Nossas expectativas informam nossas experiências. Crystar promete, desde seu estilo visual edgy e detalhado até sua posição como um grande JRPG de baixo orçamento, uma aventura repleta de emoções e um apelo cult.
Em Crystar, os olhos das protagonistas são a característica em maior relevo em seus designs, e seus sensos de moda aguçados tanto antes quanto após suas transformações de garotas mágicas vêm logo atrás.
Ele estava em minha lista de desejo por anos, apenas esperando para ser jogado algum dia. Ele tem tudo que eu quero em um JRPG indie, e ainda vinha com o bônus de um sistema de combate em tempo real, que é um estilo que eu amo incondicionalmente, seja em sua implementação em Ys, Kingdom Hearts ou até em Final Fantasy 7 Remake.
O seu aparente foco em personagens também chama atenção. Afinal, as quatro protagonistas e suas interações estão em todo lugar nos trailers do jogo, e este é um de meus maiores interesses em histórias de qualquer tipo de mídia.
Em uma reviravolta do destino, Crystar passou longe de quase tudo que ele buscava trazer à mesa, mas ao menos não por falta de vontade. Sendo desenvolvido pela FURYU Corporation e atualmente publicado pela NIS America, Crystar foi originalmente lançado para Playstation 4 e Steam em 2019.
Agora ele recebeu uma nova versão para Nintendo Switch que foi lançada em 29 de março, e é essa versão que vamos dar uma olhada hoje.
Crystar começa da mesma maneira que qualquer JRPG precisa começar. Ou seja, é meio chatinho. Essa é uma concessão necessária que jogos cheios de sisteminhas e números aparecendo a todo momento como esse precisam fazer pois, além de introduzir a gameplay, a história também precisa ser estabelecida.
E é a história que fica em primeiro plano no prólogo de Crystar. Você joga com Rei, uma garota de 15 anos que passa tempo demais em seu quarto jogando seu PS Vita e faltando na escola (ela é literalmente eu). Ela acorda repentinamente no meio do purgatório, onde a paleta de cores roxa, o vazio dos ambientes, e as almas em forma de borboletas formam uma imagem emocionalmente contrastante do lugar.
Enquanto guiada por uma alma desconhecida, mas estranhamente familiar, Rei acaba encontrando Mirai, sua irmã mais nova. Enquanto elas tentavam se achar no meio do fim do mundo, Mirai é atacada por uma criatura, e Rei descobre seus poderes vindos de sua forte alma ao tentar salvá-la.
Infelizmente, após lutar contra uma mulher misteriosa vinda do purgatório, Rei acaba matando sua própria irmã por não conseguir controlar seus novos poderes. Assim, ela assina um pacto com duas demônias do purgatório para tentar salvar a alma de sua irmã, que está rapidamente descendo pelo purgatório para ser reencarnada.
É bastante informação para o comecinho do jogo, e vai ficando mais e mais complicado a cada segundo. Um dos truques mais impressionantes de Crystar está na maneira em que ele condensa todas essas informações na hora de explicar pro jogador o que está acontecendo, e isso é algo que ele faz de dois jeitos.
O primeiro é na escala visual, onde todos os ambientes e personagens revelam claramente suas posições naquele mundo, como quando Rei recebe seus poderes e imediatamente ganha Heraclitus, um guardião que inicialmente parece servir para representar a força da alma dela visualmente.
O segundo é na escala mecânica, já que vários dos conceitos abstratos do purgatório também são usados como sistemas de gameplay. Um exemplo está no próprio Heraclitus, que é aplicado no jogo como uma transformação que Rei pode usar em combate quando ela enche sua barrinha de lágrimas.
Isso é surpreendentemente fácil de entender enquanto você joga. Muitos dos nomes estranhos e coisas do tipo são diretamente associados com mecânicas ou características visuais como uma mão invisível que te guia pro lugar certo.
