Depois de muito tempo de espera e algumas desilusões com New Dawn, chegamos ao aguardado Far Cry 6, já de cara afirmando deixar uma estampa no mundo com seu novo antagonista, o ditador de Yara ‘Antón Castillo’, atuado pelo lendário Giancarlo Esposito (conhecido pelo papel de Gus Fring em Breaking Bad).
Mas afinal de contas, será mesmo que a nova entrada conseguiu se destacar da franquia? O quão boas são as mudanças apresentadas? E a representatividade latina, deu certo ou errou o alvo?
A análise é dividida em duas metades: vamos ver alguns dos pontos que me chamaram a atenção no universo de Yara, seguindo para implicações na gameplay da nova iteração e se encerrando com minhas conclusões sobre essa intensa, inconstante experiência.
Essa análise conta com leves spoilers da campanha, que terão seu conteúdo parcialmente modificado para não estragar a experiência dos leitores interessados em jogá-lo.
Yara, um universo “congelado no tempo”
A nova iteração da franquia nos leva à uma localização perfeita para um Far Cry: Yara, uma espécie de “recreação pseudo-histórica” de Cuba, ou pelo menos do sentimento socialista revolucionário da América Central ao longo do século XX.
Digo perfeita porque é uma região que mistura bem todos os elementos que a franquia costuma pregar: um limiar entre civilização e caos, a justaposição do urbano e das florestas densas e indomáveis, contando com uma enorme diversidade de fauna e flora, assim como vimos na Oceania de Far Cry 3 e na cordilheira dos Himalaias de Far Cry 4.
Dois outros conteúdos me serviram como ponto de partida para interpretar a representação de Yara: por um lado, o documentário do jornalista americano Jon Alpert, “Cuba e o Cameraman“, além de Metal Gear Solid: Peace Walker, que se passa na Revolução Sandinista da Nicarágua e tem seu palco numa espetacularização da Crise dos Mísseis.
Podemos ver a nação de Yara sofrendo com uma crise político-econômica e militar que dura décadas, numa economia estagnada que é exaltada pela presença de carros dos anos 1950, armas da Segunda Guerra Mundial e, finalmente, pela desigualdade social representada pela escravidão, perseguições políticas e tortura.
A primeira coisa que me vem à cabeça nesses jogos é quando são produções feitas especificamente pela Ubisoft, uma empresa que sempre equilibrou boas doses de meses de pesquisa histórica misturados com presunções estereotípicas e, por vezes, até ofensivas ou polêmicas das culturas que representam nas suas histórias.
É claro, existem casos e casos, e apesar de tudo a Ubisoft se tornou talentosa na experiência de forjar narrativas pseudo-históricas, que misturam embasamentos realísticos com contos épicos (como as fictícias lutas contra deuses em Assassin’s Creed Odyssey, e a arquitetura impressionantemente precisa de toda Notre-Dame em Assassin’s Creed Unity).
Como (não) apresentar personagens
O jogo não te poupa na hora de empurrar a agenda da “Fantasia de Guerrilha”, sendo que a repetição dessa palavra, “guerrilha“, acontece pelo menos umas 937 vezes ao longo da campanha, chegando num ponto em que a representação dos personagens se torna irritante e excessivamente caricata.
Primeiramente, parece que a concepção geral da guerrilheira Dani Rojas é a reimaginação da figura do Rambo, um veterano extremamente experiente que é capaz de usar todo tipo de armamento possível, e que raramente é enviado com suporte de aliados ou equipamentos.
Além disso, com exceção de Dani e Antón, parece que nenhum outro personagem tem importância no universo de Yara, já que só vemos consequências de suas ações em cutscenes específicas da campanha, desaparecendo pelo resto da experiência quando não são trazidos à tona.
O jogo também NÃO PERDOA com diálogos expositivos: a cada esquina, o fluxo do jogo é interrompido por conversas entediantes de personagens contando histórias, sempre tentando encerrar com aquela vibe de “frase de efeito” que só acaba fragilizando a narrativa geral.
Elementos típicos da Rockstar e Ubisoft, como dirigir por 5 minutos ouvindo alguém falar no seu ouvido, ou seguir um NPC andando a 1/5 da nossa velocidade enquanto vomita TODA sua história de vida, acontecem de forma frequente demais aqui.
