Nos últimos anos a cena Indie brasileira ganhou diversos títulos de qualidade (como Momodora: Reverie Under the Moonlight e Dandara), provando que existe um potencial antes não explorado nos desenvolvedores do país, e Dandy Ace é o exemplo mais recente de um jogo brasileiro que está criando ondas internacionalmente.
Sendo o terceiro jogo do estúdio Mad Mimic e publicado pela NEOWIZ, Dandy Ace marca a segunda vez (Heavy Bullets foi o primeiro) que um jogo no gênero roguelite é feito por uma equipe nacional.
Primeiramente, o que é um roguelite?
Se você já sabe o que é, fique a vontade para pular esta seção.
Roguelites nada mais são que primos do gênero roguelike, em que os locais são gerados aleatoriamente e jogador deve começar o jogo desde seu início ao morrer, sem possibilidade de voltar a um checkpoint, mantendo pouco (e em vários casos nenhum) progresso permanente.
Uma das partes chave deste estilo de jogo é o foco no fator replay. Todos eles incentivam os jogadores a ficarem mestres em suas mecânicas e conhecer o jogo de todos os ângulos para se suceder múltiplas vezes e desbloquear novos itens que podem ser achados em outras partidas (também aleatoriamente).
Jogos como The Binding of Isaac, Spelunky e Enter the Gungeon entram na categoria de roguelike, por exemplo.
Agora, roguelite é um termo criado com o intuito de separar jogos que mantém pouco progresso de jogos que mantém uma parte considerável dele, criando uma experiência diferente e mais acessível. Mesmo assim, as duas categorizações possuem muito em comum entre si.
Jogos como Hades, Dead Cells e Risk of Rain entram na categoria de roguelite, por exemplo.
Vale lembrar que existem muitas discussões acerca da diferenciação que estes dois termos trazem para categorizar jogos do tipo, e os exemplos usados acima são minha visão pessoal do subgênero deles.
A história
Esse claramente não é o foco do jogo, então não irei julgá-la por sua profundidade, mas sim por sua execução. O enredo envolve o incompetente ilusionista Lele, que possui muita inveja de Dandy Ace, um mágico bem sucedido. Em meio a sua inveja, ele vende sua alma a um espelho amaldiçoado que o deixa capaz de criar um palácio dentro dele e ali prender Dandy Ace e suas assistentes, JennyJenny e JollyJolly. Mesmo assim, por um motivo não detalhado na história, Ace ganha poderes de cartas mágicas e então parte para tentar sair do palácio.
Este setup é um pouco simplista demais, mas não incomoda. O que realmente incomoda no meio da jornada são os diálogos. Eles até podem ser aceitáveis dependendo do personagem, mas na maioria deles a escrita é muito sem graça e mal da pra entender quando algum personagem tenta fazer alguma piada.
O diálogo
O maior exemplo do quão horrível é a escrita do jogo é em Lele, o vilão. Ele narra as partidas constantemente, e nunca diz algo de real valor. Todas suas piadas envolvem ficar irritado quando Ace ganha um item bom ou termina uma arena de inimigos, falando que não é justo e que ele deveria mudar as regras. A frequência e falta de relevância do diálogo de Lele no meio de uma partida é comparável ao de Bubsy, e acho que isso diz tudo.
Essa narração pode ter sua frequência alterada e até ser desativada por completo, mas tendo testado a configuração “constante” e a “baixa”, Lele ainda fala múltiplas vezes por fase independente da configuração. Esses diálogos tem pouca variedade, repetem constantemente e as vezes nem fazem sentido em contexto, como quando Lele diz que “esta arena vai ser muito mais difícil que a última!” logo na primeira arena de uma partida.
O resto do diálogo não é inspirado e é bem estático, pois toda vez que você rejoga eles são os mesmos (mesmo os bosses tem apenas duas variações de falas).
As dublagens
Outra parte que definitivamente não ajuda é a voz de Lele, e assim entramos na parte de dublagem do jogo. Dandy Ace conta com duas dublagens diferentes, uma em inglês e outra em português brasileiro, algo impressionante considerando que a maioria dos jogos independentes não possuem nem dublagem em uma língua. Eu testei as duas dublagens, tendo jogado cerca de seis horas com cada.
A dublagem em inglês é surpreendentemente boa, com a exceção de Lele. Como citado anteriormente, sua constante narração junta de sua voz fina e quebrada enjoam rápido, mas os outros personagens são todos ótimos, com alta qualidade de áudio e performances que encaixam bem em seus personagens.
