Era um dia como qualquer outro. Os trabalhadores da empresa Agradyne pegavam um ônibus sem espaço no seu passe rosa para sentar em uma cadeira desconfortável e sem vista para o céu, em um trabalho que paga pouco e cobra muito. Essa vida pacata estava prestes a ser interrompida quando, debaixo de seus pés, uma explosão abre uma fenda no mundo. Em meios aos escombros de uma cidade em ruínas, duas almas espelhadas criam um pacto de sangue e espírito para sobreviver ao apocalipse.
Possessor(s), lançado agora pouco em 11 de novembro desse ano, desenvolvido pela Heart Machine e publicado pela Devolver Digital, é um metroidvania dinâmico com mecânicas criativas, direção de arte estilosa e escrita interessante para completar bonitinho. O foco em combate inspirado em platform fighters e as escolhas excêntricas para armas me interessaram muito, então resolvi dar uma chance mesmo estando bem ocupada.


A premissa principal é bem simples: um apocalipse demoníaco acontece no mundo e Luca, nossa protagonista, precisa fazer um acordo com o demônio Rhem para que ambos sobrevivam e ela possa se vingar pela morte de um amigo. A ideia simples é perfeita para fomentar o constante mistério que é adicionado à história, especialmente quanto a natureza dos personagens.
O mundo de Possessor(s) é como o nosso, em que uma grande corporação controla o mundo e a vida das pessoas de forma tão “sutil” que muita gente nem percebe sua liberdade sendo tomada, e os que percebem, não tem voz.


Todos os cidadãos são separados em passes coloridos que revelam o nível de sua “importância” na sociedade, enquanto a empresa vende seu gerenciamento e segredos com mentiras agradáveis e manipulação. Mas o que são esses segredos?
Demônios são compostos de uma espécie de energia vital chamada Croma. A diferença do Croma para o sangue humano é que Croma possui uma certa carga energética. Isso é relevante para a história, pois com a descoberta dos demônios a Agradyne pôde usar de seres vivos como base para energizar o mundo para sempre e fazer dinheiro com isso. O apocalipse é uma resposta a esse abuso.

Rhem é um dos mais fortes demônios no seu mundo, mas aqui ele foi deixado para morrer por seu companheiro. Luca também passou pelo mesmo. Enquanto ambos sangravam até a morte, formaram um acordo, e Rhem passou a possuir Luca em troca de dar a ela novas pernas. Com esse acordo, Luca possui controle do próprio corpo… enquanto Rhem quiser.


A chave para o enredo de Possessor(s) é deixar algumas noções para trás. A natureza de humanos e demônios não é fixa, e ambos são capazes de bem e mal. A natureza dos personagens é incerta, e gosta de quebrar um pouco suas expectativas quanto ao teor narrativo de alguns deles (em especial, Kaz). De início, a rápida apresentação do enredo e a mesmice que parecia tão presente em seu universo me afastaram, mas o desenvolvimento logo me capturou de novo.
No entanto, o que me interessou de início sempre foi a gameplay. Possessor(s) busca sua pedra angular nos jogos de luta, particularmente inspirados em Super Smash Bros. Todos os golpes possuem knockback que lançam inimigos para o ar em diferentes ângulos, e a ideia é manter juggles não os deixando pousar. Com a grande maioria deles, é necessário primeiro perfurar sua estrutura, atacando, aparando e agarrando até que eles possam ser lançados ou pelo menos stunnados no chão.


Outra coisa que veio de Smash foi o seu moveset. Spotdodges, Rolls e Airdodge como desvios, Power Shield (Parry) como mecânica defensiva, Specials e Tilts como ataques e também um botão de Throw com Tether Grab (Hookshot do Link, Chicote da Samus…). A ideia é transformar esse combate em um jogo singleplayer, similar a Subspace Emissary mas… bem melhor.


O fluxo de combate me divertiu bastante e até gostei da grande maioria dos inimigos. Todos pedem uma abordagem diferente ao lutar, e você pode escolher enfrentá-los de formas únicas. Enquanto quase tudo no jogo pode ser aparado, o parry é razoavelmente difícil de acertar — por mais que seja recompensador — enquanto o dodge costuma ser mais acessível. Às vezes você pode quebrar o ataque do oponente atacando, ou mesmo desviar com um salto. O mesmo inimigo pode ser enfrentado de formas diferentes, e por mais que sejam opções simples para escolher, cada uma é útil do seu próprio jeito.