Mesmo com o foco na narrativa, o prólogo ainda tem o trabalho de introduzir a base do combate, que foi quando eu comecei a me preocupar um pouco. Você só pode dar ataques normais ou fortes, e misturar os dois tipos em um combo não faz tanta diferença. Além disso, o simples ato de atacar faz Rei parar completamente para bater numa distância minúscula na frente dela, algo que deixa a ferramenta de lock on basicamente obrigatória para toda situação de luta.
Mas, como eu disse antes, não faz bem julgar um JRPG em seu prólogo, principalmente porque ele ainda nem teve a oportunidade de mostrar as outras personagens jogáveis, o sistema de equipamento, ou até outros tipos de inimigos além do único fantasminha estranho que você pode encontrar nas primeiras arenas.
As demônias que fizeram o contrato com Rei, Mephis e Pheles, querem que ela faça alguns “Ordeals” para elas porque, além dela ter que chegar na alma de sua irmã, Rei também deve juntar sete pedaços de “Idea”, que são formadas, segundo o próprio jogo, quando um humano excreta qualquer fluido corporal de maneira emocional. Sério.
Além de tudo, a coitada também tem que matar Specters e Revenants, que são os inimigos e os clássicos “inimigos especiais com muita vida/chefões” do jogo, respectivamente. É aí que as dungeons começam a aparecer.
Crystar é dividido entre suas dungeons e o quarto de Rei, que é mais um menu temático chique do que qualquer outra coisa. Quase todo seu tempo no jogo é passado nas dungeons, que machucam meu coraçãozinho ainda mais que a própria premissa emocional do jogo.
Design de níveis? Arenas distintas? Áreas de interesse para serem exploradas? NPCs? Cidades? ALGUÉM!?!?!?!?!
Crystar é um Dungeon Crawler inesperadamente purista, onde você só anda em um labirinto, pega um ou outro item, mata todos os inimigos que ver para não ficar atrás em nível, e vai pro próximo andar. Repita por umas 15 ou 20 horas, e é isso.
Olha, uma experiência tão focada assim não me assusta. Inclusive, isso até deixou as coisas mais interessantes no começo. Eu amo quando jogos não têm medo usar poucas ferramentas para passar suas mensagens de maneira mais coesa, mas isso aqui é um pouco demais, ou de menos nesse caso.
Pra começar, as dungeons não tem nada além de inimigos. Não tem quebra-cabeças, armadilhas, ou qualquer outra coisa, e os layouts delas não têm nenhuma diferença entre si. Uma dungeon do 1º capítulo tem quase a exata mesma estrutura de uma do 6º.
Visuamente, elas também são bem parecidas umas com a outras. A cor do céu muda, algumas partes de civilização diferentes ficam jogadas por aí, mas é isso. Elas têm uma certa vibe, mas as diferenças não vão além do que você já consegue perceber num primeiro olhar.
E a falta de variedade de inimigos só deixa isso pior. São apenas oito tipos no jogo inteiro. Quando você chega no 4º capítulo, todos eles já foram introduzidos. Ou seja, as arenas que já são parecidas até demais ficam mais unificadas ainda com os poucos inimigos disponíveis.
No diário de Rei, onde você pode ler e reler toda a lore e história do jogo, ele dá a entender que tem 99 tipos de inimigos, contando os chefões. Surpresa: mais de 90% deles são ou versões recoloridas dos mesmos oito inimigos, ou, pior ainda, exatamente iguais com nomes e entradas de diário diferentes.
É bom saber que os desenvolvedores dedicaram tanto tempo para escrever pedaços de história para os Revenants do jogo, mas é deprimente ver tantas descrições diferentes para inimigos com o exato mesmo modelo flutuando na sua frente.
Inclusive, preciso falar dos Revenants. Eles são almas de pessoas que querem adquirir Idea para reviver coletando almas tanto no purgatório quanto ao matar pessoas inocentes no reino dos vivos. Dentro das dungeons, eles são apenas uma versão brilhante de um inimigo básico, mas com muito mais resistência à dano.
