Antologia é uma palavra originária do grego e, posteriormente, do latim para definir “uma coleção de flores”. Seu uso moderno, no entanto, foi adaptado para referenciar uma coleção de obras independentes entre si nos mais diversos âmbitos da cultura.
A única regra que subsiste é acerca da temática, contexto ou até mesmo autoria ou período de produção. Ou seja, antologias, ainda que contem com obras diferentes entre si, precisam, necessariamente, manter um certo grau de equiparidade entre os discursos e temas abordados.
E antologias sempre trazem consigo um risco grande. É uma tarefa árdua chegar a um tema abrangente e definível o bastante para reunir contribuições de diferentes frontes, formatos e aspectos de uma forma coesa e, acima de tudo, original.
Mas quando nos deparamos com um título como a série animada da Netflix “Love, Death & Robots” de 2019, esse risco parece não existir de verdade.
“Love, Death & Robots”, a princípio, pode realmente parecer mais uma série boba do catálogo da gigante vermelha do streaming, mas não se engane. A serie autoral é, basicamente, uma antologia de contos que possuem, como fundo de cada conto, uma dessas três palavras principais como pilar de sustentação teórica da obra: Amor, Morte ou Robôs (em alguns casos, as três juntas).
Analisando de forma técnica, a série parece ter alguns pontos de inflexão em comum entre os episódios: cada capítulo é uma história independente que amarra um certo universo de regras próprias para os acontecimentos daquele episódio. Cada capítulo possui um traço artístico e uma proposta visual única e incomparável, já que cada episódio sai de um time de produção diferente. Cada capítulo conta uma história completa com começo, meio e fim em menos de 15 minutos. E cada um deles te deixa com mais água na boca sobre aquele mesmo universo. Para quem assistiu a essa série uma coisa é clara: cada episódio apresenta, basicamente, um universo inteiro que, sem problema algum, poderia ter uma produção própria por trás.
Temos, então, em cada um dos 26 episódios distintos entre as duas temporadas disponíveis, uma história coesa e completa diferente, ambientada em um universo único e compreensível em sua totalidade, com um traço artístico nunca visto, sendo apresentada em menos de 15 minutos. Em uma análise mais profunda, podemos até chegar a dizer que o formato apresentado é uma forma digitalizada, futurista e moderna dos contos fantásticos do século XVII.
26 CAPÍTULOS, 26 HISTÓRIAS, 26 UNIVERSO E INFINITAS INTERPRETAÇÕES
Tentar, de uma forma generalista, tratar todos os episódios da mesma forma é impossível. Na verdade, não diria impossível, mas diria que é obsoleta. Já que o título da série em si já faz esse trabalho: Love, Death & Robots. O próprio nome da série é uma amalgama perfeita das temáticas abordadas. E se os próprios diretores da série já fizeram isso, não vou ter esse retrabalho.
Embora separar a série entre episódios de AMOR, MORTE OU ROBOS, dê à produção um tom, de certa forma, “vazio” e alienante, como se a série fosse apenas de histórias bobas sobre esses temas, isso definitivamente não é a realidade.
Cada curta-metragem conversa sim com algumas dessas três palavras fundamentais para o cerne da produção, mas apresenta as histórias com constantes e profundas críticas sociais; como feminicídio, preconceito, racismo, suicídio, dentre outros. É uma série que aprofunda, por meio dessas histórias metafóricas, diversas questões relativas a existência humana, sobre os reais significados dos nossos sentimentos, desejos, medos e pavores como seres humanos. É o Amor pela vida e suas realizações, os Robôs como os meios alternativos de interação homem-natureza-homem e a Morte como fim inegável para todos esses aspectos.
O que me compete nesse artigo, de forma sucinta, é mostrar quais os episódios de amor, de morte e de robôs, fazem jus ao real idealismo da série. Em outras palavras, quais as melhores histórias únicas de cada um dos temas.
Alguns episódios claramente abordam os três temas de forma sistemática, mas essa não é a regra. Antes de ler a humilde opinião desse que lhes escreve sobre os melhores, já faça o login no Netflix e prepare a pipoca, porque imagino que logo após esse texto você terá que correr para conferir o que falei sobre Love, Death & Robots com seus próprios olhos. Ah, mais uma coisa, evitarei ao máximo os SPOILERS.
ROBÔS: O FUTURO, O PRESENTE OU SIMPLESMENTE UMA AUTOCRÍTICA?
Zima Blue (S1; E18)
Uma jornalista é convocada para comparecer a casa de um dos maiores artistas da galáxia, após anos tentando (sem sucesso) uma entrevista exclusiva. Zima Blue é conhecido por pintar painéis gigantes maravilhosos sobre o cosmos, com uma abundância de cores, estilos e traços.
Nos últimos anos, porém, o artista tem colocado, sem explicação aparente, formas azuis no centro dos seus gigantes murais artísticos. Há sim uma explicação bem fundamentada, coerente e, principalmente, simplória.
