Um aviso: esse texto envolve assuntos muito pesados como estupro, e mesmo os que não envolvem contém spoilers do filme então pensem bem antes de ler.
Eu não tenho a possibilidade de analisar esse filme por completo. Eu não sou estudada o suficiente pra entender tudo sobre essa história e, mesmo assim, Cidade de Deus é um filme que facilmente toca qualquer um. Não é um filme que te toca com uma história belíssima de amor, mas a mensagem continua sendo positiva em meio à sua crítica.
Essa história é sobre um bairro (e favela) no Rio de Janeiro, um dos mais pobres e dos mais violentos. O filme se passa nos anos 80, mas conta seu enredo desde os 60. É fácil notar o apelo dessa obra, e embora tenha visto outros filmes com ótimas críticas ou que também são inspirados por uma história real, nenhum foi tão forte. Em partes, talvez seja por ser brasileira. Mas, em geral, esse é um dos melhores filmes da história e é brasileiro. E, embora seja um ótimo patrimônio do nosso país, o conteúdo dele mostra todas as rachaduras e por vezes quebras nessa nação, que não é culpa do povo. Com certeza existem muitos filmes brasileiros sobre esse assunto, mas de uma maneira tão crua e potente quanto Cidade de Deus, que toca pessoas no mundo todo, é algo que não se vê todo ano, ou década… talvez século.
A mensagem é dura, cruel e verdadeira. Embora existam pessoas extremamente ruins no filme, o conceito de “bom” ou “mau” não é preto e branco de nenhuma forma. Algo importante a se notar sobre nosso país é que foi a escravidão no passado que criou toda a situação que vemos nessas histórias. Escravidão e racismo criaram a extrema desigualdade nas terras brasileiras, e embora o filme não fale explicitamente sobre o segundo conceito que mencionei, se você entende um pouquinho de história sabe que é algo que sempre está no filme de alguma forma ou outra. O nosso país sempre foi rico, mas nossa situação é criada por pessoas no poder desde o descobrimento do mesmo, em uma nação super-explorada e abusada por motivos egoístas e desumanos. É sobre isso que Cidade de Deus fala.
“City of God” (o nome oficial, eu acho) conta a história de algumas pessoas pelos anos vivendo na Cidade de Deus, e mostra muito bem como a pobreza extrema, corrupção policial e um governo precário podem destruir as pessoas e mudá-las completamente. Nosso protagonista, chamado “Buscapé”, narra a história para o telespectador, sendo o único do filme que nunca entrou no crime embora tivesse chance (e tentasse uma vez ou outra). Buscapé, durante a história, tenta realizar seu sonho de ser fotógrafo, trabalhando como jornalista e arriscando a vida no meio da selva urbana da Cidade de Deus. Mas a maior parte do filme fala de outros personagens, como o Trio Ternura nos anos 60, Dadinho (que se torna Zé Pequeno) ou Mané Galinha (interpretado por Seu Jorge).
O Trio Ternura é o protagonista no início do filme, consistindo de três bandidos que aterrorizaram o Rio de Janeiro nos anos 60. Cabeleira, Alicate e Marreco. Buscapé é irmão desse último. O trio era sempre acompanhado de dois meninos, Dadinho e Bené, que era irmão do Cabeleira. O que realmente dá início ao filme é um assalto a um Motel, onde o Trio Ternura (acompanhados de Dadinho) pretendia mudar de vida conseguindo todo o dinheiro que pudesse. O problema é que quando o trio pegou o dinheiro e fugiu… Dadinho, que era só uma criança, entrou no lugar e matou todas as pessoas. O massacre no Motel Miami foi um dos eventos mais assustadores da época e isso levou a polícia a estar sempre atenta na Cidade de Deus, mudando a vida do Trio Ternura inteiro.
Alicate, com medo de perder a vida, resolveu parar com a vida de ladrão e voltou para a igreja. Marreco leva uma bronca do pai e é colocado pra trabalhar, ao lado do seu irmão Buscapé. Esses dois são mais próximos do que parece, e Marreco foi a pessoa que influenciou seu irmão a sempre estar longe do crime. Cabeleira começou a morar com sua namorada, Berenice. Alicate não foi mais visto no filme, mas Marreco, enquanto vendia peixe pro seu pai, acabou por se meter em uma enrascada com o informante da polícia ao se deitar com a esposa dele. Esse informante, chamado Paraíba, acaba assassinando sua esposa com raiva ao descobrir, e Marreco tenta fugir da Cidade de Deus… mas é morto por Dadinho à tiros antes de conseguir.
