Romancing SaGa 2 (2024) — a genealogia sistematizada

Akitoshi Kawazu, pouco após sua entrada na Square (que futuramente se tornaria a Square Enix), já ocuparia a função de designer de combate do primeiro título da franquia Final Fantasy. Diante todos os méritos do primeiro jogo, e grande sucesso monetário que o embrião da, discutivelmente, maior série de RPGs japoneses traria aos bolsos dos nossos queridos executivos da Square, Kawazu naturalmente foi sumonado para projetar o combate da nova sequela da série, Final Fantasy II. Talvez, na perspectiva de Kawazu, a alquimia por detrás do sistema de ganho baseado em estatística fosse o suprassumo de sua, e de nossa, expressão (indiretamente confirmado depois, quando colocamos em retrospecto todos os trabalhos em que esteve envolvido e entrevistas das quais participou). Comumente caracterizado pela não-linearidade, grandes cenários segmentados para explorarmos e personagens que crescem e se adaptam de acordo com o feedback dos inimigos. A lógica é simples: Apanhou? Agora, o herói aguenta mais porrada; Usou magia? Os heróis agora se habituam, cada vez mais, aos conhecimentos ocultos. 

Kawazu, junto de meia dúzia de japoneses obcecados do final dos anos 80, ficaram impressionados com todas as novas possibilidades desse novo sistema… Uma pena que a sua apreciação se limitava a um grupo pequeno de pessoas, sendo um grande alvo de críticas Japão afora devido seus “problemas” como ambiguidade, alta dificuldade, grinding e outras qualidades que, aos olhos de muitos, são vistas como falhas imediatas. Devido às críticas ao combate proposto, nosso mestre não foi cogitado para a terceira iteração da franquia. Porém, algum tempo depois, através de um dos maiores migués da história, “acidentalmente” acabou fazendo um RPG ao invés de um clone de Tetris como havia sido ordenado. Consequentemente, Kawazu nos agraciou com Makai Toushi SaGa (1989), primeiro título desta franquia que iria, até os dias de hoje, se tornar a definição de sua transgressora filosofia de design. Até, finalmente, chegarmos nos dias de hoje, 35 anos após o lançamento do primeiro título onde fomos agraciados com a reimaginação de Romancing SaGa 2 (1993), Romancing SaGa 2: Revenge of the Seven (2024).

Tive meu primeiro contato com a franquia via ameaça, mesclada à falta de crença de meu agressor diante minhas capacidades cognitivas — proferindo uma série de ofensas e insultos (dicas e guias). O que, naturalmente, despertou a vontade não somente de proferir a clássica ofensa “Chupa, corno!” diante o meliante quando concluísse sem sua assistência mas, também, para entender de onde viria tanto apreço por um sistema que, visto de fora, era tão alienígena e revestido por conhecimentos esotéricos. Após uns dois pares de anos, havia concluído alguns jogos da franquia — sendo eles: Minstrel Song, Frontier, Unlimited, Scarlet Grace e Emerald Beyond —, experiências que garantiriam à SaGa um espaço modesto dentre minhas séries favoritas não só dentro do gênero, mas em todo formato. Por isso, era fatal meu interesse pelo novo anúncio, a reformulação do segundo título da “sub-série” Romancing SaGa, Romancing SaGa 2: Revenge of the Seven (2024).

Os sete heróis que dão título ao jogo, na tentativa de salvar o mundo, são consumidos pelo mal que nele habita. Traídos, não só pelas pelas pessoas, mas pelo próprio mundo e o fatalismo de seu percurso: a tragédia e o ciclo de destruição iminente, que independe de nossas ações. Jogar SaGa, e suas iterações, é compreender que o movimento sempre penderá ao caos, à quebra, à digressão, à não-linearidade pois não importa o caminho a se seguir, todos os pontos inevitavelmente irão se convergir (dentro desse script pré-programado) para que, logo depois, no fim, se fragmentem no caos (através do contato jogo-jogador). E se isso é algo bom ou não, cabe ao jogador decidir. E cabe tanto a nós, que o ato de se jogar Romancing SaGa 2 é, sistematicamente, sobre a inevitabilidade. Para quem está caindo de paraquedas, além das convenções clássicas do fazer de Akitoshi Kawazu, controlamos o imperador de um grande continente que se direciona à catástrofe causada, parcialmente, pelos sete heróis que se revoltaram contra o mundo. Porém, a luta contra grandes demônios e heróis rebeldes não me parece uma disputa justa quando quem controlamos nesse momento inicial (chegaremos lá) é um projeto de reizinho sem proficiência alguma para o combate ou liderança. A capacidade de agência diante dessas entidades poderosas então se manifesta no principal sistema de progressão do jogo, a herança, os conhecimentos que nos são passados por aqueles que nos antecederam e tivemos contato direto ou indireto. O ponto é, seu personagem, após presenciar a morte de seu pai —  o antigo rei —  é abençoado com todo seu conhecimento, assimilando assim anos e anos de experiência de seu antecessor. A partir desse ponto, a ansiedade de salvar o mundo no agora é soterrado pela potência do conhecimento que pode ser passado para as futuras gerações, se tornando o principal apelo deste sistema. Seus personagens irão morrer, mas o tempo continua, o mal e o descontentamento permeiam, eternos, ao menos enquanto alguém não fizer algo; mas o que podemos fazer diante desse inimigo imortal? Romancing SaGa 2 acredita que o que nos resta é resistir, nos aprimorar, criar aliados e nos unir, e por quê? Porque assim fica mais fácil (literalmente).

