A franquia de jogos Tony Hawk’s Pro Skater é uma anomalia. Em uma indústria cheia de jogos de esporte onde manter a postura de simulação é regra, THPS abraça o absurdo.
Desde seu primeiro lançamento para a quinta geração de consoles em 1999, os jogos licenciados do skatista, que veio a se tornar o mais popular do mundo, estabeleceram suas ambições experimentais. Por mais que eles tenham se inspirado fortemente em alguns jogos como 1080° Snowboarding, Tony Hawk’s Pro Skater foi muito além das pistas de corrida oferecidas em jogos como aquele, com mapas e objetivos fortemente inspirados em regras de arcade.
Mas não foi tudo uma luta de design. Hoje em dia, a cultura de skate é vista por outsiders com grande curiosidade, e os primeiros jogos da franquia conseguiram capturar este ângulo perfeitamente. Isso se dá até mesmo por serem jogos, que não eram nem de perto tão predominantes no mercado quanto são hoje em dia.
Estas nuances culturais capturadas em um jogo de alto orçamento só conseguiram ser alcançadas por causa da proximidade que os próprios skatistas representados nos jogos tiveram com o projeto, os guiando tanto na execução de mecânicas quanto filosoficamente. Junto dos desenvolvedores, eles formaram o coração da franquia.
Mesmo assim, um jogo tão ambicioso (e com tamanho orçamento) como esse teve que viver por baixo do véu de um viés corporativista. Até mesmo o dito cujo, Tony Hawk, só conseguiu atingir seu nível de popularidade atual por causa de sua imagem pública impecável (pelo menos até ele começar a vender NFTs).
Ele não é reconhecido como um skatista rebelde que pixa, usa drogas ou que faz manobras em locais proibidos, como alguns dos críticos insuportáveis e mais preconceituosos colocariam. É o tipo de imagem polida à perfeição, como a dele, que grandes empresas amam atrair, e essa é a perspectiva que todos seus jogos devem obrigatoriamente seguir.
Por mais que os jogos toquem Rage Against The Machine e Dead Kennedys, eles ainda foram feitos para passarem uma visão mais amena do mundo do skate. Mas a Neversoft, desenvolvedora dos primeiros jogos da série, tentou lutar contra isso o máximo possível junto com os skatistas envolvidos com o jogo. Eles foram o mais longe que podiam com a aprovação dos olhos cuidadosos da Activision.
Pode até parecer um pouco estranho julgar a indústria de 1999 com este nível de minuciosidade, ainda mais considerando o estado atual dela, mas desde aquela época jogos já eram tratados dessa maneira até pelas próprias distribuidoras.
Assim como em filmes, até os menores acabam tanto sofrendo quanto se beneficiando (na maior parte das vezes sofrendo) nas mãos dos produtores mais exigentes.
Tony Hawk’s Pro Skater conseguiu transcender estas limitações, e é assim que ele atingiu seu sucesso sem precedentes. Foi uma tempestade em um copo d’água que envolveu o balanço perfeito entre irreverência e cautela para funcionar.
Assim como vários outros sucessos inesperados, foi necessária uma combinação de pessoas, ideias e fatores nos lugares e horas certas para o jogo atingir sua recepção extremamente positiva.
Contudo, com o passar dos anos, a ganância da Activision resultou na queda de qualidade da franquia, devido aos lançamentos anuais que eram requisitados por eles em seu contrato com a Neversoft. Este era um dos hábitos mais destrutivos da distribuidora, e é uma estratégia tão horrível que até conseguiu levar Guitar Hero à falência, além da crise de popularidade que franquias como Call of Duty passam hoje em dia.
O distanciamento dos skatistas nos jogos seguintes também não ajudou. Com o passar dos jogos, até alguns desenvolvedores experientes com skate foram contratados para a equipe, mas a visão filosófica presente no início da franquia vinda dos skatistas profissionais associados ao projeto ficou para trás. Isso não arruinou nada, mas foi uma grande perda do coração da série, ainda mais quando considerarmos os lançamentos anuais.
Mas o que nunca faltou, nem nos piores momentos da série, foi a fórmula de gameplay firmemente consolidada desde o início. É por isso que até os mais questionáveis jogos da série como Pro Skater 5 ainda conseguem ser divertidos, ocasionalmente.
