É comum perceber pessoas comparando diretamente jogos voltados para movimentos corporais (de ação — do gênero, tanto temático, quanto mecânico) com dança.
Platformers, beat em ups, shooters, fighting games e vários outros jogos dentro desse grande gênero compartilham de um único gene, essencial para essa analogia funcionar — movimentos corporais.
Como corpo, podemos entender a materialização do personagem que controlamos, ou o objeto que parte desse material (uma arma, um summon, feitiços, etc.) — de qualquer forma, o que a gente controla num videogame é a extensão dos nossos sentidos. Cria-se uma dinâmica motora. No caso dos jogos de ação, uma dinâmica em tempo real, que é muitas vezes comparada com a dinâmica de uma dança.
Não vou — não posso — me aprofundar ao máximo nessa comparação, até porque não é meu campo de estudo e nem o foco dessa crítica, mas partindo do pressuposto de que “Sekiro: Shadows Die Twice é quase como uma dança, de tão ‘belo’ que são os movimentos relacionados ao combate do jogo” — eu respondo com uma descrição impossível: Sekiro é uma dança, uma dança inerte.
Eu não tenho interesse em encontrar uma resposta para a pergunta “Sekiro é soulslike ou não é?”, mas é inegável que ele compartilha de muitos elementos dos jogos em estilo Souls anteriores da From Software — progressão linear mas com muitas ramificações entre os caminhos, sistema de checkpoint e progressão baseada em ‘corpseruns’, espaço pra recuperar vida, upar nível e fast travel, EXP perdível, inimigos que sempre respawnam, mais foco na impressão dos inimigos do que na expressão do jogador, sistema de cura parecido com o de Dark Souls II — e mesmo com uma abordagem diferente na narrativa, existe semelhança até nos temas do jogo. Não é que Souls inventou tudo isso e reinventou a roda dos videogames, mas num conjunto, são elementos que compartilham de um DNA muito sólido e é possível dizer que Sekiro bebe claramente do mesmo suco.
E isso varia muito do que a pessoa acha essencial para se considerar um soulslike — alguns discordam da ideia de Sekiro ser um por conta de sua narrativa, outros acreditam ser por conta do combate, outros da falta do foco em customização de RPG, e por aí vai…
Independente de tudo isso, acho que Sekiro tenta tomar um passo que os outros Souls não ousam — se distanciar. Reapropriar os elementos de um Souls pra criar um jogo de ação e aventura com um foco muito maior nas mecânicas do combate do que nos sistemas de RPG, e eu diria que isso vem muito da influência que o sucesso de Bloodborne trouxe pra From Software — o próprio DSIII já é bem mais voltado pra ação do que os outros jogos da franquia, por exemplo. Com isso, Sekiro pretende sair das amarras de seu próprio DNA — do design de um soulslike.
E ele falha nisso.
O combate de Sekiro é completamente diferente de Dark Souls e é único até pro gênero de ação, num geral. Ele ainda é um pouco metódico, mas foca muito mais em relacionar a dinâmica de corpos (jogador — arma — arma — inimigo) como um cabo de guerra rítmico entre a postura das unidades, como se fosse uma segunda barra de vida.
É uma guerra constante entre seus reflexos, a IA dos inimigos, e um terceiro elemento deixado um pouquinho de lado, aquele conhecido como expressão.
Player expression (ou expressão do jogador) é um termo autoexplicativo, mas ao mesmo tempo vago — a expressão vem de onde? Existe a expressão do player diante ao jogo, externa ao jogo — chorar, sorrir, se irritar… tudo isso é parte de uma expressão de sentimentos. Mas o que chamamos de player expression é a expressão do jogador dentro do jogo — e isso varia muito de jogo pra jogo, gênero pra gênero. Desde a definição de “seu estilo de jogo” até criação de personagem e escolhas dentro de uma narrativa.
“Todos jogos têm expressão?” não é o foco da discussão — mas alguns jogos se preocupam mais com isso do que outros.
Sekiro, mesmo se diferenciando em seu combate, ainda mantém o design rígido da From Software que se baseia mais em como o jogador vai imprimir os padrões dos desafios na memória do que como ele vai tomar decisões dada às situações do jogo; Sekiro não é um jogo “sem expressão”, mas que prioriza um combate mais prescritivo acima disso. Por si só, não é um problema; eu gosto bastante de como o jogo trabalha esse estilo de luta mais performativo e cinemático, com um ritmo claro e preciso nas coisas, ao mesmo tempo que consegue dinamizar bem com alguns inimigos que modificam esse ritmo.
