O seguinte é um relato de DOOM Guy em algum ponto de sua vida. Distante o suficiente para entender sua situação, mas próximo demais para aceitá-la. Esta é sua jornada por Formless Mother, uma WAD de 2024 desenvolvida por Treehouseminis com a participação de AshtralFiend e Insane_Gazebo (sim, o de Sunder!).
01 — Site of Dismay (436 demônios)
Continuo preso.

Concreto e entranhas são o que mais vejo. Começo com o usual: minha pistola e meus punhos. Há uma escopeta de cano duplo na minha frente, entre paredes de sangue. Amam brincar comigo.
Esta sala circular não me fornece uma saída fácil. Aperto o primeiro botão que vejo, e ela desce como um elevador. Seus arredores inferiores guardam inimigos, claro. Poderia tentar sair de imediato daquele andar, mas para isso precisaria alcançar dois botões opostos, cada um guardado por uma mini legião.
Meu costume toma conta de mim. Circundo os Hell Knights, Revenants, Imps com o intuito de fazê-los brigarem entre si; foco meu fogo no Pain Elemental, que dispensa um mar de Lost Souls se não for eliminado com prioridade. A dança é o que me encanta. Devo manusear entre foguetes, bolas de fogo, e garras enquanto tento direcionar uma espécie de demônio contra a outra. Canalizo a natureza do inferno e economizo munição ao mesmo tempo.
Mesmo após limpar a sala, tenho que passar pelo térreo. Aperto os botões necessários e encaro dois Archviles, um Mancubus numa torre e um temível Cyberdemon — um daqueles raros, o de entranhas verdes. O inferno ainda tem novidades! Eles são menos duradouros, mas idênticos aos seus irmãos mais velhos em todos os outros aspectos: metade cabra, metade robô.

Archviles só pensam em reviver demônios e em me incendiar. São o motivo de eu olhar duas vezes a arquitetura de todo santo lugar que caminho. Quando aparecem, me forçam a demonstrar meu conhecimento dos cantos e frestas onde posso me desvencilhar de seu fogo, que começa próximo aos meus olhos e termina dentro de mim.
Enquanto desvio do olhar flamejante de um Archvile, o outro trabalha em reviver Hell Knights e Revenants. Além disso, o Cyberdemon continua lançando foguetes como se não houvesse amanhã. Apenas um bem mirado é o suficiente para me matar. Mesmo se explodir perto, já me causa um problemão.
Consigo virar um dos Archviles contra o Cyberdemon para focar em eliminar o outro, daí o Mancubus e só então os demônios recém-renascidos. Quando volto pro Cyberdemon, ele já estava severamente enfraquecido. Um tiro dos dois canos da escopeta é o suficiente para dizimá-lo.
Estou livre da primeira sala. Ainda há centenas de inimigos por aqui. As paredes anciãs que me cercam podem até ser espaçosas, mas este espaço é destinado aos demônios. O concreto serve apenas como adorno; o resto dos rios, solos e paredes são todos carmesim. Mais escuros do que o comum, e unidos entre si. Estou em algo vivo.

Intermissão— DOOM
Já passei por inúmeras visões do inferno. Do futuro, do passado, das estações espaciais longínquas até as mais pacatas cidades, das pequenas às grandes. Apareço. Mato os demônios. Traço meu caminho. Resolvo os fragmentos de lógica que regem cada local. Estes são sempre diferentes.
Há minha querida primeira aventura em DOOM, minha distorcida normalidade de DOOM II, meus labirintos encantadores de TNT: Evilution, meus dias de cão de The Plutonia Experiment; pela viagem agressiva de Alien Vendetta, o sonho âmbar de Grove, o maximalismo pop de Scythe II, os delírios de A.L.T, a paz irrestrita de Jumpwad, o pesadelo de Lilith.pk3, os sustos temáticos de Wormwood, as doces lembranças de Nostalgia, e inúmeros outros… bolsos de realidade… que me encontro. A ultraviolência marca todo passo que dou.

01— Site of Dismay (cont.)
Este é… diferente…? Faço o usual, e é um local bem navegável. Impossível me perder. Só sigo o próximo monumento, coleto peças de meu arsenal, e aperto um botão para convocar demônios. Porém, sinto a matemática fluindo como nunca. Tenho uma margem de erro maior em estratégia e movimentação, mas devo ter olhos nas costas e navegar cada dança com tanto improviso quanto planejamento. É perfeito para o que eu sei fazer.

