“Nina” — Fullmetal Alchemist (2003) e a angústia dos alquimistas

Fullmetal Alchemist é um mangá que teve duas adaptações diferentes para as televisões, uma em 2003 e outra em 2009. O motivo foi que a primeira animação foge e muito da história original do mangá, já que em pouco tempo acabou ultrapassando os lançamentos do material original. O anime de 2003 tomou diversas precauções para evitar esse acontecimento — episódios originais, reestruturação de certos aspectos da narrativa e expansão meticulosa de coisas que, de fato, vinham do mangá. Algo que facilmente tomaria apenas um episódio se tornava dois, adicionando bastante coisa que não estava presente no material original, mas que ainda assim caía como uma luva no conto sendo transmitido. Apesar dos esforços, o inevitável acabou chegando — 2003 ultrapassou o mangá, e então se tornou uma história a parte que tem muito mérito por isso também. Este texto não é uma análise do anime como um todo, mas sim de uma parte única e original dele, que ocorre nos primeiros episódios. Naturalmente, o artigo contém diversos acontecimentos do anime que, caso você não tenha assistido, seria prudente em evitar por enquanto.

Na tentativa de postergar o inevitável, um dos acontecimentos mais importantes e icônicos de Fullmetal Alchemist foi bastante prolongado. O episódio quatro de Fullmetal Alchemist Brotherhood (2009) conta a história do Alquimista da Trama Vital, Shou Tucker, e sua filha Nina, para no episódio seguinte dar uma resolução para os acontecimentos. Em 2003, o caso foi um pouco diferente, agora tomando três episódios ao invés de dois. Eu amo Brotherhood e a maneira como o mangá é escrito, afinal, é o original, mas a retratação de um momento tão traumático no primeiro anime é louvável o suficiente para que eu faça um texto só sobre esses três episódios.

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Nina
Nina

Algo notável do 2003 é que os primeiros episódios ocorrem em um flashback. No presente, Ed e Al tem 15 e 14 anos respectivamente, mas por diversos episódios acompanhamos os dois com 12 e 11. Coisas como o atentado no trem acontecem durante esse período, quando Edward ainda estava tentando conseguir sua licença militar. Durante sua preparação para o teste, que por si só é muito mais longa aqui, os irmãos Elric passaram alguns dias na casa de Shou Tucker. Lá, eles podiam realizar pesquisas de alto nível mesmo antes de conseguir uma licença federal, e se prepararem para o teste. Al não poderia realizar as provas por conta do seu corpo, então apenas Edward se candidata.

Nina

É durante esse período que passamos um tempo com os personagens dos Tucker, principalmente com Nina e o cachorro Alexander. Ed e Al tem bons momentos naquele lugar, incluindo o aniversário do mais velho, algo totalmente exclusivo do 2003. Esse aniversário acontece na casa de Maes Hughes, e toda a cena do parto em Rush Valley foi trazida para cá, quando Gracia dá luz a filhinha de Hughes, Elisia. Essa cena em questão não é tão impactante quanto no mangá, principalmente pela ausência de Winry e por estar em um ponto tão diferente da história, mas facilmente fortalece a presença de Nina que estava lá durante toda a situação. Nina também acompanhou os irmãos nos testes, e eles até tiveram algumas conversas sentimentais sobre família.

Nina

Apesar de toda essa momentânea felicidade, todo mundo sabe o final dessa história. No episódio sete, Edward acha uma carta que Nina desenhou para sua mãe completamente queimada em um cinzeiro. Isso desperta nele uma curiosidade maldita, uma hipótese absurda que ele precisava confirmar. Ele então foi até a Extensão 1 para encontrar documentos sobre a primeira quimera de Shou Tucker que podia falar, mas estes estavam restritos. Embora fosse um Alquimista Federal, Edward precisaria da permissão de Basque Grand para ver as pesquisas. Durante essa visita à Biblioteca Nacional Central, Scar buscava o motivo do seu irmão ter dado à ele seu braço direito. Isso é importante mais pra frente.

Nina

Ao mesmo tempo que tudo isso acontece, os militares estão investigando um caso de assassinatos em série de mulheres que foram esquartejadas. Ed presencia o pranto de uma criança chorando por sua mãe, e ao ver o corpo da mulher, percebe a semelhança com o corpo de Trisha Elric após a transmutação humana que ele realizou. O choque faz com que ele desmaie. De volta na casa dos Tucker, Ed acorda e encontra o senhor Tucker ao lado da cama, e então explica o que aconteceu com ele e seu irmão. É aí que Basque Grand aparece e expulsa os Elric da casa de Shou Tucker, dizendo que as pesquisas do Alquimista da Trama Vital são segredos militares e que não entendia como Mustang deixou os Elric ficarem por ali. Quando Ed e Al se vão, Grand lembra Tucker que a avaliação está próxima, e entra em detalhes sobre a vida de miséria que ele terá que viver caso perca sua licença federal.