Mas, ao mesmo tempo que o jogo tenta criar essa dinâmica, ele se perde toda vez que o jogador é desafiado a enfrentar múltiplos inimigos.
Sekiro propõe o protagonista como um shinobi de duas formas: o espadachim, sempre resolvendo as coisas na espada, e o ninja, que tenta ser furtivo, focado mais no stealth e em fugas. Eu aprecio bastante essa parte de “roleplay de ninja” do jogo, mas enxergo certa contradição dentro disso: o jogo te recompensa bem mais por lutar do que evitar as lutas.
Tirando o ninjutsu, o stealth fica sem interações e mecânicas interessantes o suficiente pra se sustentar por um jogo inteiro (além dos segmentos onde é quase impossível resolver no stealth, como na segunda ida à Hirata); fugir funciona, se você quiser sacrificar luxos como dinheiro, XP, brasões espirituais, loot e minibosses. O combate em si se perde na hora de propor crowd control (controle de horda) pro player — as formas de lidar com múltiplos inimigos em Sekiro são desinteressantes.
Em Dark Souls, esse crowd control também é um pouco escasso por conta dos jogos não terem um grande foco na ação pura, e todas as maneiras de lidar com eles eram voltadas pro alcance da sua arma e alguma ferramenta de dano em área — mas lá isso funciona bem, porque os desafios são bem mais “legíveis” do que em Sekiro: perceber que é difícil encarar o porco de Undead Parish e seguir pra parte de cima, matar os arqueiros e atrair depois o porco com as caveiras do fascínio pra ele morrer queimado — esse tipo de coisa torna o loop do combate contra vários inimigos muito mais interessante, mesmo que o jogo ainda tenha uma base parecida.
Em Sekiro, nesse tipo de situação, eu enxergo algumas opções:
Brincar de pega-pega com os inimigos (e com isso eu me refiro: bater em um, correr pra desviar do resto, voltar, bater denovo, e repetir até limpar todos); usar algum golpe, skill, item pra efeito em área; tentar ser furtivo (apesar de que na maioria das vezes isso só vai ser eficiente contra um inimigo, a não ser que você fique loopando o reset do ‘alerta’ deles, que honestamente, é desinteressante de forma igual); tentar enfrentar todo mundo de frente (que pra mim, na prática, é inviável porque o timing dos parries vai ser sempre diferente então acaba maximizando o jogo de reações infinitas que Sekiro é); ou simplesmente fugir.
Absolutamente todas as opções acima quebram a dinâmica de dança do jogo. O brilho de Sekiro, pra mim, era ser esse jogo “one-take” em que eu me encontrava, o tempo todo, na mesma ação, no mesmo ritmo, na mesma dinâmica de desafio — e essa previsibilidade se quebra quando o jogo tenta misturar seu DNA de Souls com suas raízes de action/adventure tradicional — porque ele não tá nem um pouco preparado pra isso.
As habilidades do jogo (combat arts) são animações “fixas” com um input padrão que ocupam um slot (limitado) e algumas diferenças entre timing, dano, dano na postura, direção, etc. Mas num geral, não são nuances significativas o suficiente pra agregar na dinâmica do combate do jogo.
A mecânica de ferramentas prostéticas é um grande exemplo de “interessante no papel, ruim na prática” — as armas em si são bem legais, como as bombinhas, o leque, a Sabimaru, o apito, etc… mas não só é um saco de passar pelos upgrades das ferramentas (não por conta dos materiais, mas sim porque tu precisa upar todas, uma por uma), como também afasta o player de querer experimentá-las por conta do sistema de brasões espirituais. É um tipo de recurso do jogo usado pras ferramentas prostéticas, algumas skills e ninjutsus. Ele funciona basicamente como uma “mana”, mas que se limita à uma certa quantia que você pode carregar, sendo perdível no uso e dropado dos inimigos mortos e vendido nos checkpoints. A parte contraditória é que a melhor forma de conseguir os brasões é os comprando, porém você sempre perde dinheiro ao morrer, então é basicamente o jogo te punindo, de forma direta, por experimentar — sem contar que o preço aumenta ao longo do jogo. É, talvez, o maior sintoma de que Sekiro não tenta o suficiente se livrar das correntes de Souls.
