Dying Light: The Beast — o ser-tudo e o finda-tudo do Apocalipse | Análise

Dying Light: The Beast — o ser-tudo e o finda-tudo do Apocalipse | Análise

Assim como o dia e a noite, a vida e a morte, a franquia Dying Light passa por seus ciclos de amadurecimento de forma impressionante. Cada título leva consigo a memória e o legado do antepassado na tentativa de aperfeiçoar sua navegação por ventos diferentes. Para entender Dying Light: The Beast, é necessário entender todos aqueles que vieram antes de si, e é isso que iremos fazer antes de falar sobre o novo título da Techland.

NOTA: a seguinte análise discorrerá sobre pontos-chave da trilogia Dying Light, e conterá spoilers sobre o final da expansão “Dying Light: The Following” e spoilers menores de Dying Light 2, na tentativa de contextualizar os temas explorados por Dying Light: The Beast.

Os spoilers serão sinalizados previamente, e podem ser pulados pelos leitores, mas aviso de antemão que NÃO É recomendado jogar The Beast sem antes compreender o que ocorre nos outros títulos da franquia. Ah, e desde já peço desculpas pela quantidade de comparações com Resident Evil. É minha franquia favorita, sabe como é.

The Dragon’s Lair. O Recanto do Dragão. Techland = RDD confirmado.

Dying Light – filhos de Dead Island, primos de Mirror’s Edge

O primeiro título da franquia se apresentava frente a um palco de poucas expectativas: apocalipse zumbi; Organização Não-Governamental com intenções duvidosas e cientistas malignos; os mocinhos se unindo contra um lorde de guerra psicopático, megalomaníaco e de personalidade extremamente rasa. A receita do nosso Resident Evil de cada dia.

O ano é 2014, e o mundo assiste atentamente ao colapso de Harran, na Turquia, dominada por um patógeno misterioso e extremamente letal que transforma suas vítimas em mortos-vivos. A ONG Global Relief Effort (GRE) atuou em conjunto com o Ministério da Saúde para erguer uma muralha em torno da cidade, e agora mantém contato com sobreviventes dentro da Zona de Quarentena lançando suprimentos aéreos em pontos estratégicos. No entanto, as feras movidas puramente pela fome de carne causaram tamanha destruição que o Ministério da Defesa Nacional considera um plano de aniquilar a cidade com mísseis, caso seja constatado que não há mais sobreviventes sadios entre suas paredes.

A piada na comunidade brasileira de que o título facilmente se encaixa na Sessão da Tarde ou Tela Quente, seja pela série de clichês e desfechos previsíveis, seja pela atuação emocionalmente intensa e novelesca, é incontestável. Não que isso seja ruim. Para ser honesto, esse tipo de história realmente é um dos fortes da Techland, considerando seu histórico de Dead Island. A questão é que num mercado saturado pelo gênero zumbi, ninguém iria prever que Dying Light seria seu unicórnio; elogiado pela implementação de parkour, personagens marcantes e até pelo icônico visual do predador supremo, o Volátil – como um todo, foi um inegável projeto de paixão do estúdio que, sozinho, revitalizou o interesse pelo gênero.

Além de construir os pilares fundamentais para toda a franquia que viria, com um tom sombrio que se leva tão a sério a ponto de às vezes parecer sátira (de novo, semelhante ao observado na evolução de Resident Evil), zumbis e parkour urbano – Dying Light deu certo porque se ateve ao escopo e não superestimou a capacidade do próprio estúdio (olha o foreshadowing…). Tanto sua gameplay quanto sua narrativa sempre foram sólidos.

  • A espada de Link em Dying Light. Foto: Reprodução/Yan Heiji

Mesmo que não tão flexível, a mescla de movimentos do parkour urbano com combate voltado às armas brancas e modificadores elementais, descendentes de outra franquia da Techland, Dead Island, assegurava que tanto a navegação quanto a interatibilidade com o mundo de Harran seriam divertidas o suficiente para chamar a atenção da indústria, angariando uma base de jogadores fiel. Isso foi amplificado pela escolha perfeita do local onde o jogo se passa, uma espécie de Istambul suburbana que resgata uma cultura exótica (ao olhar ocidental) para além de ser disposta com uma arquitetura propícia à proposta de parkour do jogo, com muitas casas baixas, prédios pequenos, postes telefônicos, grades e outros elementos escaláveis, um verdadeiro playground selecionado com a mesma intencionalidade filosófica que a cidade-palco de Assassin’s Creed Revelations, Constantinopla (atualmente Istambul… quem diria?). Ah, isso sem contar nas comparações visuais com nossas próprias comunidades urbanas (favelas) do Brasil, ao qual se assemelham muito também.