A exploração é bastante intuitiva, e acabei nunca me vendo perdida nesse jogo, o que me deixou bem impressionada. Apesar do mapa gigantesco e movimentação limitada para a protagonista (que só consegue qualquer tipo de movimentação a mais no ar nos últimos minutos da jornada), me vi sempre sabendo onde eu poderia prosseguir. O mapa fez bem em me mostrar onde eu poderia ir para avançar no jogo, e também é possível marcar pontos de referência na sua interface.


Mas vou ser honesta, algumas coisas deixaram a desejar. O mapa de Possessor(s) é desnecessariamente grande para a movimentação da Luca, incluindo a distribuição de teletransportes e NPCs. Toda vez que um canto do mapa precisa ser explorado leva uma eternidade para chegar lá, lojas costumam ser escassas e extremamente afastadas, e é só na segunda metade da jornada que os itens que você ficou coletando durante a gameplay se tornam úteis. A coletora responsável por aumentar sua vida e demais atributos só apareceu depois de pelo menos cinco horas de gameplay para mim, e houve uma queda absurda na dificuldade quando a encontrei pois estava sofrendo o jogo todo com nada de vida e só dois analgésicos.


A influência de Dark Souls tão presente nos jogos da Heart Machine é notável, mas às vezes bem chatinho. Morrer e perder todo meu Croma a não ser que volte lá e pegue ele é chato demais em um jogo como esse, e também é chato ter que depositar no save (que é literalmente uma chama acesa) para não perder até que eventualmente eu encontre uma loja afastada do save e precise ir pegar tudo para voltar.


Mas o que de fato me deixou chateada foi a falta de variedade do combate. Quatro armas com seis ataques simples, e oito Specials. Tudo bastante raso mecanicamente falando, com o único tipo de upgrade sendo slots para acessórios — que no início do jogo você mal irá precisar, considerando o baixo número de acessórios encontrados na primeira metade da aventura.


Isso me deixou um pouco revoltada, tá? Eu esperava todo tipo de loucura com a premissa, ou pelo menos uma quantidade honesta. Fiquei pasma em ver que além do número ser baixo, todas as armas e specials são simplistas demais para cobrir a falta de quantidade.
As quatro armas apenas diferem em velocidade e dano, nada mais. A faca é a mais rápida, bastão de baseball e hóquei são os meio termos, guitarra é a mais lenta. Na prática, você vai escolher uma que gosta mais e nunca tocar nas outras de novo pois não tem botão para trocar (pedindo que você pause) e elas não trazem qualquer tipo de singularidade mecânica. Eu usei o taco de hóquei porque tem um combo de cinco hits no jab, um de três no up tilt e um Hurricane Blast do Sora de Smash.


Me entristeceu também o uso de algumas ideias. Eu achei que o Mouse seria uma ARMA, não só um especial. O mesmo para a Katana. Não gostei da guitarra ser usada só para bater e a Luca NUNCA tocar ela, como os meus heróis Dante e Hector fazem. E me decepcionou o fato de que esse é um metroidvania publicado pela Devolver, provavelmente a maior publisher indie de todos os tempos, e ainda assim parecer um jogo tão limitado em conteúdo.


Eu sei que pode ser uma comparação meio injusta, mas os golpes especiais são similares às Souls de Aria of Sorrow em profundidade sem vir com a mesma quantidade e customização. Mais de 50 Bullet Souls, que são as mais comparáveis em funcionalidade, enquanto Possessor(s) só tem oito, sendo um jogo com o dobro de tamanho (o mapa é gigante) e só QUATRO armas principais.


