Parte I — introdução
Dentre os jogos da seminal franquia de JRPG Dragon Quest, o quinto está dentre alguns dos que mais se mantém na consciência dos fãs. Jogos únicos do Dragon Quest a serem discutidos não estão em falta, então se destacar no meio de um lineup desse naipe é uma tarefa considerável.
Dragon Quest V começou com uma reputação repleta de mistérios quando foi lançado originalmente no dia 27 de setembro de 1992, apenas para Super Famicom. Ele foi o primeiro da série a não ser lançado fora do Japão, o que entristeceu e intrigou fãs internacionais da época. O jogo levou consigo muitas “primeiras vezes”, porque também foi o primeiro feito para a quarta geração de consoles, o primeiro a apresentar uma sequência de introdução enorme, o primeiro a deixar o jogador recrutar monstros (quatro anos antes de Pokémon, e no mesmo ano de Shin Megami Tensei!), entre diversos outros. Mas, na verdade, ele é um tanto tradicional quando você chega na hora de fazer dungeons e explorar cidades. Nem só isso, pois todas as outras assinaturas de Dragon Quest estão presentes em V.
As mini-medalhas, sistema de grupos, economia e navegação continuaram intactas, por exemplo. Seguindo a mesma filosofia que a franquia inteira perpetua até hoje, Dragon Quest V não ousa tocar nos pilares que formam a experiência destes jogos, mas não tem medo de rearranjar todo o resto da construção para encaixar em seu objetivo.
No caso do quinto jogo, este objetivo é te demonstrar a vida inteira de um herói, de seu nascimento até o ápice de seus feitos. Para isso, ele não precisa exatamente ser o herói profetizado pelas lendas, mas sim um cara muito gente boa com um nariz aguçado para arranjar informações e persistência para lutar contra qualquer obstáculo.
As trágicas reviravoltas da vida do protagonista, junto de seus triunfos, são parte do que tornam Dragon Quest V uma experiência tão graciosa. Sabe o que é mais impressionante ainda? Ele fez tudo isso em 1992, seguindo apenas um enredo simples e inspirações vindas das partes mais mundanas possíveis de obras artísticas e experiências de vida.
Opa, eu quase revelei coisa demais, cedo demais. Cheguei bem perto de arruinar esse texto sem nem ter começado ele direito, que vergonha. Ok, vamos começar isso aqui pelo começo, que por motivos inexplicáveis em menos de algumas milhares de palavras deve envolver o porquê e o como eu decidi jogar Dragon Quest V.
No momento em que escrevo isto, tenho 19 anos. Eu tive uma infância feliz e apropriadamente nostálgica, onde brincava com meu irmão e meu primo na casa de minha avó diariamente, e onde as vezes (muitas vezes no meu caso) jogávamos videogame no final das tardes pós escola. Eu fui dono de tão poucos consoles que posso citar todos eles sem te entediar nesse parágrafo: Um Mega Drive, Playstation 1, Playstation 2, PSP, Xbox 360, PC e Nintendo Switch, respectivamente (o PC realmente destruiu minha vontade de jogar em consoles depois de 2011). Neles, eu jogava tudo o que conseguia comprar na feira. Muitas vezes isso incluía jogos infantis, algumas curiosidades estranhas e um ou outro AAA, mas já que eu não sabia absolutamente nada de inglês, RPGs nunca eram recomendados para mim pelo atendente.
Acabou que eu acabei realmente aprendendo um inglês jogando e solidifiquei isso com treino, uma escola de línguas e uma overdose de exposição à internet falante de inglês e a cultura peculiar que a acompanha. Assim, eu acabei descobrindo que aquele jogo todo em japonês com personagens da Disney em que eu passei 100 horas no tutorial (não tô exagerando) se chamava Kingdom Hearts, e que ele misturava a Disney com um tal de Final Fantasy. Hm, o nome não me soava estranho, mas ele parecia confuso demais pra mim. No Kingdom Hearts eu podia esmurrar o X até acabar com todos os inimigos, mas esse Final Fantasy parecia mais, estratégico? Você tinha que bater nos carinhas em turnos, e eu não era (e ainda não sou) muito bom com estratégia ou puzzles, então tinha resolvido passar.
Depois de alguns anos e uma playthrough indescritívelmente bizarra (e divertida) de Final Fantasy XIII induzida por eu ter ouvido que o cara do Kingdom Hearts também fazia parte do time de FF, JRPGs se tornaram uma curiosidade passageira minha. Meu interesse por eles ia e voltava, mas quase nunca acabava com eu realmente terminando um jogo do gênero antes de parar para jogar, sei lá, Hexen II ou algum outro FPS dos anos 90 do tipo no lugar.
O que eu quero dizer com essa história toda é que eu não sabia nada sobre JRPGs até 2020. Foi nesse ano que eu resolvi dar uma chance para o Final Fantasy XV e Undertale, e foi aí que minha curiosidade se tornou obsessão. Em 2021 eu busquei jogar a maior quantia possível de jogos de todos os tipos e de todas as épocas, e eu diria que mais ou menos consegui atingir meu objetivo. Dentre os 124 jogos que consegui terminar naquele ano infernal cheio de procrastinação, o gênero que mais se destacou para mim foi, bem, o JRPG.
As franquias Ys, Kingdom Hearts e os jogos Copper Odyssey e Xanadu Next foram alguns dos maiores destaques para mim dos que joguei no ano, e me convenceram a focar minha jornada com jogos em 2022 nesse gênero. Uma parte do meu plano é arduamente detalhada, enquanto a outra é basicamente inexistente. Eu estou basicamente fazendo um freestyle de decisões, mas ao mesmo tempo catalogando muitas opções (eu vou deixar para você decidir se a rima foi de propósito ou não).
E aí que finalmente damos a volta em círculo e chegamos ao Dragon Quest de novo. Como parte do meu plano mirabolante, eu acabei esbarrando no primeiro jogo da franquia (ele faz parte da minha categorização de “jogos importantes historicamente que provavelmente envelheceram super bem” [e olha que muitos jogos importantes historicamente envelheceram bem!]) e resolvi jogar a versão de celular dele, que era uma de suas inúmeras remasterizações e custava só R$8,00. Você pode estar me julgando bastante por ter jogado um JRPG inteiro no celular, mas não se preocupe, porque você agora vai poder me julgar mais ainda. Eu não só zerei o primeiro jogo do Dragon Quest assim, mas o quinto também.
Então é, as prints com certeza já spoilaram isso, mas a versão que eu estou falando sobre aqui é a mobile. Ela é basicamente um port direto da versão de Nintendo DS do jogo com algumas adaptações para funcionarem com a touchscreen do aparelho, e uma orientação completamente vertical que substitui as duas telas do DS. Ou seja, não se preocupe. A Square Enix teve o respeito de não desfigurar o jogo com suas malandragens de monetização.