Também sinto que preciso abordar uma comparação inevitável: a de que Dying Light seria uma espécie de “Mirror’s Edge com zumbis”. Por mais que a conexão em tese faça sentido, há divergências fundamentais: o título da EA apresenta maior variedade de animações que qualquer Dying Light, mas restringe o jogador com uma filosofia de parkour contextual onde apenas objetos específicos do cenário (geralmente pintados de vermelho ou com manchas de tênis) são “parkouráveis”, causando eventual cansaço por repetitividade e estimulando uma gameplay mais voltada à execução perfeita das mesmas ações (micro) do que a identificação das melhores rotas enquanto é perseguido (macro), como em Dying Light. Em segundo lugar, o combate de Mirror’s Edge é muito mais dependente da inércia, de uma movimentação capaz de sustentar seu momentum enquanto se conduz ataques majoritariamente no corpo-a-corpo (em especial na sequência Catalyst), enquanto Dying Light se livra dessa dependência através da ênfase no uso de armas brancas com modificadores elementais.

Dying Light: The Following — consequências imprevisíveis, decisões imensas

Quem é fã e conhece as grandes franquias de “terror científico” (como Resident Evil) já deve estar acostumado com o hábito de diretores criativos violarem suas próprias convenções, quebrando limites em prol de manter a narrativa fresca. O debate “será que Resident Evil ultrapassou o sci-fi e chegou ao sobrenatural?” (em alusão às vampiras, marionetes sentientes e outras loucuras que presenciamos em Resident Evil Village) não é de hoje, e Dying Light: The Following, aproveitando o auge de sua fama, fez questão de abrir ramificações imprevisíveis ao futuro da franquia, assegurando margem para dançar outras músicas no futuro.

A premissa da expansão lançada cerca de um ano depois do título principal é simples: a aniquilação de Harran por mísseis foi impedida, mas os suprimentos globais e o apoio prometido pela GRE foram interrompidos, condenando os sobreviventes da cidade à fome, morte, ou pior. Em um ato de desespero, um soldado misterioso é resgatado pelos sobreviventes d’A Torre, que em estado de delírio febril relata sobre um “grupo no interior que é capaz de resistir à infecção e até mesmo domesticar zumbis”. Sem outra escolha, Crane toma a decisão de investigar sozinho as alegações, buscando qualquer resposta que impeça o fim dos sobreviventes.

A campanha passa então as próximas horas trabalhando com a aproximação de Kyle Crane ao culto das “Crianças do Sol”, abençoadas pela figura d’A Mãe, uma santidade misteriosa capaz de exercer milagres protetivos contra a infecção, na tentativa de descobrir a solução encontrada por eles e trazê-la de volta à Harran a tempo de evitar seu colapso interno.

[SPOILERS A SEGUIR]

Apesar de possuir um corpo pouco marcante, a narrativa da expansão se destaca por um final extremamente impactante, introduzindo o conceito de sentiência pós-infecção em um número seleto de voláteis especiais e — pasmem — até mesmo telepatia entre os infectados. Também introduz o conceito de componentes químicos que são capazes de inibir (ou hiperestimular) a agressividade dos infectados.

Não bastasse isso, o twist continua: nos jogos seguintes é confirmado que o final ruim de The Following é o verdadeiro, onde Kyle Crane escapa da zona de quarentena e é o primeiro infectado responsável pelo massacre de crescente magnitude que se alastrou pelos arredores de Harran, condenando o resto do mundo a sofrer com uma pandemia do Vírus de Harran.

Esse é o precedente imprevisível que girou a chavinha narrativa da franquia, desencadeando uma infinidade de possibilidades a serem exploradas pela Techland futuramente.