Com um desenrolar leve do roteiro (que conta com precisos plot twists para surpreender de forma acertada o espectador), acompanhamos o desenrolar da história pelos olhos da jornalista, que ouve detalhadamente a história de vida e a trajetória artística. Arte, existência, sentido da vida, ambições e realizações são algumas das tramas que sobrepassam a narrativa do artista.
Zima Blue é, sem dúvida, um dos melhores episódios da coletânea. Após os pouco mais de 10 minutos de tela, você dificilmente vai conseguir separar a arte da técnica e a técnica da arte. E, mais importante ainda, dificilmente vai conseguir encontrar uma resposta para o significado da arte nas nossas vidas. Às vezes, como Zima nos mostra, a mais bela arte pode estra presente nas simplicidades da vida de cada um.
Outros episódios memoráveis com robôs: Ponto Cego (S1; E17); Boa Caçada (S1;10); Gelo (S2; E2)
AMOR: AO MESMO TEMPO PAIXÃO, ROMANCE E DOR
Esquadrão de Extermínio (S2; E3)
Somos apresentados, de primeira mão, a uma cena suja e horrenda: policiais invadem uma casa em ruinas e encontram uma idosa aparentemente cuidado de duas crianças. Em um primeiro momento, nos parece que o enredo é sobre uma mãe que cuida de seus filhos em uma situação de clara insalubridade e os agentes estão ali justamente para salvar as crianças.
A cena inicial continua mostrando o lugar precário, intercalando com a caixa de brinquedos limpa e bem arrumada das crianças e palavras de piedade e clemência da suposta mãe: “atire em mim, mas não neles”. A partir dai vemos que a narrativa parece ser exatamente oposto do que o espectador parecia acreditar.
“Esquadrão de Extermínio” retrata uma distopia onde humanos descobriram como viver, aparentemente, para sempre. A custo, porém, da própria continuidade da espécie humana: aqueles que não têm filhos podem desfrutar de uma vida imortal, já que a própria fecundação da mulher impede que o processo de rejuvelhecimento seja realizado. É um mundo, então, onde homens e mulheres desfrutam da vida eterna da melhor maneira que o ser humano poderia: gastando séculos em futilidades e preciosismos demasiadamente humanos.
Durante o episódio, vemos a história a partir dos olhos de um policial dessa nova ordem mundial cuja função é, exatamente, capturar subversivos que tentam ter e criar filhos nesse novo mundo. E as ações são claras: prisão para os adultos, morte para as crianças.
Em um dos episódios mais fortes emocionalmente de toda a série, acompanhamos de perto a dessensibilização que esse mundo imortal nos passa e como isso tem um efeito contrário no protagonista, que pouco a pouco parece entender a monstruosidade que faz todos os dias. A dor que acompanha o protagonista e o caráter depreciativo que o mesmo tem de sua própria existência imortal abala qualquer espectador.
É um episódio forte na mensagem e forte nas imagens, não recomendado para corações fracos e muito menos para quem convive com crianças pequenas (alerta de choro iminente)
Outros episódios memoráveis com Amor: Para Além da Fenda de Áquila (S1; E2); Proteção contra Alienígenas (S1; E17); Show no Deserto (S2; E4)
MORTE: É O FIM, É A FALTA, É A QUEDA
O Gigante Afogado (S2; E8)
Um corpo de um gigante chega misteriosamente à uma praia em algum canto de algum lugar do mundo não especificado. A origem do próprio gigante também não é especificada. E esse gigante está morto. Um corpo de mais de 200 metros estirado na praia, próximo a uma vila de pescadores.
Multidões se reúnem em volta do gigante para apreciar tamanho espetáculo da natureza. A história, então, começa a se desenrolar, contada diretamente por um cientista local que é enviado para estudar o corpo do gigante. Percebemos logo de início, porém, que esse cientista é, possivelmente, um antropólogo ou algo do gênero, já que ele se recusa a encostar no gigante e analisa, a distância, o corpo do homem e como os humanos reagem ao gigante.
Narrando de forma poética suas anotações embelezadas com um lirismo proporcional ao colosso em questão ao telespectador, o cientista vai descrevendo, aos poucos, a deterioração do gigante em si por motivos naturais e humanos.
É o episódio mais belo, metafórico e intrigante de toda a série sem dúvida alguma. O episódio todo, sua composição, roteiro, estilo artístico, fotografia, parecem demais um poema. Melhor, uma epopeia. Uma obra épica, digna de um gigante. O gigante em questão, no fim, é só o segundo plano de toda a poesia apresentada pelo cientista que protagoniza de verdade a história contada por meio de estrofes detalhistas e sutis, com um leve toque mórbido, já que a todo momento o episódio faz questão de lembrar que há um corpo gigante em decomposição na praia.
Outros episódios memoráveis com Morte: A Grama Alta (S2; E5); A Vantagem de Sonnie (S1; E4); A Guerra Secreta (S1; E14)