Desde do primeiro título que tive contato, o SaGa Frontier (1997), Kawazu demonstrava seu apreço pela capacidade dos RPGs japoneses de turno, que disponibilizam ao jogador uma série de ferramentas possibilitadoras de infinitas concatenações, esse paradigma em que definimos a ação de forma concreta e (quase) invariável, selecionando nossos movimentos para que, logo depois, eles sejam efetivadas no quadro. Seu apreço pela lógica de turnos era tão grande que ele decidiu, como um bom esquizofrênico, desestruturar a linearidade não só narrativa, mas também do combate que podemos visualizar nos principais protótipos do gênero. Tentativa nem sempre compreendida, mas que eventualmente viria a encontrar seus aficionados que ansiavam a transfiguração ou variação desse gênero tão consolidado. Em Romancing SaGa 2, há a possibilidade de nos expressarmos não só no agora, mas através do tempo, paralelamente todo planejamento que o sistema de proficiência e habilidades proporciona para que assim tenhamos um herdeiro digno de suceder nossos antigos heróis. Tudo comunicado através duma série de interfaces e dados que representam todas essas possibilidades, em um mundo que está em constante movimento através das gerações e diretamente sendo modificado por nossas ações enquanto imperador. Sempre metendo o nariz em sucessões, problemas alheios, guilda de ladrões, nômades, tudo com o objetivo de deixar as coisas menos difíceis para nós (enquanto jogadores) e para os habitantes do continente, atos humanitários comuns de um imperador como todo nosso histórico demonstra… né?

A impressão que é deixada ao colocar um título ao lado de outro também revela uma focalização cada vez mais evidente nos sistemas, à medida que suas maiores preocupações se acomodam nas possibilidades de cada papel que decidimos performar e como isso afeta diretamente a forma com que abordamos, através do combate, cada conflito. Mesmo que, a princípio, escolhamos recrutar uma toupeira para a party — porque toupeiras são engraçadas, especialmente quando parecem senhorinhas de idade com seus mini óculos e toucas de cetim —, essa escolha logo desmorona quando sua eficiência no combate apresenta pouca sinergia com o restante da party.

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Acima de meu hábito — já quase religioso a essa altura — de jogar algumas boas horas “apenas” como um estudo da lógica dos sistemas e suas implicações, para só depois recomeçar do zero e realmente jogar com uma compreensão menos nebulosa, em SaGa essa experimentação se mostra, para o bem ou para o mal, quase necessária, ainda que de maneira menos extrema.

A responsabilidade que carregamos enquanto jogamos Romancing SaGa 2: Revenge of the Seven não é um compromisso que fazemos com os diversos NPCs do jogo, tampouco com nossa função de herói já pré-definida pelas batidas desse gênero — particularmente falando, isso nem mesmo foi questionado, já que as escolhas muito pouco escaparam do puro pragmatismo visando um boost nas possibilidades do combate durante minha jornada. O verdadeiro compromisso é com o legado deixado por cada personagem ao longo das várias gerações que se passaram, com as pontes e construções erguidas ao longo dos séculos e, sobretudo, com nós mesmos, junto à nossa capacidade de acumular e assimilar essas experiências. Veja bem, mesmo que o progresso desses personagens seja representado através de números, novas magias e ataques — os quais, inclusive, se tornam um conhecimento coletivizado por meio de um sistema de proficiências compartilhadas —, ele também se manifesta na nossa própria capacidade de compreensão desse sistema interno ao universo de SaGa. Mesmo que existam particularidades dentro de cada título, o que o Kawazu define enquanto intrínseco se mantém, se complexifica e, ao longo de cada lançamento, se abstrai cada vez mais partindo dessa “essência” (palavrinha ruim, mas deu pra entender) partilhada de jogo para jogo. A série SaGa não só evidencia a paixão de Kawazu pelo gênero como também é a franquia na qual ele mais se dedica e busca extrair uma essência do que seria sua autoria. A série, enquanto uma sucessão de abstrações — com rebarbas sendo removidas e outras sendo adicionadas em seu lugar —, também cria espaço para essa busca pela excelência daquilo que ele acredita ser a imagem ideal da franquia.

E, bom, enquanto jogadores de videogames e seres humanos com espírito (alguns mais que outros), só nos resta brincar juntos de exploradores nessa arqueologia compartilhada que Akitoshi Kawazu propõe em busca da verdadeira imagem de SaGa.