De vez em quando, um jogo passa reto pelo meu radar. Algo que eu provavelmente ia amar, mas que por um ou outro motivo não ouvi falar nada sobre até o lançamento. No caso de Yurukill: The Calumniation Games, as coisas foram até mais confusas. Eu vi ele várias vezes, mas só a arte de capa, que é linda mas não chega nem perto de descrever a sua face real.
Yurukill pode ser descrito mais ou menos como uma visual novel/escape room/death game/shoot ’em up/bullet hell de aventura, puzzle e investigação (entre outros). É uma mistura lindamente confusa de gêneros tanto narrativos quanto de jogos.
Ele foi desenvolvido em conjunto pela IzanagiGames, ESQUADRA e G.rev (parte shoot ’em up), e publicado pela NISAmerica para Nintendo Switch e Playstation e pela própria Izanagi na Steam.
Como alguém analisando esse jogo, é fácil imediatamente correr pra sala de emergência e apertar o botão vermelho que diz: “esse jogo é estranho! jogos japoneses são bizarros!” mas como a única conotação da palavra “estranho” usada pelo Recanto do Dragão é extremamente positiva, eu não tenho medo de apertar o botão. Yurukill É estranho. Ele parece uma daquelas curiosidades esquecidas do Playstation Vita, sabe? Uma das inúmeras visual novels com conceitos insanos (e uma execução mais ainda) que ficarão presos na plataforma para sempre.
Se bem que Danganronpa tecnicamente já foi uma franquia de Vita, e qualquer fã passivo de visual novel imediatamente vai traçar uma conexão entre estes dois jogos. Sim, os designs de personagens são similarmente pomposos e estranhos, e sim, tem um death game com um apresentador que adora gritar e fazer piadas com a desgraça alheia no meio. Mesmo assim, as conexões são muito mais facilmente feitas em relação às mecânicas de interrogação do que ao aspecto da história. Eu elaboraria as ideias que acabei de jogar na mesa, mas não quero dar spoiler nenhum aqui.
Isso não significa que a gente não vai poder falar da história, no entanto. Ela se passa em um parque de diversões no meio do nada controlado por uma megacorporação chamada Yurukill, que está fazendo uma competição onde presos que juram ser inocentes são pareados com as vítimas dos crimes dos quais foram acusados. Para o time vencedor, o Prisioneiro terá sua sentença perdoada e a vítima (intitulada “Executioner” ou Carrasco, em tradução livre) terá qualquer desejo realizado.
O Carrasco pode matar seu parceiro Prisioneiro ao apertar um botão em seu tablet a qualquer momento, e as únicas pessoas em perigo na competição inteira são os Prisioneiros, que foram selecionados compulsoriamente. A competição traz os participantes para Yurukill Land, onde inicialmente cada uma das cinco duplas deve passar por atrações no estilo escape room baseadas nos crimes que os Prisioneiros foram acusados de cometer.
Os primeiros cinco dos sete capítulos de Yurukill viram seus holofotes para as atrações de cada uma das equipes, onde você sempre vai jogar com um Prisioneiro diferente. Mesmo que você jogue com vários personagens, o protagonista principal é Sengoku Shunju, um homem de 31 anos acusado de causar um incêndio que matou 21 pessoas. Ele já está cumprindo sua pena há 10 anos inteiros. Sua Carrasca é Rina Azami, uma estudante de ensino médio misteriosa.
A dinâmica entre prisioneiros e carrascos é o foco principal de todo o loop de gameplay dos primeiros capítulos, pois define todas as interações e até o tom da narrativa. Quatro das cinco duplas possuem Prisioneiros acusados de assassinatos cruéis, então a maneira com que as vítimas interagem com eles é essencial para conhecermos a natureza de cada um. O que deixa as coisas mais interessantes ainda é a maneira que os escritores tomaram cuidado para inserir detalhes completamente distintos entre os grupos e suas relações, o que torna todo capítulo único.
Enquanto o clima inicial entre Sengoku e Rina é tenso e pesado, o do único trio de participantes formado pelos Prisioneiros gêmeos Futa e Raita e a Carrasca Kagura é muito mais relaxado, por mais que ainda seja meio desconcertante. A Kagura age muito calma em frente às pessoas que supostamente mataram os avós dela.
Essas variações valem para as outras duplas também, e são acompanhadas de conceitos intrigantes de escape room e puzzles. Ah, quase esqueci. Sabe Kakegurui? Então, o autor do mangá de aposta ecchi, Homura Kawamoto, é o Scenario Writer de Yurukill, sendo responsável pela elaboração das ideias dos puzzles feitos nas salas também. Kakegurui é conhecido por suas reviravoltas mirabolantes construídas em cima de jogos de aposta muitas vezes obscuros, e este espírito se mantém vivo em Yurukill.