Passo pelas próximas arenas e mal percebo que estou fora dos monumentos que avisto à distância. Será que são como este? Sem propósito algum? A câmara ondulada chefiada por dois Cyberdemons em cápsulas transparentes de espinhas é a mais próxima de um local reconhecível. Me trouxe prazer.
Passo por mais corredores e salas até um clímax de tensão. A última arena deste local é sempre o prato principal. Esta é uma das exceções. Avisto, enfim, uma entrada para o monumento que tanto desejava encontrar. O caminho me leva à escuridão.
02 — Crawling Back to Grace (840 demônios)
Um Cyberdemon, dois Archviles, múltiplos Barons of Hell e Hell Knights depois, tomo conta de que ainda estou fora de qualquer semblante de propósito. O monumento passado se foi, e não sei mais onde pode estar. Ao menos agora tenho acesso à minha BFG, a arma que cuida de quase qualquer problema. Devo cuidar da munição dela, pois não há muitas células por aqui.
Mais um monumento na distância. Uma catedral de víscera, dona de um cemitério mudo e centro de uma pequena vila. A catedral parece próxima. A vila é inalcançável.

Calculo a munição que tenho e resolvo o quebra-cabeça da central de arenas que me impedia de alcançar o cemitério. Encaixo os três crânios em seus lugares para abrir os portões. Coleto células, tento abrir paredes que já foram portas, e anoto uma Megasphere que deixarei para depois.
Hora de reviver os demônios daqui.

Esta é uma das batalhas que não consigo detalhar. Uma carnificina que apenas sobrevivo por intuição. Não acredito que nenhum outro humano ou ser vivo conseguiria explicar este nível de estímulo. Garras tentam me arrastar à próxima camada deste inferno. Existem tantos projéteis voando que eu preciso ser atingido por alguns para traçar minha rota. Limpo o que posso do centro para dar uma volta, pegar a Megasphere antes dele entrar em superlotação.
Eles retornam às suas covas. Eu adentro a catedral.
Sou recebido por meia dúzia de Cyberdemons e um rio de Cacodemons. No meio deste manuseio, a pequena fachada de víscera cai e revela os corredores da catedral. Ela é uma só.
Extermino a sinfonia infernal e encontro um quarto atrás do presbitério; as luzes, amarelas como uma abelha, ainda estão acesas. Troco de roupa. Desço as escadas.
03 — Trumpeting Ecstacy (2970 demônios)

Acordo num quarto. As paredes ainda são feitas de carne. Vejo um pedaço do meu arsenal e coleto cada bala e arma enquanto pego as águas espalhadas nos outros cinco quartos. A sala de espera à minha frente é espaçosa, mas preciso ir.
Entro no lobby, onde dois Archviles servem como recepcionistas. Os outros clientes são todos demônios. Tomo o cuidado necessário para lidar com os Mancubus, Barons of Hell, Imps, Hell Knights, o mezanino de Revenants e um topping extra de Archviles. Eles sabem quando devem ir por último para reviver seus colegas.

Saio do hotel? Não consigo ter certeza. Todos os lugares são funcionalmente iguais. Só sei que não consigo mais retornar de onde vim. Resolvo mais um diorama de combate. Ouço os cascos de uma legião de Barons e Knights aguardando o momento certo para atacar. Os libero da prisão, e prossigo ao labirinto à frente, que mistura outros demônios sortidos que devo matar.
Termino este pedaço do meu trabalho. Prossigo para uma arena enorme. Fluo por ela. Danço contra os demônios. Ondas e ondas e ondas. Pirâmides invertidas enfeitam esta arena. Preciso de mais.
Um aperitivo saboroso de Barons e um Cyberdemon depois, percebo que estou olhando o labirinto de cima. Solto os Archviles para brincar com eles lá embaixo. Revelo outro mirante que me dispensa num corredor. Uma sala de jantar. Como todo o resto, é tudo de carne. O carmesim já substituiu o concreto há um tempo. O local ainda é bem iluminado… os acentos amarelados me dão confiança de que ele está sendo cuidado. Suspendo o meu até então constante movimento em busca de novas arenas.

Revenants vêm me visitar logo que aperto o próximo botão. Desço as escadas. Mini andares, micro movimentos, Cyberdemons e Cacodemons. Mais alguns Pain Elementals para estragar a festa. Saio vivo. Não me perdoaria se morresse num encontro como este.
A próxima sala é encantadora. Pirâmides invertidas no teto como estalactites e pequenas crateras para acompanhá-las como armadilhas — se cair numa delas, eu acabaria ou me prendendo ou lançando um foguete na minha frente. Eu deveria tirar um dia para aprender a olhar para cima.
Deslizar por este solo irregular é parte da graça. Tropeço, mas não caio. Até coletar a munição espalhada pela arena antes de começá-la é divertido. Cacodemons, Mancubi, Revenants, Hell Knights; esta briga é mais entre eles do que contra mim. Adiciono meus toques de gatilho esporadicamente, e guardo os foguetes para quando só sobrarem Hell Knights. A segunda onda requer maior atenção: Cyberdemons e Pain Elementals são a definição de urgência! As Arachnorbs servem como torretas para tornar uma das metades da arena mais perigosa que a outra. Um deleite.