Agora, porque Dragon Quest V? Depois de terminar o I, eu saí feliz, mas ainda insaciado. Eu queria outro jogo da franquia para enfiar meus dentes, e o protagonista do V me pareceu interessante. Ele se veste como um pastor de ovelhas, e a arte do Akira Toriyama dele o representa como um cara meio emburrado como adulto (assim como seu pai Pankraz), e sorridente como criança. Pera, criança? É, não tem tanta história do porquê eu fui encontrado por Dragon Quest V. Ele me caçou do mesmo jeito que fez com outros interessados: mostrando sua dinâmica de envelhecimento.
Parte II — Dragon Quest V
Se você manja do Dragon Quest V, o que irei falar agora não é nenhum mistério. Seu protagonista começa como um bebezinho por uma cena, passa a introdução como criança, e vai gradualmente crescendo conforme a história avança. O jogo implica a passagem de tempo tanto quando ele simplesmente faz um timeskip quanto ao realmente mostrar que meses se passam entre suas visitas às cidades e dungeons.
Dito isso, a introdução não poderia ser mais perfeita. Na versão original de SNES ela já era boa, ao demonstrar um microcosmo guiado de exploração com você assistindo seu pai lutar contra monstros, e depois ser solto para explorar Whealbrook, a primeira cidade do jogo. Mas, de maneira surpreendente, a versão de DS/Mobile ainda adiciona mais interações com NPCs e até uma cena extra com um tal de Mr Briscoletti e suas filhas Debora e Nera, que vão vir a ser importantes muito depois.
Em Whealbrook o herói também conhece Bianca, sua amiga desde pequeno (sim, desde quando ele só tinha 4 anos!). O pai de Bianca está doente, então a mãe dela pediu para um cara buscar uma erva medicinal em uma caverna com o fim de curar o pai da menina. Inesperadamente, ele sumiu, e o nosso protagonista de 6 anos foi afobado para a caverna sozinho à procura do homem sumido.
Essa é a primeira ação corajosa e estúpida de nosso herói, e define sua personalidade mesmo sem dizer nenhuma palavra. A primeira dungeon não é uma aventura em busca de um artefato ou um pedido expresso de alguém, mas sim uma criança xeretando a vida de alguns adultos porque, bem, na real ele só quer ajudar.
Pankraz, o pai do garoto, também é caracterizado dessa maneira desde o início. Todos o veem como um cara honesto que busca ajudar, e a natureza do pai implica que o herói só é dessa maneira por causa da influência dele.
Todas as encrencas que o protagonista se envolve quando criança vêm do quão xereta ele é, e do quanto ele gosta de ajudar as pessoas com quem ele se importa. Um exemplo disso pode ser visto logo após você ter resolvido a situação da erva medicinal, quando o herói e a Bianca vão sozinhos explorar as Torres Uptaten, que são ditas como mal-assombradas pelas crianças locais de Roundbeck. O motivo? eles querem ajudar um gato de dentes-de-sabre que sofre bullying dessas mesmas crianças.
A torre traz em questão múltiplas dúvidas sobre a natureza do que as crianças estão vendo nela, já que os fantasmas de lá parecem fantasiosos de mais para serem reais, mesmo considerando que Dragon Quest em si já é uma franquia de fantasia.
Mas esse misticismo não é acidental, pois diversas partes da infância do protagonista são apropriadamente nebulosas. Ao terminar o jogo e ficar distante destas primeiras horas, elas começam a parecer as lembranças rasas que você tinha sua infância, que nem quando você não conseguia lembrar se realmente conversou com a fada dos dentes em uma madrugada solitária de 2007 ou não. Case in point, sua visita ao mundo das fadas junto do Saber (sim, você adotou o gato pra si mesmo).
Uma fada chamada Honey só te arranca de seu mundo para ajudar a terra das fadas, que está passando por um inverno permanente devido ao roubo do Herald of Spring (Arauto da Primavera). Toda essa seção da introdução parece irreal e completamente desconectada da história principal, mas esse não é o ponto dela. O que Dragon Quest V quer fazer com você é apresentar um monte de aventuras místicas com uma visão infantil simplista delas, e depois as solidificar ao retornar à elas. Ele consegue esse feito ao retornar a cada um dos locais explorados em sua infância quando você já é um adulto. Algumas dessas revisitas acontecem no fim do jogo, e nenhuma delas realmente desenvolve os pontos da história apresentados nelas. O jogo não ousa arruinar suas aventuras inocentes com lore extra ou alguma outra extensão da história principal.
Tudo se conecta, mas nem tudo precisa ser explicado à fundo. Até agora eu não consigo te dizer se o protagonista e a Bianca realmente lutaram contra espíritos e fantasmas nas Torres Uptaten. Aliás, voltar nela como adulto te mostra um lugar consideravelmente diferente do que você viu quando pequeno, e vazio com a exceção de um casal a lá Romeu e Julieta se escondendo nele. Os caixões espalhados por aí viraram estátuas, e as covas marcadas com seus nomes se mostram como as covas dos habitantes das torres. Agora, será que a veracidade da sua aventura no local quando criança realmente importa? Eu diria que não. O misticismo espalhado por Dragon Quest V vai além dos monstros e feitiços já aceitos pela população local, pois ele também cria múltiplos outros conceitos que nem o pessoal de um mundo tão fantasioso como o do jogo levam como reais. Existe até uma parte onde você encontra alguém igualzinho ao protagonista em Whealbrook, que apenas pede para dar uma olhada na orbe que você conquistou no mundo das fadas ao restaurar a primavera para elas. Tudo faz parte do mistério.
Nota: sim, eu sei que o velhinho Nick Nack que cuida do Knick-knackatory é um fantasma e é encontrado pelo protagonista quando adulto, mas a mecânica inteira de Knick-knacks e subsequentemente o velhinho Nick Nack são adições feitas apenas na versão de Nintendo DS, e desconectadas de qualquer outra parte do jogo. Assim, mantenho meu ponto feito no parágrafo acima com essa explicação supérflua.
A divisão entre a realidade do jogo e as crenças dos personagens dele é palpável, mas nunca te assegura de quem está contando a verdade. Isso é uma conquista e tanto para um JRPG tradicional do SNES, não?
Olha, eu realmente queria poder dizer que esse texto não conteria nenhum spoiler, mas é quase impossível ter uma discussão interessante sobre Dragon Quest V sem falar pelo menos do que estou prestes a dizer aqui, então esteja avisado, pois a partir deste ponto, esse texto contém spoilers de Dragon Quest V. Se você não liga tanto para spoilers ou já jogou, se sinta à vontade para continuar. Se não jogou e liga, eu realmente espero que tenha te convencido a jogá-lo com o que disse até agora. Vamos lá.