Muito potencial… que só fica no potencial
Em uma das missões, uma personagem importante conta sobre como sempre foi protegida pelo seu irmão mais velho, em especial numa briga de festa onde todos a zombavam por ser vegetariana. Do nada, ela fala que o irmão morreu uma semana depois, sem dar contexto NENHUM do porquê essa história aconteceu ou de quem ele era, e imediatamente muda de assunto como se nada tivesse acontecido.
Outro exemplo é a tal Gabriella, uma garota de cabelo colorido e diversas tatuagens que ia embora da ilha, mas foi sequestrada pela farmacêutica BioVida, morrendo depois de testes que se concluíram com um aborto espontâneo. Mas você só meio que sabe disso num papel largado perto do laboratório, sem mais nem menos.
São histórias como essas que me incomodam sobre os métodos de contar a narrativa em Far Cry 6: somos sempre apresentados a um amalgamado de personalidades e histórias interessantíssimas, cheias de potencial para se tornarem narrativas incríveis (ao nível das sidequests da CD Projekt Red ou da Ryu Ga Gotoku).
O que acontece é que todas elas se encerram do jeito mais estúpido ou sem cerimônia possível, jogando todo esse potencial de profundidade ao universo de Yara no lixo, sem contar no sentimento ruim e delusório de “ué, é só isso? Já acabou?” que muitas missões costumam gerar.
A sensação que temos é que, mesmo se tornando o tal “Rambo imortal” que muda o curso da história para sempre, somos meros espectadores passivos que chegaram alguns anos tarde demais para ver os verdadeiros momentos memoráveis da ilha, quando outros personagens (como o grupo das Lendas de 67′ que encontramos na campanha) realmente escreveram histórias dignas de serem contadas.
Felizmente, a atuação de diversos personagens acaba sendo tão intensa e memorável (com destaque a Giancarlo Esposito e seu filho Diego, pelo ator Anthony Gonzalez) que esses problemas de roteiro e visão acabam sendo “sutilmente balanceados”, como se você tentasse tampar um rombo na carcaça de um cruzeiro com massinha durepoxi, uma tática meio parecida com o marketing de Death Stranding e suas dezenas de figurões de Hollywood.
O cabo de guerra de ideais
O jogo deixa claro que sofre de um conflito de idealizações, não sabendo se quer contar uma história sobre representatividade latina (algo que a Wired apontou bem na sua matéria) ou se deveria agradar o público médio com estereótipos superficiais, focando em piadinhas e xingamentos que se repetem inúmeras vezes.
Em alguns momentos, parece que todo o esforço para estudar a história real da América Latina foi jogada fora. Por exemplo, aparentemente o único xingamento que existe em espanhol é “comemierda”, julgando pela quantidade inacreditável de vezes que essa palavra também é repetida em toda santa frase do jogo (junto de “guerrilha”, claro).
O jogo insiste em mostrar cenas de violência extrema suplementadas com piadas fora da hora e fora de tom, mantendo um fluxo inconsistente de seriedade ao longo da narrativa.
É graças a isso que surgem personagens como a caricata comandante naval Benítez e o insuportável empresário Sean McKay, presos nesse abismo de “comédia South Park-iana” fortemente contrastantes com a seriedade do sensível tema político que o jogo possui.
Eu não consigo deixar de reiterar o meu ódio pelo McKay, um personagem tão inacreditavelmente irritante com suas incessantes piadinhas e comentários inconvenientes que chega perigosamente perto de ser uma recriação fotorrealista do Peter Griffin (Family Guy).
Vale lembrar que o Diretor Narrativo do jogo, Navid Khavari, publicou uma nota em maio deste ano falando sobre o “quão político seria Far Cry 6”: uma história sobre revoluções modernas contra o fascismo, os custos do imperialismo, a necessidade da democracia, e até mesmo comentando sobre os direitos LGBTQ+. Como deu pra ver, não foi a tentativa mais coesa ou bem-sucedida do mundo.
Far Cry 6 sofre de uma intensa dicotomia: não sabe se quer ser uma grande piada ou um comentário político inteligente e maduro sobre a situação da América Central, nunca investindo inteiramente em nenhuma das perspectivas.
