Já é quase de praxe começar meus textos no Recanto com alguma espécie de dedicatória, para Awakening Sarah não só não será diferente como ainda será um pouco mais especial do que de costume.
Há dez anos atrás, no distante ano de 2015, eu estava no meu primeiro ano do ensino médio e começando a entender que existia essa coisa chamada Steam onde de vez em quando você conseguia pegar jogos baratinhos e divertidos. Eu costumava esperar alguma época de promoção para pedir que meu irmão mais velho me comprasse alguns muitos jogos pela bagatela de 20 reais.
Era mágico ter essa autonomia de tão fácil acesso, e dentre esses 20 reais lembro de comprar um jogo indie bem diferentinho que tinha acabado de lançar. Seu nome era Dreaming Sarah. Jogar Dreaming Sarah foi uma experiência singular que durou acredito que quatro ou cinco dias, mas dentre toda essa experiência a cena que de longe mais marcou foi ler o nome “André Chagas Silva” nos créditos e ficar “Espera, isso é um nome tão brasileiro…”. Depois de um leve stalking tive o prazer de conhecer André Yin e ver que sim, jogos que eu amava podiam vir de pessoas conterrâneas a mim.
E hoje, dez anos no futuro, um pouco menos ignorante sobre o desenvolvimento nacional de jogos e um tanto mais vocal sobre, me vejo tendo a oportunidade quase que fantasiosa de falar sobre essa série que uma década depois se mostra tão relevante e jubilosa quanto em seu primeiro título.
Awakening Sarah
Awakening Sarah é um adventure game desenvolvido pela Asteristic Game Studio. O jogo sempre começa com a titular Sarah entrando em um consultório de psicologia e sendo orientado pela profissional a se deitar para que ambas possam seguir com a consulta. Ao se deitar Sarah é levada a um espaço com diversas portas, cada uma levando a um mundo diferente. O objetivo do jogador, então, é explorar esses espaços oníricos e encontrar itens que possam o ajudar a desbravar cada vez mais todas essas realidades que existem dentro da mente de Sarah.
Como dito anteriormente, a progressão do jogo gira em torno de encontrar esses itens e os utilizar para atingir novas áreas e ter novas interações. Alguns deles tendem a ter utilizações mais recorrentes (como o guarda-chuva que te deixa planar ao segurar o botão de pulo), outros são engraçadinhos mas extremamente pontuais (como a bomba de ar) e alguns tendem a não ter uso, seguindo a filosofia de que a felicidade não está no pico da montanha mas sim no caminho até lá!
Caso não tenha ficado óbvio até então, é terrivelmente evidente o quanto Awakening Sarah bebe de Yume Nikki. Nos jogos anteriores (Dreaming Sarah e Wishing Sarah) toda a relação com estes espaços de sonhos, simbolismos espalhados por aí, itens que espelham como os efeitos funcionam, portas para levar até os próximos mundos… tudo já mostrava fortes inspirações, mas a junção de desses elementos em Awakening Sarah completam o que é uma verdadeira carta de amor a esse tipo de jogo.
Entretanto, o que separa Awakening Sarah (e todos os títulos da série) de outros jogos como LISA: The First ou .flow, por exemplo é como Awakening Sarah te permite interagir com estes mundos. Normalmente esses tipos de jogos tendem a seguir a abordagem de Yume Nikki, onde sua interação se limita a vagar e contemplar estes mundos que existem em planos além do material. Os simbolismos estão lá e tem interações que podem ocorrer, mas elas parecem mais com você tropeçando em algo e sendo levado por aquilo do que realmente fazendo aquilo acontecer. Awakening Sarah te dá uma autonomia muito maior em interagir com esse mundo e fazer coisas nele. As figuras as quais você encontra com o decorrer de sua exploração costumam estar dispostas a trocar mesmo poucas palavras que sejam, isso quando não desabafam sobre suas angústias e aí acaba caindo sobre você dar um jeito de ajudá-las, fazendo assim os itens realmente parecerem mais como pontes para resolver problemas do que como os efeitos em Yume Nikki, que funcionam apenas para talvez te levar a novos lugares.