Se não quiser spoilers, pule para a Parte III
Parte II.5 — Dragon Quest V, com spoilers
Após muitos confrontos e reviravoltas que tem a ver com o reino de Coburg e o sequestro de seu príncipe Harry, Pankraz e nosso protagonista acabam se enfiando em algo muito maior do que eles esperavam. Ao resgatar Harry em uma dungeon, o herói se depara com o Bispo Ladja, líder da Ordem de Zugzwang. Ele derrota todos menos Pankraz, que se segura bem contra os peões de Ladja. Em uma reviravolta revoltante, Ladja ameaça matar o protagonista se seu pai continuar lutando. Sem ver nenhuma saída, Pankraz entrega sua vida para salvar seu filho e, em seus últimos momentos, revela que o motivo pelo qual eles estão a tanto tempo viajando é que ele está tentando achar Madalena, sua esposa e a mãe do protagonista.
Com isto, Ladja poupa a vida do Harry, do herói e do Saber, escolhendo escravizar os primeiros dois e soltar o último na natureza. Assim ocorre o primeiro salto de tempo do jogo, e o início do fim de sua introdução. Dez anos depois, os dois escapam junto de Maria, uma dissidente da Ordem de Zugzwang. Novamente, o motivo do herói conseguir algo foi por causa de sua natureza bondosa, já que ele e Harry impediram os guardas cruéis de continuarem chicoteando a garota.
Agora que escapou, o protagonista deve buscar sua mãe e o herói escolhido, que só será possível se ele conseguir todas as peças do equipamento Zenithiano. Nesse ponto, ele só possui a espada, que já havia sido encontrada por Pankraz e testada pelo protagonista. Infelizmente, parece que o herói escolhido não é ele. É, por mais que o protagonista de Dragon Quest V possa ser classificado como um herói, ele não é o herói. Não se preocupe, a gente vai voltar pra esse ponto depois.
Os 10 anos de escravidão do protagonista geram uma primeira impressão e tanto para o tom do que vem a seguir. Ou não, porque o jogo realmente não fica tão pesado quanto isso por um bom tempo. De resto, ele continua sendo irreverente e relaxante como os outros jogos!
Agora que estamos em um pedaço concreto do jogo onde suas mecânicas e estrutura começam a florescer de maneira mais natural, fica mais fácil eu comentar de sua exploração, dungeons e mecânicas sem me preocupar com peso narrativo. Vamos começar com um pouco do combate e gerenciamento da party.
Como em outros jogos da série, o verbo principal é bater. O simples botão de dar porrada. Em boa parte dos encontros aleatórios semi frequentes do jogo, você não precisa fazer muito mais do que apenas bater. Afinal, é importante economizar mana para os chefes, que costumam pedir de você um duelo de resistência além de apenas estratégias básicas. O sistema de elementos vindo um jogo como Final Fantasy não se aplica aqui. A maioria dos personagens jogáveis podem usar uma gama grande de feitiços, e apenas alguns monstros podem ser considerados estritamente especialistas em algo. Isso significa que boa parte do esforço mental que você usa nas dungeons está relacionado com saber quando vale a pena curar, gastar mana com outras magias, ou até recuar da dungeon para voltar mais forte depois.
O grind é uma escolha atrativa, mas nunca é estritamente necessário. Se você tiver uma party balanceada e usar o máximo das mecânicas, nada é um desafio grande o suficiente para te parar. Já que eu joguei no celular, eu acabei grindando bastante porque podia abrir o jogo enquanto cozinhava e fazer algumas lutas. Mesmo assim, o grind é satisfatório e não muito restrito, considerando que seus personagens não demoram tanto assim para subir de nível.
Se você grindou, também vai ter acesso à outro aspecto importante da franquia que se mantém intacta em Dragon Quest V, que é a economia. Nesses jogos, ela é dolorosamente impressionante. Não importa o quanto tempo você ficou tentando matar monstros para ganhar dinheiro, muitas vezes é impossível comprar tudo do melhor do que as lojas oferecem. Elas não só vendem equipamento melhor do que o que você está usando agora, mas também múltiplos níveis diferentes, o que te deixa indagar se vale a pena economizar um pouco mais para conseguir uma espada ainda melhor, ou até se vale vender coisas que talvez sejam úteis do seu inventário para pegar a melhor opção de equipamento agora.
Não só isso, mas já que cada personagem só pode utilizar alguns tipos de arma, você também deve decidir qual deles você vai presentear com aquela espada que cura ou escudo refletor. Eu passei tanto tempo pensando em números ao jogar esse jogo que juro que fiquei melhor em matemática só de fazer isso.
Com tudo o que disse sobre o combate até então, ainda faltam muitas coisas interessantes à se discutir, como o fato de que você pode recrutar monstros à la Pokémon (mas novamente, quatro anos antes!!!11!!!!1!). Como já é de se esperar com a maneira que Dragon Quest lida com suas mecânicas, ela é simples, mas adiciona muitas opções e profundidades mesmo assim. Quando você é muito mais forte que um certo monstro em uma batalha, ele tem uma chance de pedir para se juntar à você, que você pode aceitar. Isso transforma sua party de quatro personagens em uma de essencialmente oito, pois outros quatro monstros podem ir na sua carruagem. Isso não se aplica à versão de SNES, onde você só pode ter três membros ativos na party.
A possibilidade de carregar consigo uma party tão grande pode começar como meio inútil, já que você só luta com quatro de cada vez. Porém, se olhar um pouco mais à fundo, ela apresenta inúmeras estratégias indispensáveis. Por exemplo, em algumas dungeons e em toda a exploração do mundo você pode usar os feitiços dos monstros em standby, e assim não precisar gastar a mana preciosa de seus atacantes principais. Além disso, uma ferramenta mais importante ainda está a seu dispor (e é algo que eu só fui perceber lá pro final do jogo): a troca de membros da party. Com essa habilidade você pode trocar os membros em standby com os ativos no meio de uma batalha, sem perder seu turno. É impossível exagerar o quão útil isso se torna ao decorrer da aventura, e eu diria que é uma habilidade indispensável para derrotar o chefão final.
Você pode sempre manter um Cureslime no standby e o usar para te curar, ou um Golem para aguentar porrada, e por aí vai. Vale lembrar que os itens nos respectivos inventários de cada um dos monstros também podem ser usados à vontade, então pode enfiar as poções de mana neles se quiser. Aliás, eles não tomam dano enquanto estão em standby.