A ausência dos jogos do Tony Hawk criou uma cratera na indústria que não conseguiu ser substituída nem pela cena independente, algo que teve sucesso com os jogos de skate da EA por meio de Skater XL e Session…
Bom, isso até a própria série voltar com uma vingança. Em 7 de junho de 2020, Tony Hawk’s Pro Skater 1 + 2 foi lançado, desenvolvido pela Vicarious Visions e publicado pela Activision.
Este não é nem o primeiro remake destes dois jogos juntos, e muito menos o primeiro remake que um deles recebeu separadamente. Eles são alvos comuns para este tipo de relançamento por dois motivos principais:
- A expiração do licenciamento das músicas, que faz com que não valha a pena só relançar os clássicos em uma loja, considerando que o custo excede os lucros de vendas potenciais;
- Por mais que os primeiros dois Pro Skater sejam considerados clássicos, eles são de longe os mais fáceis de se repaginarem. O terceiro jogo tinha quase tudo que a franquia precisava, enquanto algumas dessas mecânicas ainda faltavam no primeiro e segundo.
É mais insano ainda pensar que essa não é nem a primeira reimaginação (diferente de um remake, por mudar completamente a direção) destes jogos, pois ela veio com Tony Hawk’s Pro Skater HD, que é mais uma alucinação sem nenhum estilo ou fluidez do que qualquer outra coisa. As coisas estão começando a ficar um pouco confusas a linha do tempo, não?
Então vamos dar uns passos para frente e começar a falar do jogo que está no título da matéria.
Tony Hawk’s Pro Skater 1 + 2 faz algumas manobras interessantes para consolidar sua posição na franquia tanto como uma celebração do passado quanto um olhar ao presente, e até alguns possíveis caminhos futuros.
Ele teve múltiplas tarefas importantíssimas para assegurar seu próprio sucesso enquanto provava para a Activision e ao público geral que ainda existe espaço para um jogo desse tipo. O caminho que a Vicarious Visions escolheu é o da cautela audaciosa, o mesmo que levou os jogos originais ao estrelato.
Assim como Crash 4 fez com sua própria franquia, THPS 1 + 2 abandonou basicamente todas as suas mudanças estruturais que vieram com o tempo, como as campanhas absurdistas de Underground e American Wasteland, em troca de uma mistura das mecânicas clássicas com grandes retoques incrementais modernos.
As campanhas dos dois jogos são apresentadas por completo, mas separadamente, e não oferecerem nenhuma grande alteração nas fases, mas as similaridades acabam por aí.
Os reverts e o sistema de stat points do Pro Skater 3 estão de volta, acompanhados dos flips/grabs double tap e spine transfer do Pro Skater 4, o wallplant de Underground, entre diversos outros.
A Vicarious Visions foi liberal com a quantidade de mecânicas importadas dos outros jogos da franquia, mas só até certo ponto. Estas mudanças servem como adições pequenas que aumentam tanto a versatilidade disponível aos jogadores quanto o teto de habilidade para quem gosta de fazer combos na casa das dezenas de milhões (ou até nas centenas).
Olhando o que foi carregado de jogos prévios e o que foi deixado para trás, conseguimos ter uma ideia de qual direção foi tomada pelo jogo. Ele banca na nostalgia e pureza estrutural dos originais, mas ao mesmo tempo trazendo uma versão adaptada confortavelmente moderna desse pacote.
Não tem nenhuma pegadinha. Você joga 9 fases do primeiro jogo, vai para as outras 10 do segundo, e é isso. Não existe nenhuma cutscene, interrupção ou grind. Você escolhe um skatista e completa sua campanha em apenas uma ou duas horas.
Fazer um jogo AAA de uma franquia deste tamanho possuir “tão pouco conteúdo” em primeiro olhar é uma escolha assumidamente corajosa, mas as novas adições à fórmula foram feitas especificamente para ajudá-lo a se tornar o jogo mais rejogável da franquia.
Você ainda libera fitas individuais com vídeos dos skatistas, mas agora você deve maximizar suas estatísticas ao invés de completar sua campanha inteira (o que vai acontecer inevitavelmente enquanto você busca os stat points).