[FIM DOS SPOILERS]

Dying Light: The Following buggy bugado
Implementar veículos é mais difícil do que você pensa, tá. Foto: Reprodução/Yan Heiji

Com relação ao legado de jogabilidade deixado pela expansão, The Following acompanha uma região rural interiorana da Turquia majoritariamente dedicada à produção agrária; com essa contextualização, o design da cidade naturalmente refletiria uma maior horizontalidade, com casas espaçadas, galpões, fazendas e muitos quilômetros de campos de plantação entre cada ponto de interesse que o jogador visita. Assim, fez-se necessário a implementação dos buggies, veículos off-road customizáveis pelo jogador que serviriam como grande diferencial à forma como navegamos pelo mapa da DLC sem morrer (de tédio, mais do que qualquer outra hostilidade). A implementação do sistema veicular foi mais complexa do que esperava, com um sistema de fabricação e upgrade de peças (freio, motor, pneus, etc.) e o gerenciamento de gasolina, para além de diversas pinturas cosméticas.

Tanto a escolha de um mapa de região rural quanto a implementação do sistema de veículos em The Following foram decisões fundamentais à cultura, navegabilidade e exploração vista em The Beast; retomaremos isso mais tarde.

Dying Light 2: Stay Human — a impedida inflexão do voo de Ícaro

Com a revelação final de The Following, o ano de 2021 foi marcado pelo início do verdadeiro apocalipse: as tentativas de contenção da epidemia na Turquia falharam completamente, a cura criada pela GRE foi logo invalidada por uma mutação do vírus de Harran conhecida como “THV”, e a civilização humana sucumbiu às chamas num espetáculo de carnificina. O mundo como conhecíamos não existe mais, e pouquíssimas cidades-bastião (20, para ser preciso) sobreviveram ao banho de sangue através de um projeto de “quarentena reversa”, onde muralhas foram construídas na tentativa de impedir que estas fossem tomadas pela pandemia; dessas, a última restante é o palco que protagoniza o segundo título da franquia, Villedor.

Dying Light 2 se passa em 2036. O projeto de contenção de Villedor baseado no uso indiscriminado da vacina gasosa “THV Genmod” foi uma falha desastrosa, causando a morte ou transformação instantânea de milhares de habitantes, severamente intoxicando a flora e fauna e tornando a periferia da cidade inacessível por conta do componente químico altamente nocivo disperso. Mutantes nunca antes vistos passaram a rondar os entornos, piorando a situação de todas as formas possíveis para os que ainda persistiam humanos.

  • Dying Light 2 Crane Easter Egg

Em termos narrativos, o segundo jogo estica três fios particulares de Dying Light e sua expansão The Following:

  1. O conceito de infectados especiais e a extração sintética de habilidades sobrehumanas (sim, temos o Albert Wesker de Resident Evil 5 aqui)
  2. O fim da civilização moderna, incapaz de interromper a pandemia, perdendo a luta contra um vírus de célere e imprevisível mutação potencializado por experimentos da GRE
  3. A criação do sistema de confiança de facções que introduz ramificações narrativas, derivada do projeto extremamente ambicioso da Techland para a história de Villedor
  4. A magnitude e verticalidade impressionante da cidade que exigiu novos métodos de navegação para além do parkour e uso de carros de The Following

Tudo em Dying Light 2 se resume ao plano da Techland de projetar a franquia à estratosfera: Villedor é um mapa imenso, de verticalidade absolutamente inacreditável. Passamos das periferias de Istambul para uma Polônia ou Londres moderna, megalópole de arquitetura contemporânea cujos céus se acobertam por trás de titãs de concreto, arranha-céus espelhados, vigas metálicas decaindo e muitas estruturas humanas improvisadas. Utilizamos pontes improvisadas, elevadores e ganchos de elevação, cordas e rappel, barras e plataformas de salto, almofadas para amortecimento das quedas, além do paraquedas extremamente poderoso (que não foi incluído em The Beast).

Dying Light 2 é como o Assassin’s Creed Unity da Techland. O título não apenas quebra o convencional em seu design de mapa, mas também incrementa o parkour de Aiden Caldwell na mesma proporção: temos acesso a saltos altos e baixos, quick-time events que emendam ações de parkour com boosts de velocidade, potencializadores de salto, prédios interconectados com micro-obstáculos e uma trilha sonora excepcional que se adapta à velocidade de movimento do jogador; como um todo, há um sistema de movimentação mais complexo e capaz de oferecer maior expressividade ao jogador.

