Shinobi: Art of Vengeance — glorioso retorno de quem nunca se foi | Análise

Shinobi: Art of Vengeance - Análise

Na moda os ombros marcados, grandes e em evidência apareceram em momentos muito específicos da história. Assim como qualquer item de nosso guarda-roupa, o uso das ombreiras não começou por um motivo estético; elas surgiram no mundo do esporte em 1877, principalmente no futebol americano como proteção para os ombros dos atletas.

A entrada das ombreiras na moda é datada desde 1930 quando a estilista italiana Elsa Schiaparelli compôs uma coleção permeada por ombreiras. No entanto, a popularização desse artefato se dá no final dos anos 30 e início dos anos 40 devido à entrada oficial das mulheres no mercado de trabalho, em função da Grande Depressão e da Segunda Guerra. Através de ombros marcados e imponentes, elas buscavam passar a imagem de força, autossuficiência e independência. Já nos anos 80, as ombreiras voltam a ser destaque por questão de status, desta vez tanto para mulheres quanto para os homens.

Em 2019, as ombreiras também retornam, mas com uma mensagem mais próxima ao que começou o seu uso na moda: a busca para evideciar a independência e força da mulher do século XXI. Tendências sempre voltam

Existe a ideia do “ciclo dos 20 anos”, onde uma tendência some e ressurge com uma reinterpretação do uso em seu auge. Parte dessa teoria é baseada muito em uma observação empírica do mercado de moda, sem um autor definido; o mais próximo que temos disso é quando o sociólogo Georg Simmel no ensaio Fashion (1904) descreve o movimento pendular da moda entre adoção e abandono influenciado pelas elites e também pelas massas. 

Apresentado esse contexto, você bem sabe que esse humilde site não tem o hábito de escrever sobre moda, ou especificamente sobre ombreiras… No entanto, o ciclo dos 20 anos é algo que foi transferido da moda para o consumo geral, e é aqui que entram os videogames na equação. Pelo videogame ser uma mídia jovem e ter nascido em um capitalismo ainda mais tardio, seu espaço para desenvolvimento de uma linguagem foi quase nulo, sendo mais oportuno em seu início, com jogos de fliperama e músicas em chiptune, mas fato é – quando se cita videogame para o grande público, o que vem à mente são jogos em pixel art ou os clássicos do passado. 

Ainda no passado, o videogame viveu demais à base de tendências (assim como ainda vive hoje), mesmo que de forma incipiente. Nos anos 80 houve uma grande popularização de jogos de platformers, geralmente atrelados a mascotes como Alex Kidd ou Mario, mas é certo que esse foi um gênero muito comum até meados dos anos 90. Grandes clássicos surgem nesse cenário que faz sucesso até hoje; além dos citados acima, teve a grata surpresa de Donkey Kong Country, clássicos esquecidos como Ristar, bem como também o surgimento de Shinobi.

Mas, como havia dito antes, tendências vem e vão. Mesmo que tenham tido o seu auge nos tempos dourados dos videogames, a mídia se transformou a um ponto onde os platformers, antes protagonistas, agora eram esquecidos ou diminuídos a figurantes ao ponto de serem apenas elementos para compor alguma sessão de jogo. Mas, em Shinobi: Art of Vengeance, temos o retorno do gênero e um frescor a uma saudosa franquia do passado.

Desenvolvido pela LizardCube (sim, a mesma de Streets of Rage 4), Shinobi: Art of Vengeance é um jogo de plataforma 2D que narra a sede de vingança de Joe Musashi após Lord Ruse, junto da Ene Corp e seu exército de demônios, queimarem uma vila – e é meio que isso que importa narrativamente. O jogo está muito mais preocupado em ser um jogo maximalista em sua arte e sucinto nas suas mecânicas.

Mesmo que a animação dê a impressão de que você está fazendo a coisa mais complexa do mundo, o jogo faz um ótimo trabalho em ser direto em sua jogabilidade: pular, escalar pela parede e atacar são o básico do jogo. Ainda no combate, o jogo tem um conjunto de estruturas muito interessante, o qual são os ataques Ninpô e as habilidades de Ninjutsu. Ataques Ninpô vão se estender para uma variedade de usabilidades, desde ataques diretos com fogo até uma habilidade de contra-golpe. Já os Ninjutsu são habilidades muito bem definidas entre ataque e defesa que costumam tomar a tela inteira. O momento-a-momento é sólido a ponto de ser satisfatório simplesmente sair andando e atacando inimigos pelo jogo. 