Essa falha de direção é de longe o maior problema de Far Cry 6, que poderia ser facilmente solucionado se o jogo soubesse quais mensagens quer transmitir pela sua história. Ao invés disso, a Ubisoft atirou em todas as direções.
Mesmo acertando muitos desses alvos, o jogo sofreu severamente com a inconsistência, já que não apresenta uma experiência concisa aos jogadores.
Apesar de Far Cry 6 ser uma experiência muito mais palatável ao público que os convolutos exemplos de Peace Walker, ou outros jogos de cunho político de Hideo Kojima (como Ground Zeroes e o Campo Delta de Guantánamo), não é comum experimentar uma dualidade tão forte assim em obras que se propõem a comentar sobre assuntos como esses.
Por fim, um elemento que foi alvo de muitas críticas foi a implementação do “spanglish”, aquela mistura desnivelada e forçadíssima de inglês com espanhol que praticamente todos os personagens falam.
Algumas soluções simples como implementar as duas linguagens de forma mais consistente (como com os Valentinos em Cyberpunk 2077), ou se simplesmente falassem mais diálogos em espanhol, evitariam essa sensação de estranheza no dialeto criado pelo jogo.
Sobre as músicas
Rápido trecho comentando sobre um elemento que eu sempre afirmo ser o mais importante na imersão dos jogadores, mas que é frequentemente deixado de lado: a inclusão de uma trilha sonora envolvente e que se encaixe ao contexto.
Apesar das músicas seguirem o mesmo estereótipo cubano de salsa, chá-chá-chá, merengue e hip hop, sua curadoria serve bem para exaltar a sensação do “orgulho latino” que o lado mais sério do jogo tenta abarcar, mesmo com os problemas da narrativa.
Um exemplo específico é a representação do grupo (fictício) Máximas Matanzas, que se posiciona contra o regime de Castillo tentando “instigar o povo a entender e desejar a liberdade pela escolha própria, e não pela coerção das guerrilhas” através do rap consciente executado pela (muito real) cantora Gabylonia, nas músicas Camino Revolucionario e Carta al Tirano.
Tem um easter-egg relativamente raro onde os protagonistas (Dani Rojas masculino ou feminino) podem cantar algumas dessas músicas no rádio, o que incrementa o fator de diversão em 5000% quando isso acontece. Pena que não rolou comigo ao longo da minha campanha, mas fica um exemplo aí:
A gameplay de Far Cry 6 é o monstro do Frankenstein
Fundamentalmente, Far Cry 6 é uma mistureba de diversos elementos do resto da franquia:
- De Far Cry 3, temos uma narrativa dramática e intensa, cheia de personagens ambíguos e incapazes de desenrolar suas batalhas sem intervenção do protagonista;
- De Far Cry 4, vemos a exploração aprofundada e levemente verticalizada do cenário, com uma ênfase fortíssima na utilização da wingsuit e veículos aéreos para navegar no mapa. Isso é balanceado com os postos de Defesa Anti-Aérea que somos obrigados a destruir antes de sobrevoar certas regiões da ilha;
- De Far Cry 5, temos sistemas simplificados no manuseio de armas, além da inclusão dos “parças” que nos acompanham em combate (que, apesar de fofos, são bem inúteis e frequentemente falham em te ajudar), e a gestão de recursos para adquirir itens, sem contar no novo sistema de postos de guerrilhas;
- Por fim, Far Cry 6 substitui o sistema de árvore de habilidades que estávamos acostumados a ver, agora com um sistema de roupas que possuem atributos em cada peça (resistências, velocidades, colheita de recursos, etc).
O que particularmente tinha chamado minha atenção é como a franquia tentou fazer um retorno não só à direção de arte cartunizada, mas também ao estilo de gameplay que encontrávamos em Far Cry 3 e 4.
Isso pode ser afirmado ao analisar o quinto jogo, que abandonou diversos elementos como a caça de animais, a fabricação de melhorias de equipamentos e a exploração do mapa para favorecer inteiramente o combate, algo que me desagradou fortemente na época.