Dentre as mecânicas base do jogo, acho que a parte que menos me incomoda são os itens — esse jogo tem a mesma benção de Bloodborne de ter menos foco na parte de customização de builds e curiosamente os itens acabam se tornando mais convenientes. Os açúcares, o confete divino, as esferas de Mibu, os antídotos (levando em conta que Sekiro não tem atributos pra aumentar defesa contra status effects), etc… apesar de pegarem da mesma base de Souls, os itens em Sekiro são bem interessantes.
Por fim, acho que as mecânicas de Sekiro conseguem transmitir algumas ideias legais (principalmente porque a base do combate é bem única) mas acaba implementando-as da forma mais vazia possível.
Mas o problema também tá em outros lugares.
O design de inimigos do jogo é ok… quando você não tá enfrentando múltiplos inimigos de tiers diferentes ao mesmo tempo. As lutas comuns do jogo são, na maioria das vezes, ruins.
Mesmo que boa parte dos inimigos do jogo sejam bem “mestre mandou” (em que as suas reações são sempre binárias, com pouco espaço pra tomada de decisões) e isso limitar demais o próprio combate, eu até gosto de como essa dinâmica funciona — um ataque normal? parry; uma investida? mikiri; um ataque giratório? pulo na cabeça; um ataque que pega grande parte da área? foge, espera e volta pra bater no inimigo. O problema é que o jogo junta isso com outros mobs na fase e o ritmo se quebra. O que o jogo tem de emprestado de outros jogos de ação é raso, o que tinha de minimamente estratégico nos outros Souls em relação a posicionamento e espaçamento se desvaneceu, e Sekiro se encontra numa situação de impasse.
Um dos momentos mais memoráveis do jogo (não de uma forma positiva) foi quando enfrentei o Seven Ashina Spears na área inicial do jogo, onde tem a escadaria — lá, tem um soldado, um ogro e o miniboss. Lidar com os três ao mesmo tempo não é impossível, mas foi extremamente chato. Eu poderia ter pego outro caminho, evitando o ogro, mas “jeito certo de jogar” não é algo em questão aqui.
Parafraseando Masaru Yanamura, o Lead Game Designer do jogo: “Masterizar o parry é masterizar o jogo” — ele não mentiu. Na verdade, a maior mentira que me contaram foi “Sekiro é bem mais skill-based do que os outros jogos da From Software!” — primeiro, da From eu só joguei os Souls; segundo, quase todos os outros que joguei exigiram mais da minha habilidade. Sim, Sekiro é difícil, desafiador, tem uma curva de aprendizado decente e consegue dar a sensação de “evolução” pro player — mas tudo isso se deve mais à estruturação do jogo do que à complexidade do combate em si.
Por último, acho que a parte mais aliviadora desse jogo é quando se chega em uma luta 1v1, seja miniboss ou boss principal — é quando o jogo aproveita de seu máximo potencial quando a questão é “impressão mental do desafio”. É tudo muito fluído, satisfatório, lindo de se ver. Brincar de ninja furtivo também é legal às vezes, e o level design montanhoso e extenso do jogo acaba me proporcionando bons momentos de travessia. Eu gosto das músicas, dos chefes, do design das fases, até da história — eu consigo entender o que esse jogo quer transmitir.
Porém, no fim das contas, eu entro em conflito com Sekiro — assim como o jogo entra em conflito consigo mesmo.
Sistema de recursos perdíveis que conflita com uma das principais mecânicas do jogo, foco na memorização de padrões como cerne de seu loop, corpseruns que não valem a pena o tempo investido (sério, muito melhor só sair correndo pra onde você morreu), um combate único em seus princípios preso no design rígido que estrutura os Souls da From Software — tudo isso dentro de uma narrativa sobre “a morte da imortalidade”, o que soa ainda mais hipócrita para o que esse jogo significa pra mim.
Sekiro é frágil, e tenta imortalizar aspectos deteriorados de suas raízes num simulacro de “distanciamento“ delas — e, no fim das contas, acaba sendo uma dança conformista. Uma dança sem movimento.