Ao menos no começo eu tinha ficado interessado na repetição de Crystar, de maneira parecida com o loop complexo de outro jogo que se passa em uma pós vida deprimente, The Void. Mas, ao jogar mais e mais, eu fui percebendo que os sistemas de Crystar provavelmente não vieram de um senso de integridade artística, mas sim de descuidos e uma escala ambiciosa demais. Eu falo mais disso depois.
Agora, vamos falar um pouquinho da estrutura de história dele. Assim como em vários RPGs divididos em capítulos, Crystar tem momentos específicos onde a história avança, que costumam ficar no final de cada uma das dungeons e no quarto de Rei.
Nas dungeons, Rei vai encontrando pouco a pouco mais garotas com histórias extremamente tristes para amigar, mas isso também significa que boa parte dos primeiros quatro capítulos acabam virando apenas introduções longas à cada uma das quatro personagens jogáveis.
A história até avança um pouquinho nesses capítulos já que no fim das contas Rei ainda consegue uma Idea em cada um deles, mas isso gera um sentimento desconexo na relação entre as heroínas, já que elas ficam em segundo plano na importância narrativa daquela parte do jogo.
A primeira que você encontra é Kokoro, uma mulher de 21 anos que deveria ser banida de pisar em 30 quilômetros ao redor de uma escola, porque ela faz questão de dar em cima da Rei (que novamente, tem 15 anos) em toda oportunidade.
Ignorando essa parte bizarra da equação (que é algo que você sempre deve fazer com obras com estilo anime), Kokoro é relativamente bem desenvolvida.
Conforme o capítulo introdutório de Kokoro avança, tanto ela quanto a Rei vão aprendendo sobre o passado dela por meio dos flashbacks perfeitamente rabiscados do jogo, onde você descobre o que levou ela à fazer seu pacto com Mephis e Pheles.
Essa evolução também se aplica pedaço por pedaço à Sen, a terceira personagem principal. Mas, para Nanana as coisas são diferentes (e sim, ela se chama Nanana mesmo).
Nanana é uma Revenant criança sem memória de sua vida passada, então ela só fica por aí tentando se divertir. Diferente dos outros Revenants que são caracterizados como maliciosos e egoístas, Nanana literalmente só quer brincar.
De todas as personagens do jogo, ela é a que mais se destaca narrativamente. Boa parte da melancolia de sua história vem de implicações que são feitas com muito cuidado por parte dos desenvolvedores. Isso faz com que ela consiga passar um bom pedaço de seu capítulo demonstrando sua personalidade e tendo diálogos com o resto do elenco que não precisam ser dedicados totalmente à contar a história de vida dela.
Então o 4º capítulo acaba se tornando o que mais demonstra a dinâmica entre o grupo antes do resto dos capítulos chegarem pra mudar de assunto rapidamente. Mesmo sendo tão insuportável em questão de dungeons quanto o resto, ele acabou sendo o meu favorito.
A partir do quinto, Crystar sai do reino de suportável e desce direto para a dor de cabeça. Isso tanto em questão de história quanto em gameplay. As dungeons ficam mais longas, os inimigos recebem mais e mais vida, e a história começa a tomar alguns rumos preocupantes, que acabam se tornando problemas que permeiam até no final do jogo.
De todos, o maior é o da personalidade das personagens. Em momentos importantes da narrativa, diversas personagens trocam completamente suas personalidades repentinamente para gerar algum conflito que a história precisa ter na hora, e doeu muito ver as consequências dessa escolha bizarra.
Em pelo menos quatro vezes na história isso acontece. Uma delas é no 5º capítulo, e me deixou de boca aberta de tão sem sentido. Mas, para não dar spoilers dessa parte valiosa, vamos para a primeira vez que esse tipo de mudança repentina acontece, que é no 2º capítulo e foca na história de Kokoro.
Durante os flashbacks do 2º capítulo, vemos o desenrolar da relação entre Kokoro e o garoto que veio a ser seu namorado da faculdade. Ela acabou ficando grávida dele, e os dois concordaram em cuidar do bebê juntos após seu nascimento. Essa é claramente uma história fofinha e positiva demais para um jogo chamado “estrela do choro”, então é claro que isso vai por água abaixo eventualmente.