Aqui, em termos de mecânica, encontramos uma espécie de equilíbrio entre todos os jogos, pegando esses elementos e implementando-os de forma misturada e simplificada na ilha de Yara.
O jogo também conta com um sistema de direção de veículos melhor que o resto da franquia, além do retorno do sistema de piloto automático (que foi fundamental para me dar tempo de responder o WhatsApp), apesar de frequentemente causar acidentes ou conflitos indesejados com soldados.
Tomar Yara é fácil demais
Sobre a dificuldade, somos apresentados com apenas duas opções: Modo História e Modo Ação, adotando um estilo de “dificuldade adaptativa” com o sistema de Presença Militar.
Assim como no primeiro exemplo da indústria, com Resident Evil 4, o jogo incrementa a dificuldade enquanto você progride na campanha, subindo a presença e o poder dos soldados juntamente das patentes militares de Dani Rojas.
Apesar de equilibrado, os outros sistemas jogam uma pedra na cabeça da dificuldade adaptativa: os “parças”, por exemplo, que são nossos animais companheiros, são fundamentalmente inúteis, fazendo pouquíssimo para ajudar em confrontos (apesar de serem ótimos para ataques sincronizados no stealth no estilo Ghost Recon).
Mesmo assim, outros elementos como silenciadores que superaquecem e os tipos de munição (perfurante, anti-pessoal, venenosa, incendiária, etc) introduzem variáveis demais para um jogo que não precisa desses sistemas de “tipos de inimigos” e “fraquezas/resistências”, sendo implementados de uma forma meio arbitrária e até desnecessária e provavelmente sendo remanescentes da tentativa de transformar a franquia num RPG de tiro com Far Cry: New Dawn (que foi uma falha massacrante).
Os jogadores eventualmente percebem que a melhor opção sempre vai ser usar armas com projéteis perfurantes para inimigos comuns e LMGs com munição explosiva para helicópteros, e todo o resto (incluindo as divertidas e criativas armas improvisadas de “Gambiarra”) só servem para ficar de enfeite e complicam demais as coisas.
Outros jogos costumam sofrer com isso, como Metal Gear Solid 4, que favorece demais o playstyle de combate direto (ao invés da furtividade, empregada por todo o resto da franquia de espionagem). Também fiz um comparativo entre The Phantom Pain e Ghost of Tsushima na minha análise GHOST OF TSUSHIMA: A ARTE NA LETALIDADE MAGISTRAL DOS SAMURAI.
Em conclusão: bastante divertido, mas meio medíocre
O que aconteceu com Far Cry 6 é que a Ubisoft simplesmente aperfeiçoou suas fórmulas com jogos mecanicamente divertidos e acessíveis ao público, mas também pecou na superficialidade com a dualidade da narrativa apresentada em Yara.
É um prato cheio, não necessariamente da melhor qualidade de comida, mas que pode encher os que estavam famintos pelo retorno de Far Cry à indústria dos games.
Não dá pra negar: é a fórmula perfeita para o jogador médio que só quer se divertir sem ter que pensar muito, adotando muitas rotas “seguras” que garantem que o máximo de pessoas se sintam satisfeitas, sem tomar quaisquer riscos na tentativa de reproduzir narrativas extremamente marcantes como a história de Jason Brody e Vaas Montenegro.
Falando nisso, caso vá jogar Far Cry 6, PRESTE ATENÇÃO NA CENA PÓS-CRÉDITOS.
A etiqueta “A Ubisoft Original” poderia simbolizar uma tentativa da Ubisoft de retomar sua época de ouro, que atingiu seu ápice com o lançamento de Far Cry 3 e Assassin’s Creed 2, dois bastiões da indústria, mas aparenta não se preocupar tanto assim em tomar riscos para reproduzir o sucesso do passado.
A questão é que ele faz essa mistureba, esse monstro do Frankenstein todo, com uma execução mecanicamente aperfeiçoada mas fundamentalmente sem alma.
Agradecemos à Ubisoft por conceder uma chave de análise, disponibilizada na plataforma UPlay (PC). Far Cry 6 foi lançado dia 6 de outubro de 2021 para Xbox Series, Xbox One, PlayStation 4, PlayStation 5, Google Stadia, Amazon Luna e PC.