Beeswing — entre lares e memórias

Acabo de voltar pra Curitiba. Uma das últimas coisas que fiz antes da minha viagem foi ter jogado Beeswing; e me senti no dever de esperar minha volta pra começar a escrever sobre.

Honestamente, nunca senti “falta de casa”, nunca nem precisei. Nem sabia o que era casa. Até jogar Beeswing.

Beeswing começa em casa — e logo o jogo se transforma em um espelho; um reflexo da infância do protagonista.

Videogames geralmente são enquadrados com a mesma moldura e filmados do mesmo ângulo em boa parte do tempo, pra guiar o jogador e criar uma espécie de “uniformidade” ao longo da experiência.

Em Beeswing, a perspectiva controlável é essencialmente a mesma o jogo inteiro — movimentação omnidirecional em top-down com botão pra interagir com coisas. Já a perspectiva assistível, é volátil, mudando de forma o tempo todo. A caixa de texto dos vizinhos do protagonista são páginas de papel, enquanto a maioria das outras são apenas retângulos pretos com opacidade baixa. A casa do protagonista é um desenho em preto e branco, enquanto boa parte do jogo é colorido em aquarela — tem até trecho feito com massinha. Num geral, Beeswing parece ter sido desenhado por uma criança.

A questão não é a variedade de formas que King Spooner consegue criar com Beeswing — a questão é o quanto ele assalta o fluxo do jogador em suas obras pra transmitir alguma ideia.

Em Sluggish Morss, é o estudo do ser; em Dujanah, a própria morte, mas e em Beeswing?

Considerando toda sua variação de perspectivas e estrutura de museu/tour não-guiado, você nunca sabe pra onde vai olhar na próxima tela — tradicionalmente, com seus controles de movimento e a ideia que ele traz de “explorar sua cidade natal”, a perspectiva de cima pra baixo provavelmente constataria a maioria das fases como campos abertos ou coisa do tipo, e Beeswing até tem esse tipo de interface — mas as vezes o diálogo cobre metade da tela. As vezes o protagonista tem como espaço uma televisão. As vezes você só pode andar pros lados. As vezes a câmera se afasta pra contar alguma história.

Dentro dessa dinâmica, Beeswing costura uma lente atípica pra abordar a ideia de “lar, doce lar” porque, ao invés de construir tudo em prol da familiaridade do mundo pro jogador, as coisas funcionam como o reflexo da infância do protagonista — é como ler um antigo diário, empoeirado, depois de adulto — as imagens não são necessariamente adaptadas pra funcionar numa interface fixa pro jogo, muitas vezes são só fotografias de desenhos coladas na tela. Um momento que eu particularmente acho especial é ao chegar no lago da cidade— junto das margens do lago, surgem as margens da folha em que a tela foi desenhada.

Beeswing

O jogo se passa no “presente”, e nos diálogos com os vizinhos o retrato do protagonista já o demonstra com barba e tudo; em contraste com a aparência dele no mapa, onde é caracterizado como criança. Brincar com a temporalidade é algo que alcança bem o sentimento de voltar pra casa; e com o tempo, Beeswing transforma a nostalgia em perda.

A meditação sobre o luto como o conforto de suas memórias é o que torna Beeswing tão especial além da linguagem — ao longo de sua breve visita à vila escocesa, o protagonista passa por uma casa de idosos, que reflete perfeitamente a situação de um monumento atemporal — o que representa a morte, de fato? O fim? Ou talvez, a própria passagem?

Ouso dizer que a decisão mais interessante desse jogo é colocar o cemitério logo atrás do parque onde as crianças brincam — elas refletem e questionam a validade e utilidade da própria vida, enquanto o contraste é criado do outro lado da cerca, onde os mortos descansam. Com o próprio protagonista refletindo a imagem de uma criança, o sentimento de inocência supera o pavor do choque e o medo de “morrer”.

Beeswing

Descobrir que o gato do protagonista faleceu não me causou morbidez ou desesperança — a tristeza da perda em Beeswing é mais sobre a passagem do tempo do que sobre a própria morte do felino. E essa tristeza, estranhamente, traz conforto. Um conforto familiar.

E voltar pra esse conforto talvez seja tão desafiador quanto sair da zona de conforto — readaptar pra uma rotina um dia já vivida, relembrar o chão um dia já pisado que, independente de mudanças, ainda está ali — é assim que eu me sinto agora, escrevendo esse texto.

Uma das linhas de texto de Beeswing diz que, diferente da fotografia, filmes entendem que a vida é em fluxo — e talvez, como criador de jogos, Jack King-Spooner entende isso melhor do que qualquer um.

Beeswing termina em casa.