No fim do capítulo, após Kokoro achar seu namorado na forma de um Reventant, é revelado para Rei que Anamnesis, mesma mulher que trouxe ela ao purgatório para matá-la, matou o namorado de Kokoro e o bebê dentro dela para sugar suas almas, enquanto ela conseguiu escapar.
É por isso que ela fez o pacto. Ela quer vingança com o que Anamnesis fez com o que iria se tornar a família dela. Uau, essa história parece interessante, não? É raro ver um jogo abordar a situação de uma mãe que perdeu o bebê (e seu namorado), e o reencontro dos dois provavelmente vai dar uma cena emocionante, não é?
Eu estava esperando que o namorado dela tinha se tornado um Revenant por causa de sua vontade de reencontrar Kokoro acima de tudo, o que traria um momento dolorosamente real para a narrativa, onde ele abandonou até sua própria humanidade para ver sua amada de novo, e ela teria que decidir o que fazer com ele naquela forma.
Mas não. O capítulo decide ser resolvido com uma completa recaracterização do namorado de Kokoro, que revela que ele odiava ela, não liga para seu próprio bebê, e virou um Revenant apenas para “se vingar” dela. O jogo não dá nenhum motivo tangível pra justificar isso.
E o pior é que o arco perfeito para uma história dessa se escreve sozinho. Tipo, eu literalmente acabei de descrever ele agorinha. Agora, o que exatamente a mudança de personalidade do namorado de Kokoro está fazendo ali? Novamente, esse tipo de coisa acontece em quatro ocasiões diferentes em Crystar. Isso não é só uma coincidência, mas sim um tema, mesmo que lidado de maneira ruim.
Ele serve não só para gerar mais força dramática (como se o resto da história já não fosse dark o suficiente), mas também para passar a mensagem de que as vezes até as pessoas mais próximas de você podem trair sua confiança. O problema não está na mensagem existir no jogo, mas sim na execução dela.
Kokoro consegue seguir em frente após ter que destruir a alma de seu ex-namorado, mas isso não afeta a personagem dela tanto quanto deveria. Inclusive, a traição dele é quase inteiramente esquecida pelo roteiro, tirando a conexão que tal traição tem com a vilã, Anamnesis.
Ou seja, a mensagem foi enfiada ali sem muito cuidado para ela não entrar em conflito com as outras trocentas implicações que são feitas por aquela história em particular. Pior ainda: no caso do 5º capítulo, essa desculpa temática nem se encaixa. Novamente, eu não quero spoilar o porque, mas posso dizer que é uma troca de personalidade extremamente repentina que quebra completamente o ritmo do jogo. E acontece de novo lá para frente, no segundo final de Crystar.
As personagens, por mais que as vezes demonstrem personalidades fortes, não conseguem muito tempo de interação no meio do jogo, e isso é exacerbado pelo jeito rítmico que Crystar distribui suas cutscenes. Você pode sempre esperar uma no começo da dungeon, uma no fim, e várias nos bosses.
Em pouquíssimas ocasiões essa regrinha é quebrada, e isso te deixa sempre em um estado de antecipação previsível. Você vai aguentando o combate dolorosamente repetitivo pela dungeon inteira com o cérebro no automático até se deparar com a história complexa, onde você deve ligar tudo o mais rápido possível.
As coisas não ficam melhores no quarto de Rei. Lá, além de selecionar a próxima missão, você pode fazer carinho na sua cachorrinha (que é importante), salvar seu jogo, conversar no telefone em seções determinadas da história (e sempre obrigatórias), e… chorar.
Sim, chorar é uma mecânica. Ao matar Revenants, Rei consegue absorver suas memórias para si mesma, o que gera tormentos, que podem ser expurgados por meio de Sessões de Choro™ que por sua vez geram os equipamentos que Rei e suas amigas podem usar em combate.
