Como mais uma adição na lista de animações impressionantes no cinema desse ano, as Tartarugas Ninja receberam um novo filme: Mutant Mayhem (Caos Mutante por aqui). É uma ótima entrada na franquia das Tartarugas, e traz muitas ideias criativas para brincar um pouco com a fórmula e com seus personagens. Criatividade é o que melhor define Mutant Mayhem.
Pra começar, ele se passa em 2023. As Tartarugas, que são apenas adolescentes, vivem no esgoto como esperado para fugir dos humanos. Lá, eles só tem acesso à Internet, então dá pra ver onde isso ta indo né? O filme é lotado de referências atuais, e para muita gente isso pode acabar sendo incômodo. A questão é que aqui, as referências possuem um papel narrativo: além de fazerem os diálogos mais dinâmicos e naturais entre os personagens (muito disso vem pelo elenco de dublagem), também serve para caracterizar os protagonistas como quem eles são. Você acha mesmo que adolescentes que vivem presos todos os dias no esgoto com apenas acesso à Internet não vão fazer alguma referência a um meme atual? E, bem, nunca é de um jeito extremamente espalhafatoso… exceto quando é. E nesses momentos é extremamente vergonhoso e irritante, e essa é a melhor parte. São adolescentes, eles SÃO vergonhosos e irritantes, o filme sabe disso. É ridículo que eles vençam o vilão que é um monstro gigante porque Donnie assiste Attack on Titan, mas é realista com o personagem do Donatello e com adolescentes atuais. Antes da gente chegar no ponto de achar essas coisas “cringe”, nós também fazíamos elas. Muitas referências vão, inclusive, passar batido por muita gente, e isso também é bem legal. Quando as Tartarugas falam de uma maneira descontraída e natural entre si, facilmente nos ambienta no universo e mostra o relacionamento entre os irmãos.
E, falando nisso, esse filme toma um estilo diferente de escrita que funciona bem. As quatro tartarugas são bem carismáticas e diferentes entre si, são um grupo que se completa e funciona muito bem em conjunto, o que é um pouco diferente da maioria das histórias deles. Antes de se tornarem um time tão bom, é comum que hajam brigas entre os quatro (principalmente Leo e Rafa) ou que leve um tempo para que eles se tornem bons como um time (o que é facilmente explicado no filme, já que antes de sequer lutarem contra alguém eles já usavam suas habilidades pra fazer tudo). Mas existe um motivo para Mutant Mayhem não querer entrar nessa plotline.
Acontece que o filme é um pouco mais focado no que se refere aos seus objetivos e mensagens. O foco da história é preconceito e aceitação, e mostra três diferentes lados. Splinter, — um pai super-protetor que foge dos humanos por medo — Superfly, — um irmão mais velho super-protetor que enfrenta os humanos por ódio — e as tartarugas, que querem viver com os humanos em paz e como parte deles. Dessa forma, nenhuma das tartarugas recebe um destaque extremo, como é comum em muitas das suas histórias, que é para desenvolver os personagens. Essas três diferentes visões do mundo são o que fazem as engrenagens do enredo trabalhar, então naturalmente os quatro irmãos possuem os mesmos ideais, e todo mundo tem o mesmo objetivo: ser aceito.
E também tem a April, que entra na mesma visão de mundo que as Tartarugas. Acontece que os quatro, junto com April, querem conquistar a aprovação das pessoas por atos heróicos. Leo, Raph, Mikey e Donnie vão derrotar vilões e chegar até o super malvado Superfly, e após vencer ele, serão aceitos como heróis por todos. April vai relatar todos os feitos deles para o jornal, podendo finalmente ser uma jornalista e conhecida por algo importante. Mas no decorrer do filme, todos percebem que estão fazendo isso pelos motivos errados. Quando April consegue chegar no seu objetivo, ela simplesmente o fez para salvar a vida dos seus amigos e Nova Iorque no processo. As Tartarugas salvaram o mundo mesmo acreditando que nunca seriam aceitos independentemente do que fizessem, mas o coração deles dizia para fazer o certo. O final feliz que eles conquistam só chega por essa aceitação, e quando os personagens abandonam esse tipo de ambição superficial.
No caso de Splinter e Superfly, os dois lados da mesma moeda, o desenvolvimento vem de outras formas. Superfly tem um grupo de vilões que, junto com ele, são mutantes e personagens antigos da franquia. A aparição deles aqui é bem diferente do comum (em maioria), e são ideias bastante criativas que em muito complementam a história. Mas uma mudança drástica na história da franquia é que todos os vilões, exceto Superfly, não são na verdade maus. Não digo isso apenas pela sua motivação de serem aceitos, mas porque de todos eles, apenas Superfly quer matar todos os humanos e… bem, ele é o líder, então todos o seguem. Essa ideia do Superfly de fazer seus irmãos realizarem coisas horríveis acaba acertando Splinter bem onde dói, porque os dois fazem isso para proteger sua família do único jeito que eles conseguem pensar. No caso, para Splinter, é fugir e se esconder, e para Superfly, genocídio.