Por outro lado a dublagem em português é… horrível. Todas as vozes são feitas por youtubers, algo que pode ter sido uma boa decisão de marketing, mas destrói completamente a atmosfera do jogo, que era bem consistente em sua dublagem em inglês. Mesmo se você conhece/é fã dos youtubers incluídos nos diálogos, eles se repetem com muita frequência e são feitos de maneira pouco profissional, com a exceção da JollyJolly, que tem uma entrega melhor, mas tem poucas falas.
A parte que mais incomoda os ouvidos do áudio em português é a mixagem de áudio. Todos os atores têm diferenças enormes de microfone e salas de gravação que não foram mascaradas por meio da mixagem, e são muito graves, o que tira boa parte da cadência de voz natural dos personagens. Isso é bem estranho, pois nada disso se aplica à dublagem em inglês. Tendo isso em mente eu recomendaria jogar o jogo legendado em sua língua nativa e com vozes em inglês, para não ter os problemas citados acima.
O audiovisual
O visual
A direção de arte de Dandy Ace é competente, e brilha principalmente no detalhe e iluminação dos assets do palácio, que estão cheias de personalidade e mistério. Os modelos de personagens e de inimigos são feitos em 2D e misturam muito bem com seus arredores, mas essa área não é nem de perto livre de problemas.
Para começar, o jogo se passa em um palácio dentro de um espelho, mas realmente não parece. Em suas 10 áreas diferentes, elas fazem pouquíssimo para se diferenciarem visualmente (e na jogabilidade, mas falaremos disso depois) entre si, com as maiores diferenças sendo entre as áreas internas e as externas que oferecem jardins com plantas variadas, mas ainda assim são muito parecidas.
Ao meu ver o maior motivo deste problema ser tão abrasivo é na completa falta de backgrounds nas áreas. Nenhuma parte do palácio possui um plano de fundo ou paredes, tendo apenas um vago fundo roxo imutável. Isso contribui para o sentimento de mesmice constante que permeia a experiência, já que o jogo é feito para ser rejogado várias vezes (e é bem enjoativo desde a primeira partida).
Várias das escolhas estilísticas do jogo dão um ar visual bem parecido com Persona 5, desde o palácio em si até um pouco das roupas dos personagens e poses, mas com uma paleta de cores focada em roxos ao invés de vermelhos. Isso não é um problema por si só, mas essas inspirações bem específicas começam a ser um problema real na gameplay.
Os inimigos tem uma boa variedade visual, mas não entram no tema de shows de mágica que o jogo foca (com exceção dos coelhos). Todos os designs são pelo menos ok, com a exceção das torretas, que não possuem absolutamente nada de criatividade.
O áudio
A parte de áudio de Dandy Ace é… boa! Mas apenas na parte de efeitos sonoros. Eles indicam bem que tipo de ataque foi usado tanto por Ace quanto pelos inimigos, e são satisfatórios.
Mesmo assim, a trilha sonora é uma das mais genéricas que eu ouvi nos últimos anos. Ela consiste de músicas eletrônicas vagamente house que servem como barulho de fundo e nada mais. Mesmo abaixando o volume do jogo e deixando a trilha mais alta ela é imperceptível, e é até difícil encontrar palavras para descrevê-la. Ela não encaixa no tema do jogo e realmente desaponta, ainda mais considerando que trilhas de indies costumam impressionar (a de Dandara é um ótimo exemplo).
A gameplay
O básico
Finalmente chegamos na gameplay, o definitivo foco de Dandy Ace. Para começar, você controla, bem, Dandy Ace, que possui um estilo de jogo focado em ataques à distância. O jogo é construído com isso em mente, mas comete vários erros no caminho.
Seu sistema de combate envolve montar um deck de cartas (até oito) que podem ser achadas aleatoriamente na jornada ou compradas nas lojas, das quais quatro são habilidades usáveis (como em um MOBA) e as outras quatro são passivas aplicadas às habilidades.
Essas passivas são as mesmas cartas que podem ser colocadas como principais, mas se tornam apenas efeitos, como por exemplo: uma carta que faz Ace jogar uma forte onda de veneno à curta distância, quando colocada como passiva, aplica o efeito de veneno à carta principal. Legal, né?