Isso pode até parecer uma incorporação legal da base forte emocional do jogo, mas acaba meio que sendo o contrário. Em primeiro lugar, os equipamentos apenas oferecem mudanças estatísticas ao combate. Na prática, todas as espadas da Sen, por exemplo, são exatamente iguais em combos, animações e velocidade, desde as primeiras até as últimas.
Dói um pouco ver sua evolução de equipamento ser ofuscada rapidamente pelo nível crescente dos inimigos, já que, na prática, os seus encontros com eles são exatamente iguais durante o jogo inteiro. Seu arsenal é sempre o mesmo, e os ataques dos oito tipos de inimigos também são os mesmos.
Outra parte do sistema de tormentos que machuca meu coração é o fato dele ser completamente aleatório. Funcionalmente, todo sistema de loot é aleatório em um JRPG, mas já que você só pode usar e aumentar o nível de seu equipamento entre as dungeons de Crystar, e não durante elas, não saber o que você tem em mãos é muito menos satisfatório, e tira parte da agência do jogador.
Você não tem escolha de qual material priorizar para melhorar suas armas, pois a loja fica no meio das dungeons, e o lugar onde você saca seu loot fica fora delas.
Mas aí eu já estou entrando demais no cérebro estatístico e sistemático de JRPG, e eu prometi pra mim mesmo que não ia implicar com esse tipo de mecânica quando comecei a escrever isso. Aliás, eu prometo que minhas próximas análises e recomendações de RPGs (que vão ser meu foco esse ano!) não vão ser tão pesadas nas partes técnicas dos jogos quanto essa aqui. Eu só acho que foi necessário no caso de Crystar por causa de seus problemas numerosos e ocasionalmente escondidinhos no meio de muitas camadas.
Ok, voltando ao choro da Rei. Além de trazer problemas mecânicos, a implementação dele como algo rotineiro, e ainda feito por escolha própria do jogador, diminui seu impacto na narrativa. Quando Rei chora na história, é difícil se colocar no lugar dela, tanto por causa do uso de suas lágrimas como mecânica quanto pois sempre que ela (ou qualquer outra personagem) chora no purgatório, um cristal de Idea é gerado ao mesmo tempo.
É difícil lidar com os diversos pontos de clímax emocional em uma história, porque nestes momentos os escritores devem se restringir. Para um momento desses funcionar, é necessário que todo o peso alheio da cena seja colocado de lado, ao menos por um momento, para a audiência conseguir ter tempo de conectar com aquilo. É um balanço difícil, mas Crystar não chega nem a tentar manter ele.
For when I weep, then I am strong.
Pois quando eu choro, então sou forte.
Essa é uma das teses mais importantes do jogo, e por mais que ela seja um tema recorrente que está sempre presente de alguma maneira, como é o caso das partículas de lágrimas constantes que você vê saindo dos olhos das protagonistas ao andar pelas dungeons, o impacto é diminuído na prática.
Nas partes mais emocionantes de Crystar, ele ignora os próprios sentimentos que a própria cena quer passar para te mostrar claramente que sim, você conseguiu mais um dos cristais que precisa pra seguir em frente com o roteiro.
Os cristais de Idea provavelmente iam funcionar muito melhor como um gancho narrativo se eles não fossem representados fisicamente no purgatório. Em todas as telas de carregamento, o jogo já faz questão de te mostrar quantos você tem até então. Você já tem a confirmação de progresso ali, então ver os pedaços de Idea sendo gerados em tempo real no meio de uma morte ou revelação importante não é necessário.
Pois é esse o maior tropeço. A presença de Idea nesse contexto só serve para remover mais ainda o impacto de uma cena emocionante. É assim que Crystar falha até no que ele quer transmitir narrativamente.
Não me leve a mal, porque eu amaria amar Crystar. É uma pena que ele não consiga antingir coesão temática. Eu realmente queria que ele entregasse uma história extremamente emo cheia de clichês do gênero bishoujo e garotas mágicas com poderes relutantemente lutando por algo que elas acreditam, mas trabalhando para entidades misteriosas com um viés moral no mínimo cinza-escuro.