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Ainda assim, por mais que Awakening Sarah se distancie de suas inspirações em como decide se portar em relação ao seu mundo, ele se mantém em pé de igualdade quando se trata de atmosfera. Todos os “mundos” têm charmes únicos e te absorvem com sucesso, seja por sua excelentíssima pixel art ou pelas cativantes faixas ambientais de sua trilha sonora. Mesmo com todos mundos ainda seguindo a regra de loop horizontal (e algumas vezes também vertical) é sempre uma delícia transitar por eles apreciando o carinho com qual foram feitos enquanto você torra seus neurônios pensando se ainda tem algo a ser feito por lá ou não. Isso sem contar quando o jogo te joga pela janela ao simplesmente virar um jogo 3D em primeira pessoa com direito a tank controls e tudo mais!

Awakening Sarah é uma expansão em todos os sentidos de tudo que a série já tentou fazer, o trabalho visual se apresenta de maneira mais deslumbrante ainda, mantendo seus ideais de simplicidade. A trilha sonora te envolve de maneira até que íntima nos espaços (por mais que não loope de maneira perfeita). Até as questões com platforming se mostram mais presentes e muito melhor trabalhadas por aqui (contando uma desafio super extenso e mega divertido). Por mais que jogar Awakening Sarah tendo jogado Dreaming Sarah o torna uma experiência mais memorável, ele funciona super bem de maneira independente!
O jogo atualmente se encontra disponível na Steam.
Sob as lentes de outro acordar
Sonhos são uma coisa estranha, né? Não existe uma norma para como eles funcionam, mas eles sempre são sobre nós. Em meus míseros 23 (quase 24!!!) anos de vida, nunca presenciei um relato onde alguém tivesse sonhado com algo que não envolvesse seu eu. Não importa o quão distante da realidade tudo fosse, o quão mundanos fossem os acontecimentos, o quão infazível fossem as ações que a pessoa estivesse realizando, se está sendo visto em primeira ou terceira pessoa; o sonho sempre gira ao redor do eu que o sonha. a série Sarah (Dreaming, Wishing e Awakening) e todos os outros jogos tangenciais a essa temática sempre me cativam justamente por isso.
Existe uma sensação muito específica em visitar as introspecções de outra pessoa — lembro de ano passado estar entediado no trabalho e, ao revirar os nichos do balcão onde estava, acabei encontrando um caderno que acreditei ter sido esquecido por um dos visitantes do museu. Feita essa conexão, comecei a despretensiosamente o ler até perceber que na verdade estava adentrando nos relatos íntimos de uma amiga de outro turno do trabalho. Como ela é uma artista visual, além dos textos de desabafos, anotações da reta final de semestre e listas de compras, o caderno tinham alguns desenhos que imagino que se configurem como “vent art” (arte de desabafo). Por mais que eu jure nesse texto que tentei ao máximo não invadir a privacidade de minha querida amiga após perceber as coisas lá escritas, ainda é um sentimento difícil de expressar, ler esses relatos em primeira pessoa de alguém que é próximo a você mas não é você.
Awakening Sarah, Yume Nikki, .flow e muitos outros, todos me cativam justamente nessa sensação. Esse personagem está intrinsecamente relacionado a mim: suas decisões de fala, seus sucessos, seus fracassos, toda e qualquer ação é 100% dependente do meu input como jogador, mas, mesmo com tudo isso, seus sonhos, suas reações e sinapses mais profundas estão limitadas ao íntimo deles. Não importa o quão bem ou não performe, somente Sarah sabe o que aquele mundo extenso, vermelho, pulsante e repleto de caixas de remédios pode significar para ela. O que me resta é apenas seguir invadindo o que pode existir de mais íntimo para esse punhado de pixels na tela.
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Talvez seja um tanto mórbido, mas quando falamos de “fantasias que apenas os videogames podem realizar”, esse é o tipo de coisa que mais me vem à mente, viver o íntimo sem nunca ter as conclusões que vão me fazer entender em sua completude, como ver papeis de poemas sem assinaturas pela rua ou bandeiras no carnaval.

Uma cópia de Awakening Sarah para PC foi concedida pela Asteristic Game Studio para análise no Recanto do Dragão.