Mas, na mesma moeda de Unity, o projeto de expandir a franquia para um “super RPG com listas quilométricas de missões, pontos de interesse intermináveis e uma história craquelada em ramificações que reagem a nosso alinhamento às diferentes facções” significaria que a desenvolvedora estouraria orçamentos, estenderia prazos e se esticaria ao máximo para executar um projeto que saiu demais do escopo de capacidade original. Ao mesmo tempo que vemos a inclusão de figuras como Chris Avellone, designer sênior envolvido em Fallout: New Vegas, vemos esses calcanhares de Aquiles sendo atingidos e o projeto implodindo por sua ambição – o exemplo mais óbvio é o escândalo em torno do próprio Avellone, removido da equipe por acusações de assédio sexual, forçando o projeto a ter sua narrativa completamente reescrita múltiplas vezes.

O resultado final traz sentimentos conflitantes, para dizer o mínimo. Mesmo com quase três anos de grandes atualizações de rebalanceamento, a reintrodução dos voláteis e até mesmo das armas de fogo, o jogo sofre permanentemente com uma narrativa cadavérica cambaleando com costuras infeccionadas e repleta de personagens-chave esquecíveis que claramente teriam maior participação, mas são misteriosamente removidos da história, além de outras ramificações que ficam sem explicação apropriada.

Dying Light 2 foi o verdadeiro Ícaro da Techland, e apesar de seus múltiplos esforços valorosos, particularmente no impressionante sistema de navegação diegética e da complexidade arquitetônica de Villedor, continuará sendo para sempre uma obra narrativamente incompleta, desfigurada pelas profundas cicatrizes de seu desenvolvimento conturbado.


Intermission – Dying Light: The Beast é o Carros 3 da Techland

A partir do ponto em que a Techland começou a revelar mais e mais da proposta para a próxima entrada da franquia, eu não pude deixar de fazer uma comparação imediata na minha cabeça: o papel de The Beast para Dying Light é o mesmo que Carros 3 teve para a trilogia da Pixar.

Permita-me explicar: dentre as obras excepcionais do estúdio de animação, Carros se destacou por contar de forma não-ortodoxa o envolvente desenvolvimento de Relâmpago McQueen, uma estrela em ascenção e uma bela duma figura narcisista que por coincidência da vida (ou seria acidente de trânsito?) se vê preso em uma pequena cidade esquecida pelo tempo. O destaque que trago para a analogia entre Carros e Dying Light é o fato de que suas histórias são contadas de forma relativamente simples e humilde. Boa parte de seu impacto emocional se deve a tudo ser visto e contado através de uma lente cotidiana e um elevado senso de humanização dos seus personagens. A humildade demonstra seus momentos mais vulneráveis; vulnerabilidade essa que, reitero, é fundamental ser explorada para se atingir catarse e promover grandes mudanças na vida.

Em ambas as franquias, seu segundo título tentou alcançar mais, tentou alcançar o “tudo”: Carros 2 explora o universo das corridas em escala internacional, com campeonatos repletos de figurões populares, corrupção, esquemas de assassinato e outras loucuras extraídas diretamente de uma fusão entre Missão Impossível e Meu Malvado Favorito. É impressionante, eu sei, mas a história conta uma perspectiva de um filme que foi majoritariamente rejeitado pelos espectadores por conta de sua megalomania genérica e um enorme senso de oportunidade perdida; a humanidade, a humildade, o senso de vivência de Carros se perdeu em uma sequência que abandonou a essência do antecessor em prol de engolir o mundo, e tudo que restou foi a franquia se engasgando em ambição.

Por mais que Carros 3 não tenha conquistado holofotes – praticamente nenhum amigo meu se dispôs a assisti-lo até hoje – sua existência se apresenta como uma nobre carta de desculpas ao retomar a franquia partindo do ponto de quase ignorar a existência de Carros 2, se corrigindo a partir de lições aprendidas e amadurecendo o que fez o primeiro título tão especial à cultura pop. O pano de fundo envolve um McQueen quebrado que, após se forçar ao limite e sofrer um acidente, começa a ter seu papel questionado pelo mundo e por si mesmo no universo da corrida esportiva, forçando-o a buscar uma instrospecção capaz de modificar a forma como ele se vê e compreende o mundo ao seu redor, para só então tomar a decisão de como seguir com sua carreira.