Mas o fator que realmente me salta aos olhos aqui é a sua progressão. Lembra quando eu cito que os platformers perderam seu protagonismo para virarem coadjuvantes no cenário de desenvolvimento de jogos? Isso se dá principalmente pelo boom de metroidvanias que saíram no mercado após seu revival instaurado ali: a priori por Castlevania nos anos 90, continuado por Shadow Complex em 2009 e muito mais estabelecido quando Hollow Knight saiu em 2017. Isso acabou mudando o mercado a ponto do metroidvania ser muito autossuficiente, a ponto de ser o gênero que talvez esteja mais próximo de ter uma linguagem… melhor definida? A progressão clássica de um metroidvania onde você procura um item ou habilidade que te permite acessar outras áreas do mapa é o que melhor o definiria.

Existe um limiar muito tênue entre os dois gêneros, visto que metroidvanias são um sub-gênero dentro dos platformers, mas é importante se atentar ao fato do level design de um metroidvania ser complexo por forçar o jogador a buscar uma saída viável, atrelado à necessidade de apresentar marcadores visuais únicos para situá-lo e conectar os mapas de forma coesa.

Em platformers, existe uma ideia um pouco mais conservadora disposta a seccionar suas partes, quase sempre buscando uma forma de organizar melhor a experiência do jogador. Isso implica em um progressão em que as fases vão ficando mais difíceis e os mundos mais hostis. A proposta está em construir um manual na mente do jogador, fracionar as mecânicas para construir algo maior no final é um traço clássico desses jogos. E, por mais conservador que seja, eu acredito que funcione tanto para pessoas que não tem um contato tão frequente com videogames quanto como um bom manual para jogos futuros que esse jogador possa testar.

Fato é, essa progressão de metroidvania está presente em Shinobi: Art of Vengeance, mas como um elemento (e não como gênero), bem como o jogo faz um bom papel de preparar o jogador para um grand finale. O jogo é dividido em áreas, que por sua vez são divididas em fases, cada uma com seu tema ou mecânica motriz que estrutura seus desafios, mas ainda utiliza todas as outras ensinadas antes dessa. Mais claramente, cada fase tem uma mecânica protagonista. 

Como fã de jogos de plataforma, muito me apetece ver um jogo fazer algo mais tradicional, mas ainda ter a oportunidade de brincar com as possibilidades. Eu fui uma das pessoas afetadas com a falta e/ou baixa produção de jogos de plataforma, tendo que lidar com jogos que prometiam ser o resgate do passado, chamando nomes de peso do passado da Rare para produzir jogos de qualidade duvidosa (tipo Yooka-Laylee and the Impossible Lair, sabe?); ou ter que lidar com a ideia de platformers sendo apenas seções de um jogo, como certas partes de DOOM Eternal. Foram tempos terríveis para os platformers no cenário mainstream. 

No cenário independente, os platformers são um pouco mais presentes, mesmo que muitos deles sejam collectathon, mas aí é papo para outro momento. Mas existe um movimento interessante acontecendo, onde pequenos estúdios são chamados para cuidarem de uma série gigante (às vezes uma esquecida) de uma grande empresa. Já citei que Shinobi: Art of Vengeance é um jogo desenvolvido pela LizardCube, mas recentemente outro ninja recebeu atenção de outro pequeno estúdio. Ninja Gaiden: Ragebound é um jogo 2D de plataforma desenvolvido pela The Game Kitchen, a desenvolvedora de Blasphemous (curiosamente um metroidvania).

Isso me lembra que um dos maiores fatores que faz alguém se tornar gamedev é o contato muito profundo com alguma franquia – algo que mudou a pessoa por dentro, que faz com que tenha o ímpeto de criar, às vezes até o ponto de alcançar aquela franquia que a mudou. Conheço pessoas que são assim, e talvez exista algo do tipo nesses dois exemplos, já que ambos os projetos possuem muito esmero em seu desenvolvimento.

Eu não digo que jogos de plataforma voltaram a ser uma tendência (mesmo que isso tenha acontecido rapidamente em 2008-2013 com o surgimento da distribuição digital de jogos), mas com esses dois sólidos exemplos, dentre muitos outros, talvez estejamos observando o glorioso retorno de quem nunca se foi. Platformers foram a base dos videogames por muito tempo; hoje são a forma mais didática de ensinar alguém tanto a fazer quanto jogar um jogo. Tudo cabe nele e ainda é importante, mesmo que menos presente no mercado. No mais, Shinobi: Art of Vengeance é um pacote vem em uma embalagem muito concisa, um embrulho bonito, de conteúdo responsivo e didático, por mais que te ensine de forma dolorosa por vezes.

Uma cópia de Shinobi: Art of Vengeance para PC foi concedida pela SEGA para análise no Recanto do Dragão.