Sim, eu provavelmente estava esperando que Crystar ia ser tipo um Madoka Magica emo, eu admito. Mas, nessa altura do campeonato, eu esperava qualquer coisa além do que recebi.
Opa, eu quase cheguei perto de um ponto futuro aqui. Calminha aí, eu ainda tenho uma coisa importante para terminar de dizer.
Há um tempinho atrás, eu disse que — ao jogar mais e mais, eu fui percebendo que os sistemas de Crystar provavelmente não vieram de um senso de integridade artística, mas sim de descuidos e uma escala ambiciosa demais — não é? Pois bem, nós andamos o suficiente pra chegar nesse ponto.
Parte 2 — a prisão invisível de Crystar
Ok, me ouve um aqui por um segundinho: JRPGs são estranhos.
Eles começaram como tentativas de transcender as limitações da escala que era possível em um console como o Nintendinho. Os primeiros jogos proeminentes do gênero, como Dragon Quest, eram parte de uma interpretação japonesa do que os jogos de RPG ocidentais de computador da época, como a franquia Wizardry, estavam tentando fazer.
Por sua vez, estes jogos ocidentais eram fortemente inspirados no jogo de tabuleiro Dungeons & Dragons, que se destaca como um jogo complexo em que cada “campanha” pode ser marcada como uma grande aventura.
Enquanto os jogos de RPG ocidentais focavam seus esforços em entregar uma experiência imersiva onde o jogador possui completa liberdade, os japoneses foram para outro caminho, com protagonistas definidos e histórias lineares. Como jogador, você basicamente atua como o protagonista, ao invés de criar ele diretamente.
Existem inúmeras outras diferenças entre os dois tipos principais de RPG (e seus infinitos derivados), mas curiosamente, os dois acabaram compartilhando de um problema em comum conforme o tempo foi passando: a dependência em expectativas.
Depois de um tempo jogando JRPGs, você vai começar a perceber similaridades que vão muito além da base de imersão que o gênero promete. As pequenas cidades cuidadosamente espalhadas entre as dungeons principais, os sistemas de equipamento, a insistência atemporal desses jogos de te fazer enfrentar algum deus em seu fim, e inúmeras outras semelhanças.
Quando os desenvolvedores dos jogos atuais desse gênero cresceram jogando diversos jogos do mesmo tipo no passado, eles acabam pegando inspiração direta neles, e ela acaba se estendendo até à partes desnecessárias, como algumas das que eu citei agora.
Isso não é o fim do mundo e nem das possibilidades criativas, mas acaba machucando o produto final das ambiciosas visões que os desenvolvedores de jogos de RPG ainda carregam até hoje, tanto no ocidente quanto no oriente.
Claro, todo gênero de qualquer mídia acaba passando por isso quando se torna estabelecido, mas este é um fenômeno mais reconhecível em jogos, por que até as maneiras que você interage com o mundo podem ser clonadas ou pegas como inspiração.
Crystar pode não conter todos os clichês de todos os dungeon crawlers já feitos, mas ele tem o suficiente deles espalhados por aí para o prejudicar imensamente.
Para começar, quase todos os seus sistemas de combate sofrem por tentarem lembrar uma clássica estrutura de outros RPGs de ação. O time de desenvolvimento de Crystar foi pequeno, então eles tiveram que escolher bem eles iam colocar a maior quantidade de detalhes. Infelizmente, a escala do jogo é tão grande que quase nenhuma área dele parece ter recebido atenção especial, além da arte 2D de personagens impressionante.
Ou seja, o sistema de combate me traz dor física. Sério. Ele é lento, travado e tão repetitivo que literalmente faz meus dedos doerem após uma sessão longa de apertar o botão de ataque sem parar por horas.
Eles insistiram em montar um combate similar ao de jogos como Ys ou a franquia Tales, com skills, combos e diversos personagens, mas, provavelmente por uma falta de recursos, eles não conseguiram chegar nem aos pés dos mais simples jogos de hack and slash do mercado.
