Life Is Strange: Before the Storm é um jogo de aventura narrativa lançado em agosto de 2017. Sendo uma prequela do mundialmente renomado Life Is Strange, nele assumimos o controle de Chloe Price, uma das personagens do primeiro título que agora leva o papel de protagonista. A premissa gira em torno dos questionamentos levantados sobre o passado da personagem, revelando eventos e “points of no return” em sua vida que a moldariam para se tornar a versão apresentada em 2015, do primeiro jogo.
Videogames sempre foram e sempre serão um meio de entretenimento; porém, isso não os impede de serem, acima de tudo, veículos críticos, reflexivos e que, no geral, possuem algo relevante a contar, seja para o individual ou para o coletivo em nossa sociedade.
Este texto é uma das muitas interpretações possíveis sobre um tema tangível que, em resposta à interpretação e análise do observador, pode escalar de simples e banal à complexo e profundo.
Strauss, Goffman, Peter Berger, Thomas Luckmann e, por fim, Claude Dubar: estes são autores, sociólogos e pesquisadores que compartilham de uma mesma ideia, mesmo que cada um deles a interprete, a ressignifique e a explique de maneira diferente: A identidade é um produto resultante dos processos de socialização.
Esta teoria sociológica conclui que o indivíduo se envolve em diferentes esferas, e, a partir do momento em que o indivíduo atua nessas esferas, ele adota os papéis sociais correspondentes a essas instituições. No caso de nossa protagonista, Chloe, podemos notar três claras instituições: A família (constituída de seu padrasto e sua viúva mãe, ambos com desejos e ideias moralistas opostas às atitudes de Chloe), a escola (ambiente que funciona à moda focaultiana de vigiar e (ênfase) punir, especialmente com nossa protagonista) e seu grupo de amigos e colegas, dos quais Chloe não possui aprofundamento de início.
Dentro dessas instituições vivem atores suplementares na vida da protagonista, que deveriam representar os grupos aos quais ela pertence; isto não ocorre, porém, já que ainda esperam de Chloe gestos apropriados durante suas interações, gerando uma espécie de ruído na comunicação e conflito.
É na esfera de amigos e colegas onde se encontra outra personagem crucial para os eventos de Before the Storm: Rachel Amber. Guarde o nome de Rachel, pois, para explicar a importância dela em relação à Chloe, preciso explicar a Chloe primeiro.
Chloe é uma adolescente irritada, deprimida e que segue sua vida sempre à contramão do que os outros esperam que ela siga. Após o falecimento de seu pai, faíscas de rebeldia e desobediência se tornaram a chama que Chloe catalisa através se suas atitudes egoístas, violentas e, dado o devido contexto, perigosas. Matar aula, consumir álcool e fumar maconha fazem parte da rotina da personagem, além de discutir com seus pais, fugir de casa, vandalizar ambientes e se envolver em confusão.
Nossa protagonista não se adapta às instituições e esferas em que se encontra: seu objetivo inconsciente é encontrar o seu lugar na sociedade (ser aceita, ter a sensação de pertencimento; voltar ao passado onde ela estava satisfeita com sua vida), porém, seu mau comportamento é ter medo de tentar, falta de atitude perante algumas situações e pensamentos individualistas, todos estes causados por uma insegurança e perda de sentido vindos após o falecimento de seu pai, um dos principais pilares da vida antiga de Chloe e que agora já não mais existe, deixando de sustentar a estrutura que algum dia moldou a personagem.
Sua busca é tanto externa quanto interna (no sentido de que Chloe, agora sem sua mais importante instituição, a família, precisa se encontrar como indivíduo livre das amarras de um grupo).
Não existem ritos de passagem e nem guias ou mapas apontando para onde a personagem deveria seguir, apenas confusão, desespero e revolta.
A não compreensão do indivíduo Chloe aos olhos dos outros pode ser estabelecida em paralelo à tradição da escola do Interacionismo Simbólico, de George Herbert Mead. O Interacionismo Simbólico foca nos processos de interação: a ação social é imediatamente recíproca. Para tanto, a ação não obedece regras fixas, mas vão se estabelecendo à medida que a interação vai ocorrendo, e, para Chloe, isto é um problema.
As relações sociais fruto deste processo não são definitivas, estão subordinadas ao reconhecimento e aceitação por parte dos membros do processo; basicamente, é um processo linguístico, e Chloe só consegue falar tantas línguas. Ao perder seu pai, Chloe deixa de conseguir compreender as línguas de algumas instituições, seu comportamento de contramão e sua busca pelo reconhecimento e individualismo podem ser interpretados como uma tentativa de criar sua própria língua.