Para quem já conhece a série, isso significa que você deve terminar o jogo ao menos 42 vezes (contando os dois jogos separadamente) para pegar todas elas. E eu nem estou considerando os personagens customizados e os secretos aqui.
É bastante, não? E tem mais: desafios de diversas categorias foram introduzidos em Tony Hawk’s Pro Skater 1 + 2, e estão em todo lugar. São 820 no total, e eles garantem que qualquer completista entre em êxtase ou em desespero ao abrir o menu de desafios pela primeira vez.
Para jogadores que não costumam gostar rejogar seus games, THPS 1 + 2 provavelmente não iria funcionar muito bem, considerando sua suposta curta duração. Mas isso acontece, pois ele segue a filosofia arcade que veio desde seu início.
Jogos como Metal Slug, Final Fight e Ikaruga funcionam da mesma maneira, mas eles trabalham apenas no plano 2D de ação desenfreada. Tony Hawk até soa estranho sendo mencionado junto destes jogos, pois ele vem do gênero de esporte, que no mundo dos jogos é usualmente focado em uma gameplay voltada à simulação.
Todo segundo das campanhas originais de THPS pede a completa atenção do jogador. Os mapas são densos com conteúdo e objetivos a cada canto, para que você nunca tire os olhos e cabeça do que é necessário. Desde as letras soletrando SKATE que você deve coletar até os desafios de pontuação, você não para nunca.
É comum ter todos os 10 objetivos em mente ao mesmo tempo enquanto você joga uma fase em THPS. Você balanceia seus grinds e manuais enquanto tenta desesperadamente chegar na fita secreta antes que os dois minutos acabem. É uma corrida constante, e você não é nem punido por não completar tudo de uma vez.
Se você estiver com dificuldade, é só focar em um objetivo por rodada que uma hora você consegue terminar todas, mas é isso que carrega a longevidade dos jogos arcade: os desafios autoimpostos.
Atingir o “sick score” em cada fase pode não ser lá uma tarefa tão difícil, mas fazer isso enquanto você busca mais seis objetivos variados é bem complicado. Mesmo após terminar estes jogos incontáveis vezes, ainda existem algumas fases em que eu não consigo fazer tudo de uma vez só.
Também existem os jogadores que buscam as maiores pontuações possíveis nos curtos dois minutos oferecidos por sessão, e que só podem ser extendidos ao manter um combo após o timer bater no zero. Todos estes desafios são, olhando pelo lado da indústria atual de jogos, meio inúteis.
Um dos motivos pelo qual o modelo arcade perdeu espaço de mercado aos jogos AAA atuais é o foco deles em perfeição mecânica acima da imersão. Eles são vistos mais como “brinquedos sofisticados” do que jogos prestigiosos, como são as desesperadas tentativas da indústria de games de criar experiências que finalmente seriam consideradas como arte por críticos externos.
Mas, na verdade, jogos já são arte, tanto nos tempos atuais quanto como eram em seus modelos de antigamente.
É difícil argumentar contra o impacto que os jogos do Tony Hawk tiveram, e ainda têm, em apresentar o universo do skate aos jovens ao redor do mundo. Quase todas as entrevistas com os skatistas representados nos jogos envolvem eles contando suas histórias aos diversos fãs que declaram “só ter começado a andar de skate por conta desses games”.
Minha própria jornada cheia de altos e baixos com o esporte se deve aos jogos. Mesmo que eu não ande tanto de skate quanto no passado, ainda confiro os campeonatos e consigo entender até o linguajar mais específico de manobras.
Eles me apresentaram, mesmo com uma perspectiva higienizada, a cultura e atitude do skate. Ele pode não ser uma simulação, mas os jogos passam perfeitamente a sensação de andar de skate de maneira elevada.
Tony Hawk’s Pro Skater 1 + 2 conseguiu receber a tocha passada pela própria série a anos atrás. O cuidado que ele tem para atingir tantas expectativas é enorme, e mesmo que ele não apresente tanta ambição por este exato motivo, o coração da franquia não para de bater.
Uma cópia gratuita de Tony Hawk’s Pro Skater 1 + 2 para a plataforma PC foi concedida pela Activision para análise no Recanto do Dragão.