Sim! Esta mecânica é muito interessante, mas é basicamente retirada por completo do jogo Transistor, da Supergiant Games. Novamente, isso não é um problema por si só, mas se torna um quando todos os pedaços da identidade de Dandy Ace vem de algum outro jogo que executa uma mecânica bem melhor que ele.
Dandy Ace possui três categorias de cartas, divididas por cor. As cartas roxas, que são as principais que geram dano constante, as amarelas, que são situacionais e aplicam efeitos de controle de grupo e as azuis, que são tipos diferentes de habilidades de movimentação, principalmente dashes e teleportes.
Os problemas
Você pode ter notado que eu não citei a presença de um ataque básico no jogo, e isso é porque ele não existe. Isso é um problema muito grande pois mesmo as cartas rosas (que são as usadas para dano) possuem cooldowns, fazendo com que em vários momentos você tenha que esperar até um segundo inteiro para voltar a atacar inimigos, algo que gera uma dinâmica de gameplay muito parada, e dá a sensação que você nunca está dando dano o suficiente nos inimigos.
Não só isso, mas Ace também para completamente para atacar, e os ataques não podem ser combinados com seus dashes, deixando a gameplay menos fluida ainda. Os dashes também não têm quadros de invulnerabilidade para Ace (i-frames), algo que eu nunca vi antes em um roguelite e que não deixa o jogador desviar para cima de um inimigo, dando a ele uma oportunidade de um ataque a curta distância.
O level design também é extremamente raso. As arenas geradas aleatoriamente repetem bastante (as vezes até repetindo uma do lado da outra como na foto abaixo) e sempre possuem duas ondas de inimigos, sem nunca ter alguma variação. A pequena variedade de inimigos por área também não ajuda. Além disso as arenas de uma área não se entrelaçam, fazendo com que o jogo não tenha nenhuma geração complexa de dungeon e transformando-o em uma festa de corredores.
As áreas não só são visualmente parecidas demais, mas também em gameplay, deixando um ar de mesmice que permeia até numa mesma partida. A única área que tem diferenças significantes (e é minha favorita) é o Labirinto, que conta com enormes arenas com diversos pontos de spawn de inimigos, realmente mudando a dinâmica de gameplay.
A inteligência artificial dos inimigos é um problema também. Eles só possuem dois estados, o de não saber que Ace está lá (ficando imóveis) e o de usar ataques incessantemente. Para inimigos com mais de um tipo de ataque, usualmente o que define o próximo ataque é a distância de Ace. O estado de não saber da localização do Ace é um pouco quebrado, pois as vezes você pode estar olhando e atacando eles sem ser percebido.
A decisão que mais me confunde nas arenas de Dandy Ace, um jogo focado em ação frenética, é o fato de boa parte das arenas do jogo não prenderem o jogador nelas. Já que Ace é um personagem que tira vantagem principalmente de combate à longa distância, sua melhor estratégia é desviar para trás enquanto ataca (kiting), e isso se torna extremamente fácil quando as arenas não são confinadas, pois a fraqueza desse estilo de jogo é estar cercado. Isso acaba incentivando o jogador a jogar lentamente e sempre recuando, algo que com certeza não era a intenção original.
O que é impressionante nisso é que estes problemas citados nos últimos seis parágrafos não estão presentes em Hades (também da Supergiant Games), que é claramente a maior inspiração de Dandy Ace. Parece que as mecânicas básicas de Hades foram usadas como inspiração, mas sem muito pensamento no que faz ela ser tão satisfatória e variada, e sem se preocupar em adaptar a fórmula para um jogo claramente diferente.
Mergulhando nas mecânicas
Agora, após falar da parte básica da gameplay, é necessário tocar nas mecânicas intrínsecas ao gênero roguelite. Ao fim de cada área, Ace pode desbloquear novas habilidades e cartas em uma área segura. O sistema de upgrades do jogo é basicamente o de Dead Cells, sem muitas mudanças, onde você ganha fragmentos que são perdidos ao morrer e os usa para desbloquear upgrades permanentes e cartas novas para serem inseridas em fases.
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Algo que me incomodou bastante nesses upgrades de fragmentos é o quão poderosos eles são. Em outros roguelites, estas melhorias costumam ser perceptíveis imediatamente, mas nada muito forte ao ponto de desestabilizar a progressão do jogo (pois o foco ainda é obrigar o jogador a melhorar suas habilidades mecânicas, não só farmar para upgrades), mas isso não acontece em Dandy Ace.
