideais comunistas, cuja própria existência ameaça alterar nossa posição como superpotência mundial para sempre…”.
Algo bem dramático, mas convenhamos que a era em questão é, no mínimo, histérica – algo perceptível, mesmo que você não a tenha vivido. Seguindo o anúncio de que a URSS tem essa poderosa arma começam relatos de que o Superman foi visto em diversas partes da América, o que deixa tudo ainda mais misterioso e apavorante para os norte-americanos. Os relatos do homem que pode voar, enxergar através de paredes, emitir raios de calor destrutivo e ainda ter uma força sobre-humana apavoram os ciadãos, que já estavam bastante apavorados com todo o poderio bélico e militar dos soviéticos – vejam só como Millar já deixava a brincadeira muito mais profunda do que as sugestão.
Na história a nave que abrigou Kal-el caiu em uma kolkhoz na Ucrânia e é descoberto por um casal de fazendeiros. Uma vez descoberto pelo governo o super não apenas segue sendo um cidadão soviético, mas acaba sendo um militar de alta patente e principal símbolo da URSS na Guerra Fria, sempre colocando-se ao lado de Joseph Stalin.
Do outro lado do globo (ou da moeda, como preferir) os EUA continua sendo a conhecida potência científica das histórias já escritas, mas nesta sua principal figura é ninguém menos que Lex Luthor, o homem mais inteligente do mundo. Como cientista ele trabalha para o governo americano no desenvolvimento de tecnologias usadas na corrida armamentista. Sabendo da existência do novo super-soldado soviético sua missão passa a ser desenvolver uma arma, ou uma resposta, para combatê-lo.
Bombas de surpresas (ou a falta de um subtítulo melhor)
Não pretendo cometer nenum spoiler aqui pois muitas pessoas ainda não leram Red Son – neste caso um spoiler poderia estragar, mesmo uma experiência de leitura. No entanto posso dizer que as surpresas que a história traz, à níveis de enredo e também de conteúdo gráfico, vão tornando aos poucos a leitura cada vez mais emocionante e agradável. Tente imaginar um Superman como principal representante do governo soviético. Agora, consegue imaginar a Mulher Maravilha nesta história? Se ela estiver nela de que lado estaria e como ela seria? Seria o Batman um dos heróis soviético também? E como seria o papel de um Lanterna Verde nesta história?
As surpresas, como eu disse, também estão no conteúdo gráfico da história. É muito interessante como Johnson desenhou os personagens (creio que de longe é o que mais chama a atenção) e também há uma ambientação fantástica, com profundidade e que evoca o clima de ação necessário. Os desenhos, apesar de bem modernos, não são como os quadrinhos de hoje, digitalizados, lustrosos e brilhantes. Dá para perceber que os desenhos foram feitos com muito trabalho e cuidado.
O maior presente que esta história pode dar ao leitor, de fato, é a reflexão que o mesmo faz dela. Veja, apesar de reconhecer que Millar tenha feito uma boa crítica ao comunismo soviético não sei se é equilibrado dizer que se trata de umas história para combater as ideologias socialistas e comunistas, tampouco defendê-las. Portanto não pense que Red Son trará uma resposta mastigada para alimentar argumentos contra ou a favor de determinadas doutrinas (se quer algo pronto para incrementar seu discurso direita/esquerda procure outra coisa).
Red Son é uma leitura de um dos períodos mais marcantes de nossa história recente e não trabalha apenas com os conceitos de Guerra, EUA e Comunismo, mas também com Tecnologia, Humanidade e, também diria, Universo. Trata-se de uma história para ser lida, pensada, repensada e então relida, quantas vezes possível. Não é a toa que foi indicada ao Eisner Awards de 2004. Se ainda não leu Red Son arrisco dizer que talvez tenha muitas surpresas a cada painel.