Para uma mecânica tão experimental como essa em sua época, ela consegue dizer muito sobre nosso protagonista. Sim, ela não serve só como uma camada estratégica divertida para o combate, pois também nos assegura da natureza bondosa do herói.
Lembra que eu tinha comentado lá atrás que o protagonista se veste como um pastor de ovelhas, com cajado e tudo? Então, isso também serve como caracterização dele. Ele não é exatamente um herói tradicional se comparado aos outros que vemos em JRPGs. Sua maior habilidade não é um ataque muito forte, mas sim sua proeza em liderar grupos. Tanto em suas decisões chave da história quanto ao recrutar monstros da Ordem de Zugzwang para o ajudar (entre outras ações que irei comentar mais para a frente), o herói de Dragon Quest V é mais um líder estratégico que um soldado perfeito.
Em combate, o herói ainda é extremamente útil, ainda mais levando em conta que você provavelmente vai usar todas as sementes de upgrade nele. Como em qualquer outro jogo da franquia, o protagonista é um faz-tudo. Ele cura bem, ataca bem, aguenta bastante porrada, e tem agilidade decente. Os desenvolvedores mantiveram a natureza dos outros protagonistas da franquia com o do Dragon Quest V, mas o diferenciam no metagame, por meio da já comentada habilidade de recrutar monstros e gerenciá-los em batalha.
Apropriadamente, a arma mais poderosa que o protagonista consegue é um cajado, que infelizmente não é o caso pela maior parte do resto do jogo. Inclusive, as restrições de equipamento me deixam um pouco desapontado. Existe uma quantia enorme de armas e armaduras que ficam inutilizáveis em seu inventário por apenas poderem ser equipadas por monstros específicos, e acredito que os personagens humanos poderiam aproveitar mais algumas opções. A maior parte das mulheres de sua party especialmente sofrem com isso, por não poderem equipar bons escudos ou espadas. É uma pena, e algo que vem da época em que o jogo foi originalmente lançado.
Continuando a falar das dungeons e combate, eu gostaria de aplaudir a simplicidade do layout das dungeons especificamente. Eu amo dungeons labirínticas e repletas de confusão por ter ganhado síndrome de estocolmo após ter jogado Hexen II e Wolfenstein 3D, mas muitos JRPGs acabam optando por layouts mais simples, até nos jogos com combate mais pesado (eu sei que esse não é o caso em alguns como em MegaTen). Isso faz com que as dungeons possam ficar mais tediosas mais rapidamente para alguém como eu, mas felizmente esse não é o caso de Dragon Quest V.
Não consigo te dizer se isso é coisa do remake de DS ou se estava lá desde o início (na verdade eu confirmei, as dungeons do original são quase iguais mesmo), mas a variedade de ambientes que você explora ajudam a exploração de dungeons, que é bem linear, ficar um pouco mais apimentada. Sério, elas ficam muito interessantes muito rápido, especialmente as torres. A Sky Tower, a Demon’s Tower, e a Tower of Boble (sim, é Boble mesmo) são algumas das mais impressionantes. A Tower of Boble especialmente, pois apresenta um layout quase que inteiramente vertical, que requer que você constantemente desça e suba para conseguir achar os olhos do dragão e assim proceder. Eu poderia continuar e até falar da brilhante e calma Sky Tower também, mas esse texto já está longo demais do jeito que está.
Até algumas das cavernas têm seu tempo para brilhar. A caverna que te leva ao castelo de Zenithia especialmente vem à mente com seus puzzles leves que usam minecarts e até um ponto de salvamento solitário em meio ao caos. Não existe nenhuma dungeon realmente complicada, mas uma grande parcela delas não precisa de complexidade. Inclusive, isso deixa sua mente mais focada nos encontros aleatórios, que são o que realmente importa se você quiser sobreviver.
E aí que chegamos nos chefes de Dragon Quest V. Como em qualquer outro JRPG que se preze, eles vêm em diversas tribos. Alguns estão lá para te fazer sentir forte, outros estão para realmente testar suas habilidades, outros estão de enfeite para te darem uma luta celebratória, e outros não existem, pois não é toda dungeon que te leva à um.
Essa é outra parte em que Dragon Quest V se restringe para manter as tradições. Nenhum dos chefes que você encontra nele são particularmente notórios, mas isso não significa nem de perto que eles não consigam brilhar de qualquer maneira. Algumas das lutas são profundamente satisfatórias, como as contra os lacaios de Ladja que espancaram seu pai sem ele poder reagir todos aqueles anos atrás. Ah, e não podemos nos esquecer do Bjørn the Behemoose, que é honestamente uma das melhores lutas de resistência que eu já tive em um RPG. O maldito não para nunca de usar ataques extremamente pesados, e necessita de um nível de coordenação de party tão grande quanto o que você daria para o chefão final. Morrer pra ele depois de 15 minutos de luta na minha primeira tentativa doeu.
Infelizmente, alguns dos chefes apenas requerem que você neutralize um feitiço particularmente irritante com um artefato ou peça de equipamento, e então viram piadas. Fazer o que, chefões de puzzle ainda eram muito comuns no SNES. Eu sou aberto a quase qualquer tipo de chefão, até o que o pessoal costuma achar chato, mas como eu já estabeleci aqui no texto, puzzles não são o meu forte…
Depois de todo esse papo de porradaria, morte e destruição, vamos limpar nossos paladares e colocar os holofotes na exploração do mundo e cidades de Dragon Quest V! Essa é de longe minha parte favorita do jogo, e demonstra a capacidade dos desenvolvedores da Chunsoft de criar uma sensação ampliada de espaço com muito pouco.
Cidades em JRPGs são algo incrível(-mente estranho). Já que elas costumam ser utilizadas ao mesmo tempo como um lugar seguro, como guia para saber onde você deve ir e como um local para desenvolver a história, os desenvolvedores devem lotar o mundo com cidades. O próprio Dragon Quest V esbanja 20 cidades diferentes, e algumas delas até vêm juntas de (ou são) dungeons. Sabendo que Dragon Quest V e vários outros JRPGs deixam você explorar literalmente o mundo inteiro e mais um pouco, é plausível admitir que não dá fazer cidades enormes com o mesmo nível de detalhe visto em um jogo como, sei lá, Yakuza ou algo do tipo. Para representar culturas e períodos inteiramente diferentes, os designers devem fazer muito com muito pouco. Colocar umas duas casas e algumas lojas para representar a cidade inteira já pode criar uma sensação de lugar, se o diálogo dos NPCs e a estética dela forem interessantes o suficiente.