O maior exemplo disso é a poção de cura. Ela pode ser recarregada no fim de cada área e começa com uma carga, podendo ser melhorada para ter mais. Essa mecânica também é retirada de Dead Cells, mas é completamente desnecessária, pois o jogo possui já uma mecânica de drops aleatórios de vida de inimigos (também retirada de Dead Cells), algo que combina com o ritmo do jogo. O problema da poção de cura reutilizável é que ela dá muito controle ao jogador de sua cura, ainda mais sabendo que você pode usá-las em segurança (já que muitas arenas não te restringem).
Isso retira a clássica tensão de jogos roguelite de ficar sem saber quando você poderá se curar, e acaba deixando o loop menos interessante e não influenciando o jogador a manter atenção total ao jogo.
Outro problema estrutural grande é a construção do deck de cartas ao longo de uma partida. Além da habilidade ativa de cada carta ser única, elas também são acompanhadas de um nível, que aumenta não só o seu dano mas também a efetividade da passiva atrelada à ela (ou seja, o nível da carta usada como passiva não importa). Isso foi feito com o intuito de obrigar o jogador a trocar seu deck de cartas constantemente conforme cartas com níveis maiores forem aparecendo, para ele aprender a se adaptar a qualquer tipo de deck que tiver.
Em princípio isso é interessante, mas essa mecânica é basicamente removida quando você desbloqueia a habilidade de comprar aumentos de nível de suas cartas em lojas. Os limites de nível desses upgrades são menores que o das cartas encontradas no chão, mas mesmo assim o jogador consegue apenas usar dessas melhorias sem precisar mudar seu deck até achar cartas iguais com nível maior, algo que retira o intuito original da restrição de nível.
Os bosses
Ah, não podemos nos esquecer dos bosses, pois eles são a minha parte favorita de Dandy Ace. Infelizmente são apenas quatro, mas a maior parte deles oferecem batalhas de qualidade.
Axolângelo, o Mestre das Artes: Ele é um pouco fácil demais, mas é entendível já que ele é o primeiro chefão a ser encontrado. Seus ataques rápidos e nulificação de espaço com seu veneno em área o tornam uma ótima primeira luta.
Scissorella, a Jardineira Real: Não é uma das melhores, pois é a única luta de chefe do jogo que envolve inimigos normais no meio (e muitos!) mas mesmo assim não tira a estratégia da luta e ela possui um padrão simples de ataques que te dão tempo de respirar em meio a tantos inimigos.
Severino, o Guardião: Ele é meu boss favorito de Dandy Ace. Seus ataques com enorme área de efeito e rapidez requerem muita atenção e proeza mecânica do jogador, e seu conceito de guardião do palácio é bem executado.
Lele, o Ilusionista de Olhos Verdes: Ele é o pior boss do jogo, infelizmente. Seus ataques são muito bem pensados, funcionando quase como um espelho de Dandy Ace, mas quando ele se divide em várias cópias e começa a utilizar ataques sem parar, a possível estrategização e decoro de padrões do jogador vai por água abaixo.
…Vale a pena?
Eu realmente esperava mais de Dandy Ace. É difícil fazer um roguelite, pois as mecânicas do jogo devem ser montadas com o cuidado de manter um ar de novo em toda partida, e o game design precisa ser balanceado tanto em dificuldade quanto em acessibilidade. Este não é o caso de Dandy Ace, e acredito que a inspiração apenas em partes superficiais de vários outros jogos do gênero ao invés da adaptação delas para encaixar no loop de gameplay acaba estragando a experiência, além da falta de originalidade.
Ao terminar o jogo, você libera o modo difícil e vai liberando dificuldades extras ao terminar a mais alta disponível. As mudanças entre dificuldade são relativamente focadas em estatísticas e eu senti que os upgrades permanentes são tão fortes que acabam deixando o modo normal extremamente fácil ao ponto da irrelevância com o tempo, tornando a inclusão das dificuldades necessária para o fator replay funcionar minimamente no jogo, ao invés de se tornar um desafio maior.
Tendo dito tudo isso, eu não recomendo Dandy Ace. Existem diversos outros roguelites mais detalhados por um preço menor, e outros jogos brasileiros com mais qualidade que merecem mais atenção. Mesmo assim, eu ainda espero que o estúdio Mad Mimic consiga aprender com os problemas da experiência e criar um melhor jogo no futuro.
Uma cópia gratuita de Dandy Ace para a plataforma PC foi concedida pela NEOWIZ para análise no Recanto do Dragão.