O mouse é um golpe para cima. A bola de baseball é um projétil. O óculos é um counter. A katana é um golpe forte. É tudo tão simples e chato que você esperaria ter MAIS para no mínimo te deixar experimentar com builds, mas não é bem assim. Eu gostaria de fazer uma pequena separação para falar de ideias que eu tive para adicionar nesse sistema, e você pode pular isso se quiser, mas eu sinto no meu coração a necessidade.
Primeiro, eu gostaria de mudar o funcionamento da katana. Ainda como special weapon, acho que ela poderia ser um “flurry attack”, uma chuva de cortes rápidos. Ao segurar, Luca vai preparar um dash que fica mais forte quanto mais cargas você usa no movimento. O início do dash funciona como um parry, e ela pode atravessar para o outro lado dos inimigos durante o ataque. Acredito que transformar a katana em uma arma principal seria tematicamente desbalanceado com as demais armas do jogo; nesse caso, se for para mantê-la como special move, acho que vale dá-la mais destaque.
Quanto às armas novas, adicionei um especial para cada área do jogo e então umas armas a mais que achei interessante.
Skateboard (Special) — Um skate velho que resistiu a passagem do tempo. Ao usar, ela vai subir no skate e seguir para frente, podendo pular ou fazer um ollie para atacar (e sair do skate no processo). Não é tão bom para danos, mas é ótimo para movimentação em combate.
Trash Bin (Special) — Luca salta e enfia a cabeça de um inimigo na lixeira, stunnando eles. Inimigos grandes demais apenas recebem muito dano de stance.
Red Bandana (Arma) — Um lenço vermelho trazendo os conhecimentos de sábios andarilhos lutadores. Com essa arma, Luca golpeia com artes marciais, incluindo um donkey kick, divekick e dragon punch.
Frisbee (Special) — Um disquinho que é usado como bumerangue. Lançar rapidinho vai atirá-lo logo na frente da Luca em curto alcance, mas vai golpear o mesmo inimigo várias vezes. Carregando um pouco, o frisbee é lançado mais longe, mas não vai ficar girando no mesmo lugar antes de voltar como a versão mais fraca.
Chair (Special) — Luca põe uma cadeira no chão e chuta ela para frente. A cadeira vai ficar ali por uns segundos, e ela pode se sentar para descansar. Descansar na cadeira recupera vida bem lentamente, o que é inútil em combate.
Possessed Doll (Special) — Uma boneca possuída por um demônio. Luca a atira na sua frente, e assim que ela pousar, vai teleportar Luca para onde está. Pode ser no chão ou em um inimigo! Faz algo razoavelmente similar ao chicote, mas é útil em situações únicas também.
Deck of Cards (Special) — Luca lança um baralho para o ar, e então as cartas vão perseguir oponentes rapidamente. Elas voam em um ângulo reto e não alteram trajeto depois de terem mirado. O lançamento inicial para cima causa dano! Será uma carta por inimigo em volta da Luca, com o limite de cinco cartas por tiro.
Chainsaw (Arma) — Uma arma lenta com muito poder. Antes de ser usada, precisa ser ligada em combate, colocando Luca em um stance onde ela pode se mover e pular, mas lentamente. Ainda assim, os cortes são mais rápidos que os golpes da guitarra. A motosserra também está enferrujada, por sinal.
Net (Special) — Uma rede. Quando lançada, causa dano contínuo ao inimigo que acertar (mas muito pouco), e também diminui sua defesa de stance permitindo que menos golpes da Luca já quebrem.
Fishing Rod (Arma) — Uma arma com muito alcance focada em inimigos aéreos. Só causa dano no anzol, então pede distância para funcionar. Inimigos fracos podem ser puxados para Luca assim como o chicote faz.
Man-Eater Vase (Special) — Uma planta carnívora possuída, aparentemente o demônio e a planta fizeram um acordo. Luca posiciona a planta no chão que vai golpear inimigos próximos com uma abocanhada. Inimigos que estiverem já sem armor são agarrados e presos na boca da planta.
Glass Shards (Special) — Luca joga cacos de vidro no chão, causando dano contínuo aos inimigos que pisarem. Funciona como Vibhuti ou a Holy Water de Castlevania! Muito útil contra bosses ou para maximizar dano em inimigos grandes.
Credit Card (Arma) — Um cartão de crédito encontrado no chão. Embora Luca não saiba a senha, ainda pode usá-lo como uma faca. Mais rápido que a própria faca por ter muito menos alcance.
Handbag (Special) — Luca gira a bolsa na mão preparando um golpe poderoso para frente. Eu diria que substitui o funcionamento antigo da katana!
Crucifix (Special) — Sacrificando toda a vida e cargas, Luca levanta um crucifixo que destrói todos os inimigos na tela. Não funciona em chefes!
Posso estar me estendendo demais, mas seria legal se tivessem golpes mais fortes para as armas também, pra não chamar direto de Smash Attacks. Não precisaria de um botão a mais, poderia ser apenas uma direção e botão de ataque no exato mesmo tempo! Todos os movimentos da guitarra no chão poderiam estar nesses, e os golpes normais poderiam ser… bem, de fato tocar a guitarra. Insano como a Luca não faz isso já, né? Talvez um dash attack cairia bem também…
Ok, fim dessa parte. Eu sei que pode parecer bem esnobe trazer minhas próprias ideias do que eu faria, mas isso é porque eu… me apaixonei por Possessor(s), na verdade. Por mais que tenha me decepcionado, eu acredito muito no potencial da ideia e me apeguei bastante aos personagens. A história foi um dos grandes motivos para isso.