Mesmo assim, o sistema de combate ainda está no jogo daquele jeito, e com só oito tipos de inimigos diferentes, é difícil dizer que tem alguma parte dele que eu manteria no jogo. Eu talvez vá longe demais no que vou falar agora, então pode ignorar se for demais, mas: talvez Crystar funcionaria melhor como uma visual novel.
Eu até iria elaborar essa ideia que acabei de dar, mas seria prepotente demais querer argumentar uma mudança tão grande pra um jogo feito com tamanha paixão como Crystar.
Paixão essa que eu não considero como negativa ou positiva no seu impacto dentro da experiência, mas que é um aspecto imprescindível que me fez respeitar sua direção pela confiança que os desenvolvedores botaram nela.
Lamentávelmente, até presença de dungeons opcionais para você conseguir alguns níveis extras vai contra o que o próprio jogo quer fazer. E todo o sistema de melhoria de equipamento também, na real.
As dungeons aderem completamente à filosofia de dungeon crawlers mais hardcore como Shin Megami Tensei, mas elas não entregam a profundidade necessária para justificar suas inclusões. Elas são tão indistintas que fica bem fácil se enganar e pensar que elas são geradas aleatoriamente.
Elas fazem sentido como uma maneira de representar a repetição e o vazio do purgatório, mas não de maneira intencional. Se essa repetição intensa fosse mais trabalhada dentro do roteiro e história do jogo, eu até ia apreciar ela de certa maneira, mas esse não é o caso.
Fãs de JRPG esperam jogos longos. Ainda mais quando os jogos em questão não têm um grande orçamento. Isso pode parecer contraintuitivo, mas é algo que vem dos jogos antigos do gênero, como Romancing SaGa ou alguns Dragon Quest(s). Já que eles eram feitos por times grandes e o tempo de desenvolvimento para consoles antigos era bem menor, eles podiam se dar o luxo de encher os jogos de conteúdo.
Isso é uma tendência que é facilmente vista até hoje em jogos como Persona 5 e a franquia Xenoblade, que são jogos absolutamente enormes que não se colocam como prestigiosos jogos AAA. Enquanto isso, os jogos que querem ser colocados como prestigiosos jogos AAA como Final Fantasy 7 Remake acabam conseguindo se livrar com menos conteúdo, mesmo que ainda seja um jogo enorme.
Assim, uma falsa percepção é gerada pelos fãs de JRPG. Fica implícito que Crystar “deveria” entregar o mesmo tipo de experiência que um Persona 5 ou Ys IX, quando na verdade eles estão em reinos completamente diferentes de escala. De qualquer maneira, quem acaba se ferrando é o estúdio FURYU.
Eles escolheram criar um jogo que acabou, de um jeito ou de outro, entrando nessas expectativas por causa de seu visual extravagantemente low poly, o que não só gerou um problema de escala, mas também de conteúdo.
Eu andei escondendo uma das coisas que mais me incomodaram em Crystar, mas chegou a hora de falar disso. Os finais.
Não se preocupe, eu não vou dar nenhum spoiler por aqui. Eu só vou falar de um pequeno aspecto relacionado à eles, que é a repetição. Quando você termina Crystar pela primeira vez e vê seu primeiro final, você não recebe créditos, e nem volta para o menu do jogo, pois ele te joga lá para o prólogo novamente.
E esta revisita é ótima. Ela (inicialmente) inexplicavelmente altera várias coisas dele tanto para resolver vários mistérios em aberto quanto para gerar mais alguns novos. É algo planejado que deixaria o final incompleto se não estivesse ali. Mas daí o jogo só… não acaba ali.
Depois de terminar a revisita ao prólogo, a sua transição de capítulo novo aparece. O 1º capítulo passa reto, e então o 2º, e o 3º. E o 4º o… e o 5º.