Um bom exemplo disso se vê na pequena cidade na árvore Knot Welcome Inne, em Dragon Quest V. Ela é completamente opcional, minúscula, e não oferece nada além de uma igreja onde você pode salvar e um hotel. Ao conversar com a velhinha dona do local, ela diz o seguinte (em tradução livre):
E aí mano. Eu sou a Vovó Knot e eu acho que dá pra dizer que eu sou a dona dessa cidade aqui. As pessoas vivem em volta da natureza e depois retornam ao chão, ta ligado. Nessa vida todos nós só conseguimos uma chance, então você tem que ter certeza que ela é da hora. Tenha uma boa jornada.
Eu juro que não mudei as gírias que ela fala, só adaptei. A única outra NPC do local, uma garota vestida de roupa de coelho que trabalha no hotel, também fala assim. Essa mini cidade feita em cima de uma maldita árvore e localizada tão próxima à outra cidade que é basicamente inútil conseguiu deixar impacto suficiente em mim para eu dedicar ao menos 10 minutos da minha vida revisitando ela para descrevê-la aqui. Se esse é o poder que uma cidade minúscula consegue ter em um JRPG, imagina as maiores.
Bem, a gente não precisa imaginar, pois mesmo que as cidades grandes de Dragon Quest V ainda não sejam tão impressionantes em tamanho, elas compensam pela quantidade gigante de detalhes. Todo NPC tem algo interessante à dizer. Algumas cidades ainda têm aquele famigerado cara que só está ali para te dizer o nome do lugar, mas de resto todos têm mini-histórias ou piadas em peso. Um guarda de uma cidade pode falar sobre um de seus familiares que foi para o oeste, e olha que legal, se você for em uma das cidades do oeste vai ter um cara lá falando da antiga vida dele no norte, e que ele se mudou para o oeste.
Eu gostaria de me desculpar aqui, porque esse exemplo não é real, e eu realmente gostaria de ter dado um concreto. O problema é que eu demorei meses para terminar esse jogo, e também acabei jogando múltiplos outros (que por sinal vieram depois dele) que também possuem grandes conexões de NPCs entre locais, como Final Fantasy VI e Phantasy Star IV. Ou seja, meu cérebro é gelatina e eu não consigo lembrar de um exemplo específico do que precisava. Me desculpe.
Continuando nossa exploração da exploração de Dragon Quest V, precisamos abordar o Party Chat dele. Essa é uma funcionalidade que não existia na versão de SNES, e foi trazida apenas no remake de DS. O Party Chat existe desde Dragon Quest VII, e virou uma das múltiplas tradições da franquia. A maneira que ele funciona em V é simples: Toda hora que você entrar em qualquer lugar novo ou falar com quase qualquer pessoa, você pode apertar o botão de Party Chat e ouvir o que algum de seus colegas na party tem a dizer sobre aquilo. É uma adição simples em primeiro olhar, mas provavelmente doeu muito nas mãos dos escritores e tradutores que tiveram que lidar com uma miríade de diálogos extras.
É provável que você tenha passado até mais de uma hora lendo o diálogo do Party Chat ao terminar o jogo, se você ligou o suficiente para ouvir tudo. É impressionante a quantidade de interações que recebem falas novas com essa adição. Parece que a cada dez passos que você dá, alguém da sua party resolve recitar todos seus pensamentos. É incrível. O Party Chat adiciona uma baita personalidade tanto para os NPCs quanto para os personagens da sua party, e acredito que vale a pena jogar a versão de DS/Mobile só por ele.
Ainda temos mais uma coisa para abordar, que é a viagem pelo mundo. Juro que não vai demorar e a gente já segue para mais pontos sobre a história. Entre os diversos locais que você visita, você deve passar pelo overworld, onde sua party inteira sai andando em vários tipos de terreno, cada um com frequências e tipos de encontros aleatórios diferentes. Sabe, o clássico de qualquer RPG. Mesmo assim, acho importante citar até algumas das coisas mais mundanas e não inovadoras que Dragon Quest V toca, pois sua franquia é tão conhecida por suas inovações quanto pelo quão bem ela lida com as partes mais tradicionais e clichês de um JRPG.
A exploração do overworld é satisfatória, e lidada com cuidado. Estamos falando de um jogo super linear aqui, e a maneira que ele restringe sua navegação é tão valiosa quanto a própria navegação. Sua aventura pelas três eras diferentes da vida do herói passa pelo mundo todo em sentido anti-horário, vai para o centro dos ponteiros, e por fim te leva às entranhas do relógio. Espero que essa metáfora não tenha sido estúpida demais (as vezes eu queria poder dar uma risada que nem em um chat de texto, como a seguinte: fi9hguriahusahduhshu).
Os continentes basicamente fecham o mundo de maneira natural, então até quando você ganha acesso a um barco, não é o suficiente para te deixar explorar coisa demais. Até quando você ganha um tapete mágico as restrições continuam ali, pois com ele você ainda não consegue passar nem por florestas. O equivalente à uma airship desse jogo é um dragão. Sério. O Recanto do Dragão foi formado em volta de um amor a dragões, Dragon Ball e Akira Toriyama. Uh, eu não sei se isso já ficou claro até agora, mas esse texto é tanto uma homenagem aos 36 anos de Dragon Quest quanto ao próprio Recanto do Dragão, que daqui a pouco vai fazer 10. O que eu quero dizer com isso é que todo jogo que te deixa andar em um dragão como seu veículo late-game já ganha pontos com a gente, é inescapável.
Esse papo de Recanto do Dragão quase me fez esquecer do que eu realmente queria falar sobre o Dragão Zenithiano que te ajuda a voar pelos céus, que é a posição dele como o veículo mais versátil do jogo. Curiosamente, o que vem logo antes do Dragão é um castelo inteiro. Sim, você pode andar pelo overworld em um castelo. Eu sei que acabei de ficar impressionado pelo negócio de dragão logo no parágrafo acima, mas eu não podia deixar de citar a cidade voadora que você pode controlar. Ambos o dragão e o castelo te permitem chegar a praticamente todas as áreas do jogo, mas o dragão é mais rápido e pode pousar no templo no meio das montanhas localizado no centro do mapa.
É um arranjo de veículos meio peculiar, mas funciona bem com o nível de linearidade do jogo. As últimas horas até se tornam um pouco mais abertas quando você ganha essas opções de mobilidade, pois diversas áreas ficam acessíveis de uma vez só.
Eu me choquei com a quantidade de coisas sobre a estruturação desse jogo eu descobri ao cobrir essa parte. Coisas tão simples que podem ser dadas como naturais na navegação na verdade são decisões cuidadosamente planejadas, pois afinal, os designers da Chunsoft são profissionais. Eles não precisam buscar reinventar a roda toda hora que fazem um jogo, pois eles já fabricam as melhores rodas. Agora, a inovação pode vir com o resto do veículo.