O filme não tenta ser uma armadilha da nostalgia, como tanto se vê na cultura pop dos últimos tempos, mas ainda trabalha com a revisita a locais e rostos familiares, se atendo ao tipo de escopo que o estúdio sabia que estaria confortável em fazer e entregando o tipo de sentimento que deu certo no primeiro título. Dois passos pra frente, um passo para trás.

Bom, partimos para o jogo em questão.


Dying Light: The Beast — o ponto de convergência do Apocalipse

A história contada por The Beast foi originalmente projetada para ser uma expansão de Dying Light 2, interconectadas por eventos específicos (dos quais não darei spoilers neste texto). Mas, de acordo com a Techland, a duração da história saiu de controle a ponto de optarem por trabalhar com um título completamente à parte.

Se você chegou até aqui, deve ao menos saber a forma que Kyle Crane termina sua história anterior: ele é forçado a se tornar num tipo especial de volátil por conta dos eventos de The Following. Foi responsável pelo alastramento da infecção fora da Zona de Quarentena de Harran. O ponto de partida vem daí, retornando ao protagonista original em um mundo que agora se vê completamente destruído pela infecção. Lhe resta apenas um objetivo: não lutar pela esperança, mas buscar vingança contra o cientista que abusou de sua fisionomia sobrehumana em experimentos que se prolongaram por mais de dez anos.

  • Laboratório do Barão em Dying Light: The Beast

Com tantos questionamentos levantados com relação à natureza dessa história, e de até onde a Techland ousaria a levar, uma pergunta ecoou em minha cabeça: POR QUÊ as histórias de Dying Light importam? Para quem elas importam, e de onde vem seus impactos? E é aqui que reside o diferencial da Techland contra a forma como a Capcom lidou com sua franquia de apocalipse zumbi e ficção científica, por exemplo, até a virada para o intimista Resident Evil 7. Enquanto Resident Evil se perdeu na imensidão dos plots de espionagem, conspirações políticas internacionais, armas biológicas usadas em guerras contemporâneas, zumbis sentientes capazes de manusear armamento bélico, megalópoles colapsando por massacres quasi-nucleares e até mesmo a presença de kaijus, tanto Resident Evil 7 quanto The Beast não se esqueceram de observar “a que nível nossa humanidade persiste, e como nossas relações interpessoais interferem e são interferidas pelo apocalipse?”.

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O impacto sentimental marcante de algumas dessas histórias pode vir sim dos grandes momentos de quedas de aviões ou raios de choque eletrovoltaicos disparados por infectados de fisionomia colossal – Resident Evil 6 realmente AMA kaijus, gostem ou não – mas o brilho do primeiro Dying Light e de Resident Evil 7 reside em como as pessoas comuns, com todas as suas nuances, lidam com o opressivo ambiente de um apocalipse que induz todo tipo de colapso neurótico possível.

Dying Light: The Beast ABRAÇA o fim do mundo como contraponto da pintura esperançosa e colorida que Dying Light 2: Stay Human (ênfase no subtítulo) pincela – aqui não há mais súplicas de amor e dramas de família. Apenas nos restou a desgraça, o desespero, a pura depravação. Não há mais “antizina”, não há mais inibidores ou a chance de se produzir uma cura: qualquer erro é fatal, e a brutalidade atinge níveis que não eram vistos anteriormente na franquia. O Sol já não brilha mais como antes.

  • hippie de Dying Light: The Beast

Tanto por ser derivado do que era para ser uma expansão, quanto pelo “abraçar do fim do mundo” proposto pela Techland, The Beast emagrece seu cast de personagens, sua mobilidade, seu combate e sua escala geográfica para, em tese, dar mais tempo de televisão a cada momento envolvente, trabalhando com maior foco em cada pilar que sustenta o título. Há mais espaço para as coisas florescerem, pra se desenvolverem; mais recursos pra os principais momentos terem seu impacto alavancado na história.

Venho depois de zerar o título para admitir que infelizmente na hora H, após tantos elementos se unificarem em prol de um grande clímax, me parece que as oportunidades e os twists genuinamente imprevisíveis que me surpreenderam não são muito bem aproveitados no esquema geral das coisas. Responsabilizo o time por escolher uma finalização segura demais, se atendo novamente aos clichês de vilões caricatos, superficiais e de natureza inexplicavelmente maquiavélica para serem o fim de todos os meios e o meio de todos os fins.