Os puzzles vão de super complicados a suspeitosamente simplistas. Você nunca sabe qual é qual. A maioria deles é super de boa, até pra alguém horrível em jogos de aventura como eu, mas nunca se sabe quando um difícil vai aparecer. Por isso existe a opção de receber dicas dos puzzles sem penalidade alguma, o que vai te ajudar se realmente estiver com dificuldade. Muitos fãs do gênero de puzzle vão ficar meio tristes com isso, eu sei, mas é necessário para um jogo deste tipo. Existem tantos tipos de desafios e demandas diferentes em Yurukill que é bem provável que a maior parcela dos jogadores não estarão prontos para engajar com todos os gêneros em suas dificuldades comuns.
Ou seja, Yurukill foi construído para ser simples e acessível. Se você é um fã de visual novels, não vai ficar preso em puzzles ou em pedaços complicados de shoot ’em up, e o mesmo vale para outras combinações de gênero. As partes de “shmup” até te dão a escolha entre Easy, Normal, e HELL, já que este é um gênero que demanda muitos reflexos misturado com alguns dos gêneros de jogos que menos demandam reflexos. É uma concessão essencial para fazer essa combinação funcionar.
Inclusive, temos algo importante pra estabelecer aqui também. Quando digo que Yurukill é uma fusão de um monte de gêneros, não quero dizer que é um mashup direto como Neon White, por exemplo. Neon White mistura o combate frenético de FPS com a estratégia e planejamento de um jogo de cartas, mas ele utiliza os dois ao mesmo tempo. Nele, o FPS e o jogo de carta são parte de um só prato. Suas armas SÃO as cartas. Para interagir com as mecânicas de FPS você precisa, inevitavelmente, interagir com as de cartas ao mesmo tempo.
Este não é o caso de Yurukill. Aqui, os gêneros são completamente separados. A única exceção vem nas seções de shoot ’em up, que têm suas vidas conectadas à interrogação que acontece simultaneamente. Basicamente, você ganha e perde suas vidas do shoot ’em up ao acertar ou errar as perguntas que são regadas em meio ao tiroteio. De resto, tudo é desconectado. Os puzzles não requerem que você comece a atirar dentro de uma nave enquanto os resolve, e os personagens quase não falam durante o shoot ’em up. Ao invés de um prato com mistura de gêneros, é uma refeição de vários pratos diferentes, divididas entre entrada, prato principal, sobremesa e tudo mais de maluco que vem no meio.
Isso importa pois demonstra que o objetivo de Yurukill não foi só combinar um monte de coisa em nome de uma exploração mecânica inovadora, mas sim fazer isso para trazer benefícios narrativos. Nesse caso, o melhor exemplo é o das partes de shoot ’em up que se misturam com a investigação, de maneira similar às mind dungeons de Persona. São desculpas para você entrar na mente de algum personagem de maneira abstrata e destrinchar toda a personalidade e convicções dele.
Agora você deve estar se perguntando: “como c@#%*&!¨ o jogo conecta as cenas do crime mais sérias com naves espaciais voando e atirando plasma???” Então… não é uma transição tão sutil, mas ela com certeza não precisa ser.
No fim de cada escape room dos capítulos iniciais, o Carrasco começa a perder seu temperamento por ficar tão próximo de reviver o crime do qual foi vítima, e ameaça matar o Prisioneiro (eu juro que isso não é um spoiler e sim uma mecânica recorrente). Estas seções se chamam Maji-Kill Time, e você basicamente deve controlar seu Prisioneiro e responder coisas que o Carrasco quer ouvir para não acabar morto. É um minigame extremamente fácil que serve apenas para construir tensão entre os dois antes da apresentadora Binko enfiar vocês numa maldita cabine de simulação VR.
O bullet hell começa aí. Nele, você deve convencer seu Carrasco de que é inocente enquanto batalha contra ele. Se o Prisioneiro perder, ele morre na vida real. Se o Carrasco perder, ele fica de boa e nada muda. É, essa é a transição. Você resolve os puzzles da escape room, entra em uma discussão potencialmente letal com seu parceiro/vítima e luta contra ele numa simulação VR. Mesmo assim, é inegável o quão bem o shoot ’em up de Yurukill funciona.
Essas seções são longas e… na real bem de boa… se você estiver jogando no normal, digo. Eu joguei a campanha no normal ao invés de HELL pra ter uma experiência de dificuldade balanceada entre os gêneros, e posso te assegurar que Yurukill no normal é mais tranquilo que qualquer bullet hell no fácil. Sério, é mais que Touhou Lotus Land Story ou qualquer outro dos mais simples e lentos. Além disso você tem muitas vidas e uma bomba recarregável que ativa automaticamente se você é atingido no fácil ou normal. Esta bomba também é recarregável no em HELL, mas você tem que ativá-la na mão.
Os padrões de bala dos poucos tipos de inimigo disponíveis podem ser desviados de inúmeras maneiras, e a maioria delas envolve você só ir pra longe da área de efeito dos projéteis, que não cobrem a tela inteira. Ah, e esqueci de falar: a barra de bomba também pode ser usada pouco a pouco para lançar um tiro especial que cancela tiros inimigos e te ajuda a pegar sua barra de volta. É, existem muitas opções e não muitas barreiras para serem quebradas no normal. Isso não significa que eu vou criticar Yurukill por isso, pois, como já citei, é importante deixar a dificuldade mais baixa para um jogo tão lotado de gêneros.