Cabeleira decidiu sair do bairro com Berenice mas, no caminho, foi morto à tiros pela polícia que suspeitava dele no massacre. Ele esteve lá e roubou, mas não matou uma pessoa. Essa é a melhor cena do filme inteiro. Toda cena de Cabeleira com Berenice é acompanhada da música “Preciso Me Encontrar” do Cartola, mas ela sempre termina antes do instrumental acabar e começar a letra. A cena da morte de Cabeleira mostra o homem fugindo, correndo pela favela enquanto toma tiros, e sua amada Berenice assiste chorando e gritando dentro do carro enquanto é levada para qualquer lugar. No fim, quando Cabeleira cai e finalmente morre, a letra de Preciso Me Encontrar começa. “Deixe-me ir, preciso andar. Vou por aí a procurar. Rir pra não chorar.”
O próximo personagem importante que vamos falar sobre é Bené. Bené é o melhor e talvez único amigo de Dadinho, e desde a infância os dois ganham a vida juntos no crime. Bené é o cérebro e coração da dupla, sempre sendo a voz da razão para impedir Dadinho de matar todos que vê. Depois de um tempo na história, ele acaba se envolvendo com o grupo de amigos de Buscapé, os “Cocotas”, pessoal estudante. Ele se torna muito amigo deles e acaba por se tornar uma pessoa mais bondosa, e também namorar com Angélica, a menina que Buscapé gostava (ele não se importa muito depois de um tempo). Bené é um cara com muita empatia embora seja um dos maiores criminosos do Rio de Janeiro, e na sua festa de despedida de solteiro conseguiu reunir muitas pessoas de grupos totalmente diferentes, como estudantes, bandidos e evangélicos. E nela estava Zé Pequeno (o Dadinho). Nessa festa, Bené falou para seu amigo que iria se casar e comprar um sítio pra viver com sua esposa, e não ia mais trabalhar com ele no tráfico. Zé culpa Angélica por isso, a chamando de muitas coisas (como piranha, e outras que não vou dizer), acarretando em uma briga com Bené… onde ele é baleado e morto pelo seu amigo. Com a morte de Bené, tudo que restava da humanidade do Zé Pequeno se foi, e embora lamente a morte do seu amigo, nada faz para honrar a vida dele.
Então temos Mané Galinha, interpretado pelo Seu Jorge. Galinha era um ex-atirador do exército, que vivia em paz com trabalhos pequenos. Um homem de bom coração, que acabou por convencer Buscapé de uma forma ou outra a não entrar na vida do crime. Isso mudou na festa de despedida de Bené, onde ele foi humilhado por Zé Pequeno, que tirou suas roupas. Mas o pior (muito pior) veio depois da morte de Bené, quando Zé Pequeno estuprou a namorada do Galinha e matou seu irmão e tio na frente dele. Mané Galinha entrou em uma busca por vingança, completamente pessoal apenas para matar Zé Pequeno, e ao atirar em alguns dos traficantes, é tratado como herói pelas pessoas da Cidade de Deus. Mas isso não fez diferença, porque junto de Cenoura (eu sei que os nomes são estranhos, mas brasileiros se chamam por nomes assim mesmo) ele acabou por entrar no esquema de tráfico, com o único objetivo de conseguir armas e pessoal para matar Zé Pequeno. A única condição é que ele nunca iria matar inocentes. Isso foi real, até que sua vida foi quase tirada em um assalto, mas foi salvo por um tiro de Cenoura que matou um simples caixa. Toda regra acaba tendo uma exceção, e a exceção virou regra no próximo assalto, onde Galinha matou um homem inocente por tentar impedi-lo.
A briga de Mané Galinha contra Zé Pequeno criou um dos maiores conflitos do Rio de Janeiro, uma guerra que a cada dia ficava pior. Mais pessoas acabavam se unindo para um ou outro lado, inclusive muitas e muitas crianças, por qualquer motivo que podiam pensar. Uma dessas crianças veio com o objetivo de matar o assassino do pai. Esse é o filho do guardinha que Galinha matou por nada em um assalto, e o “herói” é morto por essa criança no conflito que terminaria a guerra.
Então, chegamos ao Dadinho, o Zé Pequeno. Ele sempre foi uma pessoa que sente prazer em causar dor aos outros, e sempre viu assassinato como a melhor escolha pra qualquer coisa. Normalmente ele era parado por Bené, um amigo de confiança. Embora o filme seja claro na sua mensagem desde o início, é bem possível que alguém romantize as ações do Zé Pequeno. É claro que a pobreza muda algumas pessoas; Bené por exemplo é um grande homem que teve que viver no tráfico, por vezes matando ao lado de Zé Pequeno. Mas as ações de Dadinho nunca foram por conta da pobreza. Ele é um psicopata, que não só faria qualquer coisa para chegar aos seus objetivos, mas faria todo mal que pudesse para qualquer pessoa que ele não gostasse ao menos um pouco. Se houvesse uma romantização das suas ações, o filme faz questão de quebrá-la quando Zé Pequeno abusa sexualmente de uma mulher inocente apenas por achá-la bonita, e para acabar com Mané Galinha de todas as formas. Falando sobre os outros personagens dá pra ver que Zé é sempre mencionado né? Ele sempre mata alguém, e isso é algo que liga todos os personagens da história. Buscapé também é ligado ao Zé Pequeno, porque foi ele que matou seu irmão Marreco. Zé Pequeno é morto por crianças após ser solto pela polícia por culpa da corrupção. Essas crianças estavam do lado dele na guerra de gangues, mas estavam lá apenas para assassiná-lo por ter matado um dos seus colegas e baleado outro (quando tinham no máximo quatro anos).
