Top Gun: Maverick poderia ter dado muito errado, de muitas formas. Poderia ter se tornado numa gororoba pseudo-nostálgica, sem originalidade nem respeito à obra original; poderia ter se tornado numa propaganda estadunidense genérica, com comentários políticos descarados, ou até mesmo se afundar num poço de indulgências excessivas ao ego de Tom Cruise, cada vez mais velho (atualmente com 59) mas absolutamente sem sinal de pisar no freio.
Felizmente, eu não poderia estar mais estratosfericamente errado. A nova experiência de Top Gun atinge um inaceitável equilíbrio entre a postura nostálgica aos fãs da velha guarda enquanto arrasta Pete “Maverick” Mitchell, ainda despretensioso e traumatizado, para viver uma novíssima narrativa no século XXI.
“A cães velhos não se ensina truques novos”
John Fitzherbert (1523)
O filme abre com Maverick (metaforicamente) caindo de paraquedas e colidindo com a realidade do mundo contemporâneo: “O futuro está chegando, e você não está nele”, abre o filme, explicando sobre o iminente fechamento do programa TOPGUN para realocação de fundos ao desenvolvimento de Veículos Aéreos Não-Tripulados (ou seja, um futuro sem pilotos).
Nada na obra se compromete a escorregar desse fio de navalha, apresentando a perfeita combinação entre “filmes-pôr-do-sol” da década de 80, recheados de sintetizadores e quasi-homoeroticismo com homens suados trocando agressões verbais no chuveiro, junto da bruta realidade de um Maverick mais velho que luta para quebrar o ciclo traumático que ele mesmo criou após a morte do companheiro, Nick “Goose” Bradshaw, ao final do primeiro filme.
Essa contraposição de dois estados consegue, no entanto, atingir uma harmonia espetacular ao tecer apresentar um cenário intimista onde nosso protagonista vive constantemente preso dentro de uma realidade de “abençoada ignorância”.
O filme nos informa que Maverick passou esses 35 anos causando intrigas com seus superiores, além de continuamente rejeitar ofertas de promoção de patente, de forma que pudesse “continuar vivendo nos seus anos dourados” sem nunca ter de evoluir para além do infame dia do acidente.
Isso se desenrola não como uma narrativa de um jovem com Síndrome de Peter Pan, que se recusa a admitir responsabilidades para continuar vivendo num mundo fantasioso e perfeito, mas sim como um adulto casca-grossa completamente ciente de que vive uma vida obsoleta, e de que tudo que moldou sua realidade foi abandonado por novidades tecnológicas que ameaçam sua identidade estelar construída na década de 80. Mas será mesmo?
O ponto de virada na vida de Maverick começa com a introdução de dois fatores: quando é chamado pelo exército para a sua “última missão impossível” – destruir um búnquer que serve como uma refinaria de urânio, extremamente bem-protegido – e confrontar os fantasmas do seu passado incorporados pela terrífica performance de Miles Teller (Whiplash) como Bradler “Rooster” Bradshaw, filho do eterno Goose.
Toda a obra se dedica então a espetacularmente demonstrar como a ilustre relíquia, Pete Mitchell, lida com as mudanças dos novos tempos, se permitindo conciliar com erros do passado enquanto tenta passar sua gigantesca tocha para uma nova geração de pilotos. Falando nisso–
“E daí se não temos mais a vantagem tecnológica? É sobre o piloto, não o avião.”
A frase acima é um dos vários provérbios cristalizados pelo roteiro de Top Gun: Maverick, que mais uma vez consegue atingir precisamente o timbre que o filme pretendia vocalizar.
Tudo na obra segue esse fio da conciliação do passado com o futuro, tanto na perspectiva de Top Gun como saga de Hollywood, quanto como metáfora para o próprio envelhecimento de Tom Cruise e, obviamente, também com relação às transformações que Hollywood sofre nos dias atuais, incluindo intervenções por Computação Gráfica e novas levas de atores em ascensão.
Uma última coisa que me supreendeu muito foi a qualidade da ação e a coreografia na pilotagem dos caças, o que, depois de fazer algumas pesquisas, me foi justificado: Tom Cruise é reconhecidamente uma pessoa viciada em adrenalida, (principalmente depois de virar o rosto de Missão Impossível, que inclusive soltou um novo trailer ontem), sendo particularmente contrário à ideia de usar dublês nas próprias cenas de ação.
Pois bem, o homem LUNÁTICO conseguiu de novo: grande parte das cenas de ação foram de fato capturadas com caças e jatos militares reais, e, inclusive, a produção ativamente teve de lidar com a rejeição de muitos atores que não aceitaram passar pelo programa de treinamento militar do Tom Cruise, realizado em conjunto com a Marinha dos EUA e a Escola de Armas e Caças TOPGUN. Sim, é sério.
De desafios subaquáticos a programas de pilotagem de caças F-18, parte do porquê do filme ser adiado tantas vezes (além da pandemia, obviamente) foi graças ao programa de três meses que os atores tiveram de passar, coletivamente, para aprender a atuar dentro das aeronaves durante a pilotagem, vestindo quilos de equipamento com uma força gravitacional extrema exercida no corpo deles.
“Deixei bem claro para todos, desde o primeiro encontro, que nós iríamos filmar tudo de verdade. Isso significa que você irá entrar em um F-18 real e vai estar voando nessas cenas. Muita gente pediu para ir embora.”
Joseph Kosinski, diretor de Top Gun: Maverick, ao The Ringer
Àses Indomáveis, estrelas que nunca se apagam
Top Gun: Maverick efetivamente conquistou uma série de coisas: instaurou uma nova (e excepcionalmente alta) barra pros padrões de qualidade de filmes de ação em veículos aéreos, que acredito que nunca será atingida (e muito menos superada); consolidou uma das melhores sequências da história do cinema e, por fim, eternalizou o legado de Tom Cruise como, na minha opinião, uma das pessoas mais excêntricas e memoráveis a realizar produções na história de Hollywood.
O filme tem tudo que precisava: muito humor autoconsciente, ação que beira a insanidade, homens suados jogando futebol americano na praia, jatos em dogfights a velocidades extremas e um eterno senso de urgência para uma missão “muito maior que qualquer pessoa já conseguiu realizar na história”.
E adivinhem só? Com muita ambição, eles conquistaram isso e muito mais.