Não se engane, pois os pontos altos do jogo continuam firmes, particularmente algumas das sidequests opcionais. A proposta da Techland de inserir ganchos narrativos para o futuro da humanidade vem acompanhada da exploração de possibilidades cada vez mais absurdas, intimistas e genuinamente entristecedoras que alcançam o impacto estelar de momentos como a existência de Harold, um ghoul da franquia Fallout condenado a viver permanentemente como uma enorme árvore mutante, deprimido e sem a capacidade de se mover por conta das raízes crescendo de seu corpo. Para complicar ainda mais, um culto religioso se forma ao redor da floresta germinada por suas sementes, e suas súplicas por uma morte rápida e piedosa são interpretadas como passagens crípticas e ensinamentos bíblicos pelos seguidores, aprofundando seu desespero. Em Fallout 3, o Andarilho Solitário é responsável por dar uma resposta final a Harold, oferecendo à sua agonia um rápido fim ou um novo propósito; em The Beast, nós quase temos uma experiência similar acontecendo.

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Ao mesmo passo em que a história de The Beast acaba me deixando com um sentimento conflitante (não tanto quanto Dying Light 2, cuja história é tão desfigurada que mal consigo “detestar” além de meramente ignorar), sua jogabilidade também reconsidera inovações significativas do título anterior em prol de enfatizar o que considera “realista”. No novo jogo, a Techland faz questão de demonstrar que aprendeu lições do passado, retomando a física dos zumbis, incrementando o peso do combate e refinando a dificuldade do sistema dia-e-noite, amplificando exponencialmente a presença e poderio dos voláteis.

Uma das mudanças mais significativas vêm para o combate, e gira em torno da reestruturação do funcionamento da estamina, que agora não influencia o parkour e é drasticamente limitada no corpo-a-corpo. O gerenciamento de fôlego de um Crane envelhecido e enfraquecido pelos experimentos do Barão – o supervilão genérico detestável – força o jogador a praticar boxe com zumbis. É preciso se atentar ao seu posicionamento e uso do espaço nas lutas; a experiência do início da campanha é mais complicada por conta da maior agressividade e “peso” dos zumbis, que são resilientes, persistentes e fazem de tudo pra sobrecarregar o jogador cercando-o com agarrões.

Essa mudança de filosofia eleva a importância do jogador conhecer e utilizar bem suas ferramentas disponíveis, como chutes, empurrões, lanterna UV e puxões desequilibradores com o gancho, além das facas de arremesso, granadas e minas terrestres, que se tornam absolutamente fundamentais e servem para integrar os sistemas de Exploração-Luta-Crafting de forma muito mais coesa que nos títulos anteriores. O único alerta que faço é que, apesar de The Beast não sofrer com o desastroso sistema de melhorias de itens de Dying Light 2 – eram NOVE. MELHORIAS. POR ITEM. simplesmente INSUPORTÁVEL. – a Techland ainda precisa trabalhar melhor na proporção entre encontrar e usar certos itens específicos em esquemas de fabricação. Eu estou olhando pra vocês, fios elétricos e oxidantes.

ATUALIZAÇÃO: O patch 1.3 de Halloween, lançado no dia 30 de outubro, aumentou a chance de drop dos oxidantes e reduziu o custo de fios elétricos para os itens. É galera, podem parar com os memes, os caras “infelizmente” (rs) sabem fazer uma boa manutenção de seus jogos. Obrigado, Techland!

  • Molotov Dying Light: The Beast

Como contrapeso, para não afastar jogadores com uma dificuldade excessiva, as Zonas Escuras foram suavizadas em The Beast. Ao contrário do que seu nome sugere, agora são acessíveis a qualquer momento do dia, e sua infestação de zumbis dormentes e berradores possui sempre um número fixo, o que torna a experiência de scavenging acessível mas, honestamente, não faz muito sentido e acaba inutilizando qualquer razão que justificasse explorar o jogo à noite para além do desafio autoimposto (planejado) ou de você meramente passar tempo demais nas ruas sem parar pra dormir (não-planejado e desesperador).

A Techland também se dispôs a rapidamente soltar um hotfix para o combate, onde nerfaram o dano instantâneo causado pelos agarrões dos zumbis mais agressivos no jogo, o que reduz a frustração de muitos mas também banaliza a existência de comidas em The Beast, consumidas para restaurar 10% da vida, aparentemente com o intuito original de justamente combater esse “chip damage” causado por cada bofetada e safanão tomado enquanto corremos por aí.