Me pego seguindo um caminho escuro que me prende com múltiplos demônios. Toco nos olhos espalhados nos corredores estreitos e coleto o crânio dourado, que me permite abrir uma parede de cartilagem repleta de veias. Cachoeiras de sangue me aguardam abaixo do penhasco. Todas as formas à minha volta são retangulares… tal perfeição me assusta. Improviso uma rota de fuga dos demônios em direção à próxima arena.
A escala monumental deste ser se revela. Estou à céu aberto, e consigo sentir os toques industriais que uma arquitetura de carne é capaz de evocar. Este local é digno da BFG, que finalmente encontro num altar que só abaixa quando a coisa já ficou feia. São tantos demônios em tantas alturas diferentes que não consigo tirar meu pé do acelerador. Não paro nem depois de limpar o térreo, pois preciso me aproximar dos demônios acima de mim antes de desperdiçar minhas balas com tiros mal mirados.

O próximo espaço que ocupo ao sair da última batalha me pega de surpresa; mais que demônios, encontro vazamentos de um líquido esmeralda viscoso e um vislumbre do outro lado.
Lembro-me da vila próxima ao cemitério que vi há um tempo. Encaro passarelas fora de meu alcance. Todas levam a seus próprios arcos tão escuros quanto as entradas inacessíveis que vi naquele cemitério.
Nada mais me interessa.

Luto contra hordas e hordas de inimigos enquanto traço meus passos até o crânio vermelho. Preciso chegar até as passarelas. Toda nova arena possui janelas àquele lugar. O que não consigo alcançar.
O crânio vermelho abre uma ponte a um teletransportador marcado por uma auréola angelical.
Desgraça. Mais uma arena. Circular como um coliseu. Formas elípticas declaram cada nível de espaço que devo tomar e conceder. Centenas de demônios aparecem, cada tipo ocupando seu próprio anel. No lugar da plateia, os voadores se aproximam — ceifo primeiro os que estão em pé na minha frente. Tento alinhar o máximo de demônios que posso nos traços deixados pelas balas de BFG. Tento e tento e tento.
Acabou.
Eliminei tudo que vi e nada me espera. Tem um rio de sangue em cima de mim. Algumas gotas pingam em minha testa.
04 — Echoes of Rot (0 demônios)
Estou em casa!
Assim que entro, tomo alguns segundos para respirar. Não preciso das minhas armas aqui. Tenho minha vida de volta. Passo um tempo na sala encarando a televisão. Cozinho algo para passar o tempo; já não me lembro o que. Chego no segundo andar para me deitar, mas meu quarto está trancado.
Onde deixei a chave mesmo?
A chave. Preciso dela. Dou um pinote para o quarto do andar debaixo. Claro, estava naquele armário. Não quero me deitar naquela cama.
Abro a porta do meu quarto. Consigo me deitar um pouco, mas estou inquieto. Em algum momento tomei conta de um tremor grave que suspira em meus ouvidos.
É insuportável. Não há um demônio aqui. Não há uma pessoa.
Oh. Minha mão se descola da cama com dificuldade. Estou deitado em carne.
Abro os olhos pela primeira vez. A casa inteira é carmesim. A chave na minha mão é um crânio.

Eu não aguento mais. Corro para o armário e pego o crânio vermelho. Uso toda minha velocidade para escapar antes que a casa me engula por completo. Puxo a pistola por precausão. Consigo vê-lo em todo canto. É o mesmo ser que compôe toda maldita superfície.
Solto um suspiro até chegar no porão. A saída que abro me dá um quê de alívio. Ainda é carne, mas ao menos me livrei de sua cor violenta.

31 — Angels Gather Here (926 demônios)
Noto o vermelho retornando no meu campo de visão, lá no horizonte. Quando saio do corredor, tomo de conta de onde estou. Ouço sinos e suspiros. O tremor não foi embora
Este local parece o céu, mas as paredes de mármore montam formas arquiteturais que fogem da minha noção do que este lugar poderia ser. Diversas frestas das paredes deixam vazar a verdade; víscera e sangue ainda correm nas veias deste local. Nada o impede de ser a real face do céu.
Um olho maldito me encara e me ataca logo em seguida. Quando corro dele, volto meus olhos ao horizonte.
Um anjo.

Ele me compele a fazer meu trabalho. Coleto a espingarda de cano duplo e a metralhadora e sigo para os demônios.
Nunca corri de nada. Nunca participei de nenhuma batalha. Nunca odiei nenhum demônio. Apenas sou.
Homenageio os monumentos enquanto colaboro com os demônios. Dançamos, festejamos e nos destruímos. Quero ficar mais próximo.
Cartões servem como chaves no lugar de crânios. Os meios são diferentes, mas o fim é o mesmo. Abro o olho que pede os três cartões e me deixo levar.
Nos juntamos. Adentro o buraco que me leva de volta à carne viva.
Me torno; me liberto.

#RECANTODOSUSTÃO2025 ENCORE