O subtítulo para de rolar quando ele passa pelo 6º capítulo, e então você só começa a jogar dali até o fim, de novo. Agora você deve rejogar o 6º, 7º e 8º inteiros para conseguir o próximo final. Os inimigos são os mesmos, as animações e ritmo das cutscenes também, e até pedaços do diálogo, mas algumas coisas mudam.
Neste caso, as ações que algumas das personagens tomam, e principalmente (e só pra piorar a situação), os inimigos ficam mais fortes.
Essa é uma progressão natural. Afinal, eles são só um pouquinho mais resistentes que os inimigos recoloridos do 8º capítulo que você terminou agora há pouco. Mas, isso também quer dizer que você vai ter que basicamente demorar a mesma quantia de tempo pra passar dessas dungeons que já são repetitivas, de novo.
Foi aí que eu quebrei. Eu estava seguindo minha regrinha pessoal de lutar contra todos os inimigos que eu encontro até esse ponto, mas quando eu vi que teria que rejogar os capítulos, eu desisti e só enfrentei os grupos de inimigos que tinham um Revenant no meio, para eu poder melhorar meu equipamento ao menos.
Acho que já dá pra prever que isso aconteceu, mas sim, eu acabei tendo que ficar uns 20 minutos batendo interminavelmente no chefão final porque estava com nível baixo demais. E sim, é o mesmo chefão final que você enfrenta na primeira rota do jogo.
O que acontece em seguinte é uma cutscene final extremamente confusa que eu não irei spoilar, e daí… Você volta pro prólogo de novo. Também sem os créditos. Quando eu cheguei nesse ponto, meus dedos já estavam doendo de tanto apertar o botão de ataque pra matar o boss final de novo, e eu acabei deixando o jogo por aí.
Pesquisando um pouco depois eu descobri que são quatro finais diferentes no total, e eu peguei dois deles. De maneira similar aos principais finais de NieR: Automata, você pega eles de maneira linear, e não fazendo escolhas. É só seguir terminando o jogo e você chega no final real.
Mas diferentemente de NieR: Automata, que oferece campanhas completamente diferentes para adicionar mais à experiência, Crystar simplesmente te obriga a repetir o jogo incessantemente.
Crystar é grande demais em escala para o que os desenvolvedores conseguem colocar em um jogo de baixo orçamento. As grandiosas ideias de vários finais acabam tendo que ser simplificadas imensamente para eles atingirem todos os pontos da história necessários para a conclusão real.
Isso faz de Crystar um jogo refém de suas próprias grandes ideias, que no fim das contas só precisava ter sua duração e ambições cortadas um pouco para não ser tão imensamente repetitivo do jeito que acabou se tornando. Em alguns pontos, parece que o próprio jogo não respeita seu tempo, e então fica fácil acreditar que você não deveria estar gastando horas de sua vida repetindo as mesmas ações incessantemente para no fim das contas só poder ver algumas cenas extras em um jogo.
Eu comecei a minha jogatina de Crystar com olhos atentos, tão detalhados quanto os das personagens. Eu anotei cada termo da história, li e reli todas as entradas no diário, e tratei tudo com a intenção de me perder em um JRPG tão esteticamente denso como ele.
Eu terminei Crystar inteiramente desconectado dele. Apenas seguia em frente enquanto pensava em outra coisa, até chegar no diálogo e ter que encará-lo tanto com a preocupação de analisar a história, quanto com medo do quanto realmente faltava para o jogo finalmente acabar. Em seu fim, ele é só uma sombra zumbificada do que prometia em seu início.
O que me fez trocar a minha atitude não foi só a repetição no final do jogo. Desde seu início, Crystar já dá sinais de que é apenas um pedaço do que ele promete. Ele só demorou para desiludir alguém que amava tanto a ideia dele quanto eu.
Essa é a clássica mudança pro “piloto automático” que você provavelmente já sentiu também. É só uma pena que Crystar teve que ser assim.
Uma cópia gratuita de Crystar para a plataforma Nintendo Switch foi concedida pela NIS America para análise no Recanto do Dragão.