O resto do veículo pelo qual me refiro é a notória passagem de tempo vista em Dragon Quest V. Vamos nos aprofundar um pouco mais nela agora. O jogo é dividido em três “eras”. A primeira se passa enquanto você é criança, a segunda após o timeskip de sua escravidão, e a terceira após você ficar petrificado por oito anos. É, isso acontece e eu vou comentar mais sobre daqui a pouco. Como é de se esperar, a segunda é a que você passa mais tempo experienciando, e provavelmente se cimentará como a mais memorável de sua aventura também.
Então, após uma pausa de algumas milhares de palavras, poderemos voltar a falar do enredo. Enquanto busca o famigerado herói lendário e sua mãe, nosso herói não-exatamente-lendário acaba se enfiando em aventuras tão inesperadas quanto em sua infância. A primeira instância disso é quando ele trabalha junto com seu amigo/ex-príncipe Harry para desmascarar a impostora que tomou o lugar de sua mãe nos últimos anos em Coburg, e assim conquistar seu lugar como príncipe novamente. Ah, além disso, o Harry também acaba se casando com Maria, a garota com qual ele e o herói escaparam do campo de escravidão. Eles não recebem tanto desenvolvimento juntos, mas ainda são fofinhos.
Já que Harry deve cuidar de um reino inteiro agora, o protagonista se encontra sozinho novamente. A segunda parte do jogo tem o hábito de mudar constantemente e as vezes até não incluir membros humanos em sua party, o que faz esse capítulo lembrar mais uma busca solitária e desesperada do que uma aventura com seus amigos. Pode se acostumar com os monstros que você vem levando consigo, pois vai ver muito mais deles a partir de agora.
Após diversas visitas à cidades e um cassino você chega na vila Hay, onde os habitantes locais estão tendo problemas com um monstro destruindo a colheita. Acontece que esse tal de monstro é o Saber crescido! Mesmo apenas fazendo algumas horas de gameplay que ele desapareceu, só ver o gato já é foi o suficiente para me fazer sorrir. Quanto mais tempo faz que você não vê alguma trama da primeira era, mais satisfatório é o momento que o jogo retorna à ela.
Mas isso não anula o quão engraçado é ver que o dono das terras de Hay fica muito puto ao ver que você volta com o “gato aterrorizante” junto de si próprio ao invés de ver ele morto. O cara acha que vocês combinaram tudo para extorquir o vilarejo. Bom, o Saber está de volta de qualquer jeito, e isso é melhor do que a recompensa que aquele cara ofereceria.
A próxima parada é Zoomingale, onde você aprende a usar o feitiço… Zoom! Essa parte parece uma boa sidequest, e é divertida o suficiente, mas é fácil esquecê-la pelo que acontece logo depois, quando sua party chega em Monstroferrato em busca do escudo Zenithiano. Ela é uma cidadezinha de médio porte com uma torre enorme logo do lado, provavelmente para defender o local dos monstros em volta — afinal, ela é a única cidade grande do continente de Zephyrus. Monstroferrato é a cidade que abriga a quest mais memorável do jogo inteiro, que começa com um maldito casamento arranjado por algum motivo.
Lembra o Mr Briscoletti lá do comecinho da versão de DS? É, DS ou não, o protagonista vai ter que se envolver no meio do egoísmo desse cara para conseguir o escudo, do qual ele é dono. Briscoletti diz que os candidatos dispostos a se casar com sua filha Nera deverão ainda achar os lendários Círculos de Fogo e Água para usar como aliança. Após adquirir o Círculo de fogo em uma dungeon um pouco linear demais para o meu gosto, o protagonista fica em um impasse para achar o de Água, mesmo tendo acesso ao barco de Briscoletti. Ele tem que passar em Stockenbarrel, uma cidadezinha pequena ali perto, para pedir a abertura do portão aquático que bloqueia seu caminho. Lá, ele reencontra Bianca, sua amiga de infância.
Após anos vivendo em um local isolado com seu pai, Bianca ganhou um sotaque caipira característico, e ao encontrar o protagonista, os dois passam a noite inteira conversando. A coitada da menina ainda tem que aguentar ouvir que o herói está procurando uma aliança para se casar com uma garota que mal conhece quando ela está bem ali, e aparentemente ainda não encontrou ninguém de seu interesse nos últimos 10 anos. Ao ser relembrado de sua promessa à Bianca todo aquele tempo atrás, o protagonista resolve se aventurar com ela ao menos mais uma vez, e então os dois vão para a linda Caverna da Cachoeira em busca do anel.
O subsequente pedido de casamento vem com não uma, mas duas reviravoltas: a primeira é que Briscoletti deixa você escolher a Bianca para se casar além de só a Nera, e a segunda é que a rude irmã de Nera, a Debora, também se oferece para casar com você. O jogo até deixa você pedir a empregada de Briscoletti ou até o próprio Briscoletti como uma piadinha, mas as opções reais são as três. Olha, eu não vou te julgar tanto por ter escolhido nenhuma das três, mas eu posso dizer com certeza que a Nera seria a escolha mais triste, porque ela realmente não quer se casar com você, e só está fazendo isso por causa das ordens do pai. Ela até já tem um amor da vida dela, o Crispin, que é seu amigo de infância.
Agora, entre a Debora e a Bianca, admito que fiquei um pouco dividido. O pouco tempo que passei com a Debora me deixou uma impressão e tanto com o jeito que ela fala mal de todo mundo e parecia ser uma rota divertida a se tomar, mas a Bianca é obviamente a escolha mais desenvolvida e prevista pelos próprios desenvolvedores. Ela conhece o herói desde pequeno, e já se aventurou múltiplas vezes ao seu lado. A química entre os dois é implicada fortemente pelo diálogo que demonstra que os dois amam conversar entre si, e bem, a Bianca até está em todos os materiais promocionais do jogo ao lado do herói, então a melhor escolha para uma primeira jogatina é provavelmente ela mesmo. Não me arrependo.
Após de ouvir múltiplas congratulações do pessoal de Monstroferrato e de Stockenbarrel, você vê uma cena muito fofa de casamento, que até conta com a presença do príncipe Harry e sua esposa Maria. Assim que você se casa, Dragon Quest V te solta de verdade pela primeira vez. Agora você tem um barco para viajar à vontade entre as partes internas do mapa, e como já disse quando falei da navegação, isso não significa que você pode ver tudo ainda. Diversas áreas opcionais se abrem (inclusive o Knick-knackatory!), mas falando com a rainha Cleohatra que com certeza não é uma paródia da Cleópatra, ela te recusa o Elmo Zenithiano que guarda em seu castelo. O motivo, você já sabe: o protagonista não é o herói lendário. Agora, só resta ir para Gotha, o reino no qual seu pai era rei.