Por último, Buscapé (ou Wilson Rodrigues) é nosso protagonista e narrador. Seu sonho de ser fotógrafo começa pequeno, e embora sua vida entre em risco muitas vezes por conta dele, o menino conquista o que sempre procurou. De alguma forma, ele é o único personagem que tem uma espécie de final feliz. Os outros da história também se ligam a ele individualmente de maneiras diferentes. Seu irmão Marreco é responsável por fazê-lo focar nos estudos, a morte de Cabeleira o fez conhecer a câmera fotográfica que deu a ele seu sonho, Bené foi um grande amigo que o apoiou e tentou dar uma câmera pra ele (essa câmera só chegou nas suas mãos pelo Zé Pequeno precisar que ele tire umas fotos no futuro, porque Bené nunca pôde entregar já que morreu), Galinha o convenceu a não cometer um crime extremamente fácil e foi um ótimo exemplo para ele antes de se tornar um dos traficantes, enquanto Zé Pequeno (e Mané Galinha), na sua guerra, deram a ele a oportunidade de crescer no ramo de fotografia jornalística, sendo a única pessoa que podia trazer ao jornal fotos dos acontecimentos na Cidade de Deus. Ele arrisca sua vida por essas fotos.
Cidade de Deus é protagonizada por Buscapé e Zé Pequeno, de algum jeito, porque todos os personagens estão ligados à eles em acontecimentos e crescimento. Embora seja uma história real, a escrita de Cidade de Deus é impecável em desenvolver tudo que acontece no enredo, além de apresentá-lo muito bem. Mas eu fico meio mal em dizer “personagens” ou “desenvolvimento” porque isso é uma história de verdade e é esse meu ponto. O que você vê em Cidade de Deus não é uma boa história, são pessoas reais afetadas por problemas reais que não são apenas relevantes no passado, mas também extremamente atuais. No Rio de Janeiro ainda existem histórias como essa acontecendo, assim como no Brasil todo e por vezes até no mundo já que muitos outros lugares tiveram histórias como a nossa nação. O filme passa uma mensagem clara porque os personagens não são “realistas” — eles são reais.
Mas isso não tira os méritos do filme, que são muitos. Cidade de Deus é cinema no seu pico, com diversas maneiras muito experimentais e bem pensadas de executar sua temática. Por uma cena simples a tela pode ser coberta por um quadro escuro e um peixe, simplesmente para passar com exatidão o sentimento de um personagem. A maneira como a narração do Buscapé funciona é amplamente aprimorada pelo dinamismo na apresentação das cenas e no contar da sua escrita, por vezes sendo um filme até divertido quando não é absolutamente cruel. A seleção de músicas, ângulos de câmera e atuação são fenomenais, fazendo desse um dos filmes mais importantes do nosso país.
Mas o mais importante sobre Cidade de Deus não é sua qualidade técnica ou escrita, mas o sentimento. Esse não é um filme que vai te fazer chorar, e também não quer que você sofra apenas por sofrer. Ao terminar de assistir, eu entendi a vida muito melhor. Eu percebi muitas coisas sobre mim, não só sobre o país, e vi que eu preciso ser grata por cada segundo na minha vida. Mesmo nos momentos ruins, eu sei que as coisas vão melhorar. Elas sempre vão. Isso é algo que eu preciso sempre valorizar. Preciso valorizar as vidas que compõem a minha história, e percebo como sou pequena e ainda assim, importante. Todos nós podemos fazer diferença nesse mundo simplesmente vivendo e crescendo. Buscapé teve seu final feliz pela vida de outras pessoas que influenciaram a sua, e ele tirava algo bom de cada situação terrível que ele passasse. Nós podemos ser importantes pro mundo e pro universo, e não há nada tão horrível que não possamos suportar. Embora estivesse um pouco sensível pelo filme, passei a amar de verdade as coisas à minha volta, e principalmente as pessoas. Não consigo falar com exatidão os sentimentos porque são muito complexos, mas eu sei que queria muito abraçar meus pais chorando e mostrar o quanto eu amo eles. A vida é muito curta, mas ela pode ser muito especial. Tudo que é ruim, pode melhorar, mesmo que piore antes disso. Obrigada pela leitura.