Devo dizer que fiquei bem satisfeita com o uso dos personagens no filme. Claro, muitos não tem tanto tempo de tela, mas não estão lá apenas por estar. Cada um dos mutantes usa sua personalidade para avançar a história, e também mantê-la divertida. Os que recebem mais destaque acabam sendo os personagens que efetivamente mudam o rumo da história, mas não seria possível contar essa trama sem o uso desses personagens carismáticos que servem perfeitamente como ferramentas para avançar o plot. Isso com certeza não é algo ruim. Também nos dá a chance privilegiada de ver inimigos antigos das Tartarugas agindo como seus aliados, e interagindo usando as coisas que têm em comum. Mikey e Mondo Gecko sendo melhores amigos é muito esperado, mas foi divertido demais pra mim presenciar a curta cena de amizade entre Raphael, Bebop e Rocksteady, todos personagens conhecidos por força, raiva e impulsividade. Eu sempre fui fã do Bebop e Rock, acho os dois personagens muito divertidos, e ver eles como aliados das Tartarugas nesse filme foi bem interessante. Naturalmente eu também gostei bastante da Wingnut, a personalidade dela é muito fofa mesmo que a aparência seja horrorosa.
E já que eu falei de aparência, a estética geral do filme é muito única. É óbvio que foi inspirado em Spider-Verse, muita coisa acaba sendo hoje em dia, mas possui uma ideia diferente para visuais e música. Nos visuais, toda a arte do filme é desenhada como rabiscos de um adolescente. Não muito refinados mas não tão infantilizados quanto os de uma criança. Por isso os rostos dos personagens possuem uma aparência extremamente exagerada e por vezes feia. Na verdade, quase todos os humanos são feios e se eu for citar um que é bonito seria a April, mas ela também tem seus momentos ruins. Você também pode facilmente ver como as texturas do filme remetem a algo feito a mão, por vezes até parece que o filme foi pintado em tinta ou com lápis mesmo. As próprias explosões não passam de rabiscos brilhantes, e isso adiciona muito na estética. No entanto, alguns personagens humanos poderiam ser vistos como estereótipos racistas, mas não tenho como falar de algo assim porque sou branca. Eu até não tinha notado isso até ver alguém comentar, já que pra mim todos os humanos do filme são horrorosos e essa é a ideia.
Mas também é notório como aqui, Splinter não é o Mestre Splinter. Ele não passava de um rato normal que sofreu uma mutação. Ele não tem qualquer conexão com o Japão, e é dublado pelo Jackie-Chan, que não é japonês como vocês sabem. Isso é meio triste, especialmente porque muitas crianças atualmente vão conhecer a franquia por esse filme sem realmente ver as raízes um pouco mais profundas dela, mas se você olhar no ponto de vista de alguém que já conhece bem TMNT não é tão ruim. Como tudo no filme, é um novo olhar para conceitos estabelecidos da franquia, que em nada substituirá as milhares de outras versões das Tartarugas do passado.
A música por vezes traz uma sensação leve de modernidade, mas a maior parte da trilha sonora (pela parte das licenciadas) são relacionadas ao Hip-Hop, algo que combina bastante com a ideia das Tartarugas Ninja. O subtexto racial é claro na história, e com uma trilha composta majoritariamente por pessoas de cor fica ainda mais óbvio. A escolha das músicas é ótima também, mesmo que as vezes tenhamos escolhas bem genéricas. Por exemplo, tem uma cena de ação completamente scriptada pela música “What’s Up” dos 4 Non Blondes. É, é a música do He-Man. Ainda assim eles fizeram bom uso da mesma e representa muito bem a cena em questão.
Só que eu não vou mentir pra vocês e dizer que esse é um dos melhores filmes da atualidade. Tudo que ele se propõe a fazer majoritariamente funciona, mas ele não se propõe a muito não. Embora existam mensagens, elas não são trabalhadas o suficiente para serem um ponto forte do filme. Teenage Mutant Ninja Turtles — Mutant Mayhem é um filme extremamente divertido e criativo, e é isso que precisa ser. É natural que obras das Tartarugas por vezes tenham tons mais sérios, mas não é essa a proposta de MM. É uma obra divertida e interessante, com personagens muito carismáticos e um pequeno novo universo da franquia a ser explorado de maneiras que não foram antes. E, mais do que tudo, chamaram o Ice Cube pra fazer o Superfly e foi o casting mais fodidamente bom que eu vi esse ano. Mesmo se eu não gostasse do filme, a dublagem desse vilão já valeria a pena. Obrigada por terem lido. Boa noite!