Para finalizar, não tem como falar de parkour sem falar sobre o cenário em que saltita. The Beast é situado na fictícia cidadezinha de Castor Woods, aparentemente nos Alpes Suíços, dessa vez com elementos culturais explícitos da França, Suécia e, particularmente, Alemanha rurais. Por conta da alusão constante a castores e pela representação ambiental e geográfica, acreditava que seria no Quebec, Canadá, mas essas similaridades terminam apenas na questão estética.

Em contraste com o segundo título da franquia, The Beast tentou responder de forma diferente a pergunta de um milhão de dólares que assombra a Ubisoft há eras: Como deveríamos lidar com mundos abertos em grandes escalas? Entupir o mapa de colecionáveis e itens de fabricação? Edifícios enormes, mesmo que vazios e sem vida? Facilitar o uso de fast-travels? Introduzir navegação automática, ou outros métodos cada vez mais eficazes (e OPs) de viajar? Aqui, a resposta colhe sugestões tanto do primeiro título, quanto de sua expansão The Following: navegamos a pé pela área central densamente populada de Castor Woods, com castelos, edifícios, linhas de energia e postes de câmera, enquanto dirigimos picapes dos guardas florestais deixados pelas marginálias da cidade, conduzidas pelas dezenas de quilômetros das regiões rurais do jogo, incluindo rodovias, pontes, fazendas, pântanos e florestas. Temos um loop de gameplay e uma cidade que tentam fundir elementos dos três títulos anteriores: a irregular urbanização das periferias de Harran (DL1), os amplos hectares de The Following e a impositiva verticalidade interconectada dos edifícios de Villedor (DL2), tudo no mesmo lugar.

Se esse experimento de Castor Woods funcionou, fica ao jogador dar sua opinião final. Alguns reclamaram da escala do mapa, que é menor que de títulos anteriores. Traz uma experiência mais polida e detalhada, mas com pouco conteúdo e uma rejogabilidade reduzida. Também me deparei com momentos de confusão quando encontrava casas semiabertas e “esconderijos” que são completamente inacessíveis mas APARENTAM ser entráveis, pois se tornam disponíveis apenas nas suas quests relacionadas, o que é honestamente uma solução preguiçosa e desconcertante caso você opte por explorar demais mais cedo no jogo. Mesmo assim, isso não chega a ser um demérito à qualidade do mapa desenvolvido.

  • Dying Light: The Beast castor
  • Dying Light: The Beast EXPcalibur

Conclusão: viver nas sombras torna mais fácil enxergar a luz

Quando uma de suas obras alcança uma notoriedade muito grande de forma tão rápida, é difícil não se deixar levar por ambições ou expectativas alheias. A Techland é, ao meu ver, uma das desenvolvedoras mais pacientes e transparentes quando o assunto é fazer uma boa manutenção de seus títulos a partir do feedback geral.

Mais que uma expansão, a proposta de The Beast era de ser uma experiência enxugada e mais polida da franquia para revitalizar sua reputação após a recepção negativa de Dying Light 2, e isso não é um problema no papel. O título conseguiu deixar sua marca, teve um lançamento inicial mais bem cuidado que seu antecessor e, apesar de uma certa falta de conteúdo e uma história relativamente desnutrida, trouxe momentos impactantes e uma performance suficientemente engajadora de Roger Craig Smith (Kyle Crane, Chris Redfield, Ezio Auditore, Sonic the Hedgehog) para perpetuar o interessante ciclo de vingança proposto.

A história infelizmente acaba com um espetáculo razoável, dois plot twists que eu considerei impressionantes (dei um berro no primeiro, foi incrível), uma série de meias-respostas para questões que nunca achei que aconteceriam com a franquia e um combate, parkour e level design bastante satisfatórios. Se a sua pergunta é “vale a pena?”, eu lhe respondo da seguinte forma: foram 50 horas muito bem gastas e eu, como fã da franquia, vejo o raiar do Sol banhar Dying Light com a luz da esperança novamente. Nos resta ver quais serão os próximos passos.

Uma cópia de Dying Light: The Beast para PC foi concedida pela Techland para análise no Recanto do Dragão.

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