To a T — o perfeito está morto | Análise

Nota: esta análise contém alguns spoilers de To a T

Particularmente, sou muito adepto dos jogos esquisitos. Quanto mais diferente, melhor — jogos que exercitam algum gênero, estética ou jogabilidade geralmente tem um espaço muito especial no meu coração, mesmo que isso não seja tão recorrente na indústria. Existem estúdios e diretores abertos a experimentar e avançar a mídia para outro caminho.

Moon, Rule of Rose, Mon Amour, os jogos da Onion Games (e seus adjacentes) sempre aparecem na minha cabeça quando penso em jogos que exercitam o videogame artisticamente, assim como é muito recorrente eu pensar em Katamari Damacy ou Wattam; jogos encabeçados pelo autor Keita Takahashi que me tocaram profundamente e de formas muito diferentes.

Katamari Damacy é um jogo que abertamente fala sobre consumismo, enquanto você rola por aí e, não obstante, We Love Katamari é um jogo que expõe isso ainda mais, assim como o quão cíclico é a indústria de jogos. Ou ao menos o quão covarde ela pode ser por pedir uma sequência de algo que deu certo mesmo que seu antecessor seja uma experiência fechada em si. Mesmo Wattam, que é um simulador de fazer amigos feito diretamente para os filhos de Takahashi.

Mas, além dos exercícios, eu gosto de acompanhar o trabalho do Keita Takahashi por me sentir incluído nos temas em que ele aborda em suas obra e, ao descobrir que um dos meus diretores favoritos estava prestes a lançar mais um projeto, eu fiquei realmente muito animado.

To a T é o nome do mais novo projeto de Takahashi com o time uvula, focado em abordar as aventuras e desventuras de uma criança que nasceu em forma de T. É um conceito bem peculiar até mesmo para o diretor, mas de coração aberto, eu fui dar uma chance para To a T. O que eu encontro é talvez seu jogo mais ambicioso em todos os sentidos.

To a T é um jogo sobre muitas coisas e com muitas camadas. Inicialmente, dada a premissa citada, acreditei que seria um jogo sobre rotina, e além, a rotina de uma criança atípica. Após a introdução, o jogador é apresentado ao controle dos membros da criança; os botões do controle representam cada parte, de ambos os lados. O fato de serem separados por cada ação é uma forma de demonstrar a dificuldade de locomoção até mesmo ao fazer simples tarefas como escovar os próprios dentes.

To a T análise

É muito parecido com a forma que Ico da Team Ico faz você se importar com a princesa do jogo, tendo um botão exclusivamente para segurar a sua mão. Isso é muito presente em To a T; essa dificuldade é muito tátil, e é um bom trabalho do game design em traduzir essa movimentação burocrática dessa maneira.

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Após um café da manhã, que tal sair para explorar a cidade? Na verdade, não, porque essas crianças têm escola, e isso é brilhante. É meio contraintuitivo você sair por aí e explorar a cidade sendo que existe uma necessidade urgente de sair para viver a vida normalmente. Por mais que exista toda uma cidade viva em prol de ser explorada, você não pode.

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O jogo é dividido em capítulos que são estruturados quase como se fossem um programa de TV de fato. Cada capítulo aborda diversos temas; um que se destaca é o bullying escolar, que, mesmo que seja um tema pontual, é tematicamente importante pois toda a conversa em volta da criança em forma de T é: Ser julgada por ser diferente, mas ser considerada perfeita pelos cantores de abertura do jogo (que inclusive, parecem ser onipresentes e oniscientes, devido à quantidade de interação que eles têm com o jogador no âmbito metalinguístico).

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Mesmo que eu já esperasse isso, To a T é um jogo bem diferente de tudo que eu já joguei do Keita Takahashi, mas digo isso no sentido mais temático do que no de gameplay. Os jogos de Takahashi geralmente usam de uma certa ingenuidade da criatividade, que chega a ser até meio infantil quando se põe na ponta do lápis, mas que fazem a diferença no todo. To a T é um jogo que debate sobre o perfeito e ser perfeito, sobre alcançar a perfeição, sobre julgar o anômalo e, no fim, sobre posições de poder de forma muito singela.

Como citei acima, o bullying é uma peça presente e, por mais que em determinado momento as crianças que praticam o ato tomem consciência, isso retorna como uma marca para elas. Isso pois o jogo inverte as posições de poder entre o oprimido e o opressor e bota em perspectiva toda a jornada do protagonista que, ao ser julgado como diferente, são colocados em pés iguais por uma força externa. Aqui não tem jeito, eu devo dizer, é uma ideia meia rio de Fanta Laranja de Neon Genesis Evangelion, mas sem a parte da mente coletiva.

Na abertura do jogo, é sempre dito que o protagonista possui a forma perfeita, e por vezes ele é retratado como um herói. Isso toma sentido ao decorrer do jogo já que, no momento que essa força externa se apresenta como mensageira de boas novas (no processo moldando todos na mesma forma) o protagonista é posto enfim em um conflito que o move da sua zona de conforto e o faz questionar: se todos fossem perfeitos, o mundo ainda seria um lugar infeliz?

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Nota²: Inclusive, é interessante a forma escolhida ser especificamente quadrados e retângulos, visto que alguém quadrado é ser alguém conservador e pouco aberto a novas ideias e experiências.

Assim como Earthbound, To a T usa da ternura da infância para conversar os temas que quer, e a certo ponto às vezes os tornam simples demais. Guerras são ruins, as pessoas são diferentes ou qualquer salto lógico óbvio que possa contribuir para uma mensagem anti-guerra, mesmo que no sentido micro e na perspectiva de uma criança.

E isso nem de longe é uma coisa ruim de To a T, é um papel importante para a construção da ideia de ser uma criança tomando grandes decisões agora que tem seus 13 anos; são os agentes da mudança batendo na porta. O jogo assim o faz ao contestar o perfeito em forma, dizendo abertamente que não tem como se privar do lado bom da vida em busca do perfeito, pois ela não é nada apetitosa.

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Buscar a imperfeição, buscar a deformidade da arte, ser diferente: é que move o mundo de alguma maneira para algum caminho, no sentido de buscar a sua satisfação. Em To a T, a conversa sobre perfeição permeia todo o jogo, desde a sua concepção até o seu tema, mas ele ativamente reprime a ideia em nome de ressaltar a diversidade que nosso planeta já possui. To a T é mais um jogo em que Keita Takahashi está falando sobre o que quer e da forma que faz sentido para ele. O que dá a entender é que o perfeito está morto, e eu espero que nós mantenhamos assim.

Uma cópia de To a T para PC foi concedida pela Annapurna Interactive para análise no Recanto do Dragão.