Agora o que eu realmente gostaria seria ter uma opção entre o normal e HELL. Sério, parece que você vai do modo fácil do Touhou Lotus Land Story diretamente pro Lunatic de um Touhou qualquer. É um choque grande demais pro meu gosto, e já que eu costumo jogar bullet hells no teclado, ainda não consegui me adaptar direito a controlar minha nave no Switch. Ou seja, vou demorar um tempinho pra conseguir zerar no HELL.
Falando nisso, saiba que assim que você chega em algum capítulo novo, você libera ele direto no modo bullet hell livre (sem precisar ver a história), e desbloqueia um modo com todas as partes de shoot ’em up juntas quando zera.
Até considerando os problemas de escala de dificuldade, eu ainda diria que amei a parte bullet hell de Yurukill, principalmente por causa dos chefões. Eles são a parte com maior duração de todas as fases, e roubam a cena com seus padrões erráticos e estratégicos. O modo normal vem a calhar quando você precisa desviar de uma combinação particularmente malvada de balas e lasers de um dos bosses.
Após os capítulos focados nas duplas, você finalmente consegue ver as partes mais diretamente competitivas de Yurukill. Os desafios começam a ser entregues ao mesmo tempo, e as eliminações começam a rolar. Mesmo assim, o jogo surpreende ao subverter todas minhas expectativas para um história com um tom pesado.
Agora que estou ralando nos spoilers, vou tomar cuidado extra. O que posso dizer é que por mais que muito sangue rodeie Yurukill, quase nenhum é fresco. Ele mantém seus temas pesados enquanto se afasta dos clichês que costumam vir de um death game. Dito isso, a caracterização dos personagens não consegue fugir dos clichês como os temas.
Por mais que eu tenha amado quase todos os personagens e suas interações caóticas, a dupla de Hanaka e Keichi me incomoda. Hanaka é uma idol japonesa e Keichi um de seus stans mais dedicados, e a dinâmica entre eles é meio clichê, mas decentemente divertida. O problema é a perpetuação de expectativas entre fãs e artistas e principalmente da restrição imensa da vida de uma idol no Japão. Estou tomando cuidado para não spoilar nada aqui, mas acredito que deu pra entender.
Não só isso mas tudo em volta das interações entre personagens esbanja dinâmicas de gênero estranhamente rígidas. Quase todos os Carrascos são mulheres, e quase todos os Prisioneiros são homens. Todas as garotas são extremamente jovens enquanto os garotos variam de idade. Os caras agem como se existissem coisas que garotas “nunca entenderiam”. Não vou mentir, mas às vezes parece que estou lendo algo escrito nos anos 90.
Ainda assim, estes tropeços não tomam tanto do seu tempo quanto a escrita afiada de mistérios que Yurukill traz constantemente. Os casos são muito mais simples do que em jogos como AI: The Somnium Files ou outros do tipo, mas eles tiram o máximo de proveito possível do que conseguem fazer, ajudados pela dinâmica entre os Prisioneiros e Carrascos. O mistério principal de quem realmente cometeu o crime que Sengoku foi acusado é um daqueles tão bem planejados que você teoricamente poderia ter descoberto desde o início.
Curiosamente, eu vou concluir este texto enquanto falo dos visuais de Yurukill. Eles são um dos pontos chave da experiência, pois os retratos de personagens se destacam ao vir com um estilo de arte brilhante, polido e extremamente estilizado. Enquanto isso, os retratos de fundo também não ficam para trás pois são detalhados e realistas, o que ajuda a deixar o tom pé no chão nas seções de escape room.
A quantia de arte e conteúdo no geral oferecida aqui é impressionante. Toda hora você é bombardeado com ilustrações lindas e que muitas vezes vão ser usadas pouquíssimas vezes. Elas junto do design de interface ajudam a tornar Yurukill uma conquista visual tão impressionante quanto seus outros aspectos únicos.
Sabe quando dizem que só de mandar uma print de Danganronpa você já está dando spoiler por ter mostrado um personagem vivo? É, então, algo parecido se aplica aqui. Todo este texto tomou o maior cuidado para não entregar absolutamente nada da experiência, então se o que foi dito aqui te interessou, jogue Yurukill!
Yurukill é um jogo espiritualmente enorme. É um mar denso, profundo, mas ao mesmo tempo bate apenas nas coxas em boa parte de sua duração. É uma linda exploração narrativa que envolve múltiplos gêneros para enriquecê-la ao invés de fazer o contrário. Um marco silencioso no ano de 2022 que provavelmente vai esvair da consciência pública rapidamente, mas que merece muito mais reconhecimento por oferecer algo tão arriscado com uma maestria tão meticulosa. Yurukill tem tudo, e tudo vem separado.
Uma cópia gratuita de Yurukill: The Calumniation Games para Nintendo Switch foi concedida pela NIS America para análise no Recanto do Dragão.