Sim, eu acabei não citando isso pra me manter breve, mas nesse meio tempo, o protagonista descobriu que as memórias dele quando pequeno em um castelo com seu pai como rei eram verdade, e que tanto Pankraz quanto Madalena (sua mãe) eram pessoas importantes. Ir para Gotha significa cruzar uma montanha inteira por seu interior cavernoso. A viagem vem com uma preocupação, pois a Bianca está passando mal, aparentemente de exaustão. O aviso vem na vila de Battenberg, que literalmente fica no meio das montanhas. É um lugar lindo. Descer o resto da longa dungeon da montanha os faz finalmente chegar em Gotha, o local de onde o protagonista é rei por direito. Bom, assim como lá atrás em Coburg, você vai ter que resolver uns probelminhas internos do reinado do local antes de ser coroado, mas a gente não precisa entrar em tantos detalhes assim.
A coisa mais importante que acontece em Gotha é a revelação de que a esposa do herói está grávida, e que esse era o motivo de seu cansaço. Neste ponto, Dragon Quest V implica que você passou alguns meses junto dela enquanto tentava conquistar a coroa. Mas, logo após o nascimento de seus filhos gêmeos (que você pode nomear a vontade, e que eu acabei dando nomes terríveis porque eram três da manhã quando eu estava jogando essa parte), o chanceler traidor de Gotha à sequestra enquanto o resto da povo comemora a sua coroação como rei.
Agora você provavelmente já vai ter notado que o protagonista não consegue ter um segundo de descanso. O cara passou boa parte da infância viajando, virou escravo por 10 anos, viajou mais ainda quando adulto, e agora que acabou de ter um momento feliz onde foi teve filhos com a pessoa que ama, ele deve lutar para achá-la novamente. A Bianca é forte, mas o covarde do chanceler à sequestrou em seu momento mais vulnerável. Pior: após derrotar um dos lacaios de Ladja e finalmente achar Bianca, os dois são transformados em estátuas pelo próprio desgraçado, logo depois que se reencontram.
Sério, esse é o ponto baixo da história, onde tudo parece perdido. Mais oito anos da vida de nosso herói são ceifados pelas mãos de Ladja, e ele só é encontrado após anos de procura por… seus filhos. É, Parry e Madchen (os nomes padrões do menino e da menina, respectivamente) também acabaram tendo que viajar para achar um parente perdido, assim como você. O pior é que sua estátua foi parar em um lugar completamente diferente da Bianca, e vocês vão ter que achar ela agora além de todos os outros problemas já pilhados em cima de sua cabeça.
Agora estamos oficialmente falando da terceira era do jogo, onde tudo que foi estabelecido desde o começo estará de volta para concluir a trama. Os oito anos mudaram até que bastante coisa no mundo, pois os monstros da Ordem de Zugzwang estão mais poderosos ainda, e mais tipos deles foram soltos do inferno de Nadiria para o plano mortal. Neste momento da história, a dedicação dos escritores ao sistema de diálogo brilha mais uma vez. Tanto o Party Chat quanto os NPCs de cidades já visitadas vão periodicamente atualizando suas falas com o passar dos eventos, e o mundo parece vivo. Por exemplo, se você resolver voltar à Zoomingale na terceira era, o intelectual que te ensinou o feitiço Zoom aparece velho e cansado, agradecendo sua visita após tantos anos. Ele então te presenteia com Hocus Pocus, um feitiço que causa efeitos aleatórios diversos, que podem transformar sua party inteira em dragões (que nós do Recanto do Dragão aprovamos) ou até não transformar sua party inteira em dragões (o que desaprovamos), entre outros.
Uma boa quantia das áreas recebe diálogos novos ao serem visitadas, junto de reações dos seus filhos com o Party Chat, que são fofinhas demais. Mas precisamos voltar ao que afeta a história, porque mesmo que boa parte de Dragon Quest V envolva diálogos engraçados e desconexos, ele também tem uma história. Com o reencontro de seus filhos vem outra novidade. Aparentemente Parry é o herói lendário! Todos os seus equipamentos Zenithianos adquiridos até então podem ser entregues para ele, e são muito fortes. Eles fazem de Parry um dos melhores atacantes físicos do jogo, e o fato dele ser o herói lendário torna nosso protagonista/herói não-tão-lendário uma figura ainda mais intrigante.
O protagonista de Dragon Quest V é o pai do herói lendário, e não o herói em si. Ele cresceu com uma vida difícil, conseguiu conquistar o amor de sua vida em meio ao caos, e assim criou, ensinou e cuidou do herói lendário. O motivo de Parry ser o herói profetizado e seu personagem não é que a sua mãe Madalena é descendente do povo sagrado de Lofty Peak, uma cidade muito próxima da Deusa do mundo do jogo, e a Bianca é descendente de Zenithianos. A junção desses do sangue desses dois povos sagrados gerou o herói das lendas.
Olha, vamos lá: eu completamente entendo que muitos JRPGs da época (inclusive os primeiros Dragon Quests) envolvem hereditariedade como pontos principais do roteiro, e que é um assunto que já foi tratado em diversas religiões praticadas majoritariamente no ocidente (que formam muitas das inspirações dos desenvolvedores orientais destes jogos), mas esse negócio de uma mistura de dois povos sagrados gerarem o herói lendário é um pouco etnocentrista demais pro meu gosto. Eu poderia entrar mais em detalhe com o quão estranha é essa decisão, mas vou deixar algo meio pesado como esse assunto fora do texto.
Mesmo com tantos problemas, essa ideia ao menos ainda funciona tematicamente, já que as únicas coisas que o protagonista conseguiu manter para si mesmo depois de sua vida turbulenta são as pessoas que ele ama. Ele e a Bianca se sacrificaram demais para o bem maior, e então o legado deles envolve serem os pais do herói, e não os heróis. O protagonista nunca se incomoda com isso. Como jogador você pode até estranhar e ficar desanimado quando percebe que não pode usar o equipamento Zenithiano pela primeira vez, mas conforme vai aprendendo mais dos sistemas de gestão de party que formam a personalidade de nosso protagonista, você vai entender o prazer que não jogar como o herói pode entregar.
Depois de tanto tempo procurando, chegamos em Lofty Peak, a terra natal de Madalena. É um lugar isolado, pequeno e lindo. Para chegar lá você teve que passar por uma dungeon inteira com seu barco, o que eu realmente não esperava, mas foi engenhosamente apropriado. O povo desse lugar é estranho, não vou mentir. A Deusa os deu o poder de abrir a passagem entre o mundo mortal e a terra sagrada de Zenithia, além da passagem para o submundo Nadiria. Curiosamente, eles não têm mais esse poder quando você chega lá. Bom, pelo menos foi bom poder ver o lugar que a mãe do protagonista viveu.