O problema se dá pelo fato de que, nas instituições pré-formadas, tem-se a pressuposição de que o indivíduo se “adequará” ao grupo, e não o contrário, o que se torna uma barreira para nossa personagem.
Na perspectiva do Interacionismo, os significados são produtos sociais, e de novo conseguimos traçar um paralelo com a protagonista. A sociedade é fruto do processo de produção e interpretação dos significados criados a partir das interações humanas — ao criar seus próprios significados e tentar impor sua insatisfação ao mundo, Chloe indiretamente deixa de se permitir viver em sociedade. Isso pode ser claramente representado por suas relações turbulentas com as instituições da família e escola, onde, para ela, “pertencer” é sinônimo de submissão.
Dentro do self da protagonista, seu “eu” e “mim” ficam nitidamente demarcados. O “mim” é uma Chloe não subordinada às regras e normas impostas, enquanto o “eu” é uma Chloe confusa, desordenada e sem identidade formada. Agora, irei resgatar o nome Rachel Amber.
Rachel é apresentada de maneira repentina na história: uma garota popular, acadêmica, artística e modelo de estudante, visão compartilhada tanto pelos alunos quanto pelos pais. Ao decorrer da trama, percebemos que Rachel vive em um limbo conturbado entre seu “mim” e seu “eu”: o primeiro é binário, obediente e satisfeito, já o segundo é, como em Chloe, fragmentado, introspectivo e desesperançoso. Por terem seus “eu” semelhantes, Chloe e Rachel conseguem se entender e estabelecer uma aceitação mútua dentro de sua instituição recém-formada, que seria, nesse caso, a própria amizade delas.
O ser humano age com relação aos elementos em seu redor na base do sentido que ele as atribui. Como os sentidos são apreendidos e modificados através da interpretação da pessoa ao entrar em contato com essas coisas, pode se notar uma “repaginação de sentidos” em Chloe graças ao seu contato com Rachel, que se configuraria como uma nova esfera.
“Eu vejo humanos, mas nenhuma humanidade. Eles são alguém, mas não são eles mesmos”.
Isso pode ser justificado se considerarmos que, para Strauss, é importante levar em conta qual a situação social em que nos encontramos para sabermos qual “eu” estamos assumindo: no caso de Rachel, Chloe pode verdadeiramente assumir seu eu sem tipificações ou devaneios entre personalidades diferentes.
A identidade situacional de Chloe em relação às instituições da família e escola começa a se encaixar melhor, visto que a essência do “eu” da personagem começa a se consolidar quanto mais tempo ela passa ao lado de Rachel, uma pessoa que não só a aceita como também permite que Chloe experiencie o “mim” de Rachel sem máscaras, fazendo-a questionar sobre alguns aspectos de sua vida e refletir sobre sua situação e sua (falta de) adaptação, além de, por questões afetivas, desenvolver um lado menos egocêntrico, irresponsável e mais cuidador, tanto externo quanto interno.
De acordo com Strauss, as identidades são continuamente perdidas e reconquistadas, as mudanças de status (o lugar ocupado pelo indivíduo, uma identidade temporária ao longo do processo de interação) permitem o desenvolvimento da identidade.
Se interpretarmos as perdas e reconquistas de identidades citadas por Strauss como (no caso de Chloe) uma sequência de tentativas e erros ao tentar se adequar e se adaptar às instituições conflitantes com a personagem, conseguiremos justificar e entender melhor o papel de pilar que Rachel Amber desempenha na história.
Ao se deparar com uma instituição (regrada) micro, Chloe consegue se reconectar às instituições macro.
A história de Life is Strange: Before the Storm percorre diversos temas ao decorrer da jogatina, porém, o(s) tema(s) e questionamentos mais pertinentes em relação à Chloe e Rachel são “Onde temos aceitação?” “Onde não temos aceitação?” e “Por que não temos aceitação?”.
Chloe transita entre diversas situações sociais, alterando suas atividades no mundo prático e sua própria auto-representação em uma incessante busca por identidade e pertencimento. Encontrando Rachel, seu mundo passa por um período de transição e a personagem passa a compreender melhor as esferas sociais em que está inserida.
Mesmo não deixando de ser uma adolescente rebelde que sofre de diversos conflitos internos e externos, Chloe aprende cada vez mais a comunicar com a mesma língua que as outras esferas demandam, ainda que não necessariamente se submetendo às normas e comportamentos impostos ou previstos pelas instituições.
“Com isso, tornamo-nos conscientes de que a identidade social não é tão sólida quanto imaginávamos, de que ela não é a mesma para toda a vida, de que ela é negociável e revogável e as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age, os mundos sociais aos quais pertence são fatores cruciais para o processo de construção identitária”.