O comentário anti-capitalista e a mensagem de racismo foi bem única pra mim, mas foram as inseguranças e personalidades dos personagens que tiveram impacto no meu coração. O tipo de relacionamento entre Luca e Kaz, e também entre Luca e Rhem me deixou bem comovida porque foi fácil me ver nela. Especialmente gostei de como ideias bastante clichês são desviadas na personagem e em sua caracterização, deixando ela não só mais humana como também dando sua própria identidade. Faz parecer que essa história aconteceu com os escritores, de alguma forma metafórica.




Mesmo os personagens menos importantes como a família da Luca e os diversos demônios que ou se tornam seus aliados ou seus adversários, foram peças importantes na estrutura da escrita desse jogo. Eu admito que não me importei com o visual e muito menos com a música, mas os personagens, de verdade, me capturaram como eu não pensava que iriam.
Sim, eu adorei os designs de primeira, mas não esperava que de fato ia achar algo diferente e autêntico na escrita. Não porque subestimei o jogo, mas porque de fato esperava um foco absurdo em gameplay e que o resto fosse mais… acompanhamento. Até que eu me vi querendo avançar para entender os sentimentos de Rhem, as atitudes do Kaz, o desfecho do Dessa e o desenvolvimento da Luca. Eu queria entender esses personagens mais do que queria praticar combos e procurar coletáveis, o que é novo pra mim!


Os temas de abuso nos relacionamentos entre personagens foi especialmente efetivo comigo. Luca e Rhem são protagonistas fáceis de se identificar, e a experiência de pessoas que você ama terem tanto controle sobre seus sentimentos faz completo sentido. Um dos chefes recorrentes no jogo é o Pesadelo, um doppelganger da Luca usando o moveset completo dela. Apesar de Luca nunca ter feito nada para merecer isso, ela sente muita culpa pela morte de Kaz, assim como sentiu quando ele estava vivo.




Me agradou muito como a história apontou evidências para o pensamento de Luca. Coisas que, aos olhos dela, são claras provas de que Kaz estava certo e é tudo culpa dela, mas que para pessoas de fora não teria como interpretar dessa forma. Amar alguém que te faz sentir dessa forma de fato cega sua visão para seus próprios desejos e necessidades. Luca querer salvar sua família antes de fugir com Kaz no meio do apocalipse faz total sentido para todo mundo — menos pra Luca, porque essa decisão pode ou não ter levado ao fim de seu amigo.


Kaz fez Luca acreditar que as suas boas notas eram o motivo para os pais odiarem ele. Dessa fez Rhem acreditar que a culpa de estarem presos naquele laboratório foi do Rhem. Kaz fez Luca acreditar que por ela ter uma família pobre e morar na pior área da cidade, devia se sentir grata por estar ao lado dele. Dessa fez Rhem acreditar que seu amor era falso por ter o “deixado” para trás no seu plano de voltar para casa. Nas palavras de Luca para Rhem: “Nós temos o mesmo problema, cara. Nós somos, sei lá, idiotas.” Uma poeta.

Eu também admiro a abordagem de Possessor(s), pois esses temas nunca roubam os holofotes da gameplay que toma 90% do jogo. Mesmo com boa parcela do jogo sendo corridas por um mapa gigante e combates contra objetos possuídos, a história não está nem pouco presente nem sendo intrusiva. É um jogo bastante equilibrado, e esse equilíbrio foi importante para me fazer admirar e me divertir com a história.


Bem, com isso, acho que podemos dar adeus. Por mais que Possessor(s) tenha seus tropeços, eventualmente caminhou até o fim e me convenceu com ingredientes de sua composição que eu não esperava ligar. Sua mensagem ressoa comigo e sei que também com muitas pessoas que conheço que ainda não jogaram, e por esse motivo, não acho que esquecerei dele. Gostaria que a Heart Machine revisitasse o projeto em um futuro próximo para dar a ele uma DLC ou duas, pois adoraria ter novas armas e mecânicas, ou quem sabe um modo adicional como os de Castlevania?

Bem, o futuro vai dizer. Até lá, boa noite a todos e bom feriado!

Uma cópia de Possessor(s) para PC foi concedida pela Devolver para análise no Recanto do Dragão.