Agora falta achar um jeito de encontrar tanto Zenithia quanto Nadiria. Já que você conseguiu um tapete mágico na sua visita à Lofty Peak, a torre que levava à Zenithia está de mais fácil acesso. Levava é a palavra-chave, pois ao subir a dungeon inteira, você encontra apenas uma escada quebrada, um velhinho gente boa para te dar exposição, e um cajado destruidor de pedras grandes que você deve usar para entrar na próxima dungeon. Isso é meia enrolação, mas pelo menos explica o porquê de Zenithia ter sumido. Ela afundou lá perto de Lofty Peak após o roubo de uma das orbes que fazia ela flutuar. Aí vem algo interessante. Mesmo chegando em Zenithia, ela está toda congelada e submersa. Para levá-la a voo novamente, você tem que achar uma dessas orbes. Só um problema: o Ladja quebrou ela lá atrás quando matou Pankraz. Você tinha achado a maldita orbe na terra das fadas logo quando criança, e o maldito do Ladja ferrou tudo.
Mas um plot twist bizarro acontece após mais uns rolês pelo mundo, quando você descobre que o cara parecido com o protagonista que pediu para ver sua orbe no início do jogo na verdade era realmente você. Ok, isso é fácil de prever. Agora, para pagar a dívida com você, as fadas te entregam uma orbe falsa e o deixam usar a pintura mágica que mostra o que está no coração de quem deixa ele aberto. Assim você consegue voltar no passado e trocar a orbe falsa sua com a real do protagonista pequeno, o que significa que Ladja quebrou a orbe falsa quando matou Pankraz. Não vou mentir, é um twist bem divertido, e ainda assim não quebra a magia da vida jovem do protagonista. Tudo o que você faz com as fadas é meio inexplicável e místico, e Dragon Quest V graciosamente ignora qualquer pergunta que você tem na cabeça sobre como elas funcionam. Nada é permanente, mas isso também significa que tudo pode ser restaurado.
Parte III — A jornada acima de seu fim, a mão da noiva celestial acima de sua ameaça
Eu sei que acabei de recontar quase toda a história do jogo aqui, mas vou fazer algo talvez não muito inteligente: parar por aqui. Por que? Bom, essa parte não serviu exatamente para recapitular a história, mas sim como suplemento para meus pontos que dependem de uma grande quantidade de contexto para fazerem sentido. E o final? Ele é legal… mas não é necessário descrevê-lo com tanto detalhe. Meus argumentos sobre a caracterização diferenciada dos personagens já estão feitos, e a conclusão de um Dragon quest usualmente não é a parte mais importante tematicamente. Ela é um fim geral para todas as centenas de pequenas histórias contadas ao longo de sua aventura, e por isso não pode ser tão elaborada, mesmo com seus plot twists.
Na tradição de outros jogos do Dragon Quest, após matar o chefe final, você revisita as cidades que fizeram parte da narrativa uma a uma e ganha diálogos extras com seus habitantes antes de ir para os créditos. Contanto, o fato de sua história ter se passado em dezenas de anos ao invés de em uma quantia pequena que nem em outros jogos da série dá um significado diferente à esta visita. É o fim da parte mais turbulenta da vida do herói. Agora ele pode voltar para o castelo do Harry e se reconectar com ele sem um milhão de problemas afetando o destino do planeta e afins. A Bianca pode calmamente ir junto de você à Stockenbarrel e Roundbeck para reviver os velhos tempos. Você conseguiu.
Esta é uma das coisas que definem Dragon Quest V. Ele encapsula uma teia de jornadas tão granulares que até parece que a tradição de revisitar cidades no fim dos jogos da franquia foi feita só pra ele. Uma história seminal, que esbarra na grandiosidade e em altos conceitos sem tentar diretamente, apenas utilizando suas inúmeras destrinchadas para criar um mundo impressionante. A mão da noiva celestial está acima do resto dos conceitos explorados na história, e é dela que vêm todo o resto, que vai se acoplando em volta. Você só liga para o destino do mundo em que vive pois sua família e amigos estão nele.
Eu sei que esta experiência não é completamente universal, mas é profundamente ressonante da maneira que é contada nesse jogo. E claro, ele só consegue realizar este feito por ter uma base tão simples e aberta. As cidades usadas como hubs de pequenas histórias isoladas, o combate simples baseado em estratégias tomadas entre elas ao invés de dentro delas. A navegação pelo mapa mundi absolutamente lotada de vistas à locais que só vão poder ser acessados muito depois quando você adquirir o veículo apropriado. Os chefões teimosamente estratégicos que se recusam a se adaptar ao que você está usando para destruí-los. A sua própria party de aventura rígida na função de cada personagem, mas aberta na sua escolha de quem colocar nela, em qual lugar e com qual prioridade.
Nada do que eu citei até agora é único à Dragon Quest no geral (mesmo que ele tenha iniciado algumas destas práticas), e muito menos ao quinto jogo especificamente. São mecânicas sinônimas à experiência de um RPG clássico. O que as torna especiais em Dragon Quest V é o quanto a narrativa se aproveita delas, como expliquei anteriormente ao falar da maneira que o combate mais relaxante momento a momento e mais pesado entre batalhas adiciona gosto à exploração e demonstra a passagem de tempo no mundo.
Então finalmente chegamos ao final de nossa exploração desse jogo monumental. Acredite em mim, eu poderia ter estendido esse texto muito mais e tocar em muito mais assuntos — e quase fiz isso — mas por mais que eu possa usar Dragon Quest V como exemplo para inúmeros pontos interessantes sobre game design e subculturas dentro de jogos, é muito mais divertido se eu for variando nosso jogo-exemplo no meio da discussão. Sim, eu planejo escrever mais textos desse tipo, mirando em outros aspectos e preferencialmente não tendo que tirar prints do meu celular no aspect ratio 9:21.
como já comentei, esse texto é uma celebração um tanto quanto antecipada dos 10 anos do Recanto do Dragão, um site que mudou minha vida completamente. eu aprendi tudo que sei sobre escrita e pensamento crítico escrevendo pra cá nos últimos dois anos. a nossa equipe talentosa e maravilhosa fez o site continuar de pé mesmo com tantas mudanças e reviravoltas. esse site é movido à pura paixão. que venham mais 10 anos, e que muito mais pessoas incríveis sejam formadas pela ideia do Recanto nesse meio tempo. não importa quanta merda postarmos no nosso twitter ou o quanto nossos planos mirabolantes falharem no segundo passo de centenas planejados, algo nunca vai mudar: opiniões completamente insanas e não filtradas sobre arte irão ser publicadas sem nenhuma vergonha, e com toda a autenticidade de seu escritor. beijinhos.