Nina
Nina
“Uma vida humana? Hahahah!! Logo você vem me dizer isso? Membros perdidos, e um irmão sem corpo? Não é o resultado por você querer brincar de Deus?”

Edward já tinha sua hipótese em mente, que ainda não tinha comprovado. Sua intuição fez com que ele e Al invadissem a casa dos Tucker durante a noite e lá, encontram o alquimista e uma quimera, que Ed sabe muito bem como foi criada. Shou Tucker transmutou sua esposa há dois anos para criar uma quimera que falasse, e agora fez isso de novo com sua filha e o cachorro. O discurso de Tucker é mais longo aqui, e a reação do Ed muito mais absurda. Ele não tem apenas raiva e dor, mas entra em um estado de pânico e choque quando é comparado com Tucker, principalmente pela culpa que sente pela sua mãe e por Alphonse. Toda a cena é muito dolorosa, e termina com Basque Grand apreendendo Tucker e Nina, com o intuito de esconder as evidências do que ocorreu aqui. Edward não aceita isso, e destrói o carro dos militares, libertando a pobre Nina, que corre do local até entrar em um beco e encontrar Scar. Ao tocar na menina, Scar reconhece as duas almas no mesmo corpo e descobre para que seu braço serve. Quando Ed chega lá, Scar já foi e não resta sequer um corpo, apenas uma enorme mancha de sangue na parede com o formato da Nina.

Nina

“Por que procurar motivos pra criar uma quimera? Escute, eu tinha uma hipótese e queria comprová-la, eu queria criar uma quimera que entendesse a fala humana. Nada mais que isso. Mesmo sabendo que é um ato proibido eu não consegui frear o impulso de transmutar um ser humano. Eu e você somos farinha do mesmo saco! Não existem limites para a curiosidade de um cientista, ou melhor, do homem! No desejo de comprovar seu conhecimento. O desafio de saber até onde suas habilidades podem levá-lo. A cobiça de desvendar e testar todos os mistérios do mundo faz parte da nossa natureza. Essas são as fontes da evolução da alquimia! […] Ha ha ha ha! A minha quimera finalmente chegou à perfeição, ninguém conseguiria desfazer o que eu fiz! Tome cuidado, ou vai repetir o que fez com sua mãe!”

Mesmo com 19 anos, 15 anos depois de presenciar essa cena pela primeira vez, e depois de toda a saturação da internet sobre esse acontecimento, eu ainda fiquei em choque. Ed e Al foram os primeiros a encontrarem tudo que restou da menina, e ao invés de apenas um grito, Edward começa a chorar em desespero. O episódio termina com o encerramento clássico, mas agora mostrando imagens da Nina. No final, Edward sorri como sempre, mas agora seu sorriso só expressa dor.

Nina

Mas eu disse três episódios, e isso aqui foram apenas dois. O episódio oito, intitulado “A Pedra Filosofal” mostra uma realidade muito mais dura do luto de Ed. Ao invés de “Chuva da Tristeza”, que contava apenas com Ed e Al amargurados e deprimidos, aqui Edward tenta relutantemente encontrar o assassino de Nina. O exército mandou que ele catalogasse todas as pesquisas de Tucker em um ato absurdo de extrema crueldade. Edward tenta, mas não consegue e devolve seu relógio de prata para Mustang, dizendo que vai atrás do criminoso. Ao mesmo tempo, Winry vem até a Cidade Central para parabenizar os irmãos pessoalmente. Ela acaba sendo sequestrada pelo assassino em série que mata apenas mulheres, e Edward consegue encontrar o local para salvar Winry, apenas para ser surpreendido por uma mulher que ele julgava ser refém mas era o próprio assassino — Barry o açougueiro. Sim, aquele Barry, do Quinto Laboratório.

Quando Edward acorda, vê a visão da sua amiga de infância pendurada com uma fita na boca, e escuta o assassino falar sobre seus motivos para matar. Isso é extremamente importante, porque Tucker falou para ele algo parecido — ele transmutou sua filha apenas porque queria ver o que aconteceria, testar os resultados dos seus conhecimentos. Para Edward isso era uma ofensa à vida humana e à alquimia, mas agora está em frente a um assassino que esquarteja mulheres por achar “divertido”, e ameaçando fazer isso com Winry na frente do menino. Ed está sem seu braço direito (foi arrancado por Barry), mas usa um parafuso para riscar um círculo de transmutação atrás da cadeira que ele estava amarrado (isso é genial) e consegue escapar com alquimia. Toda essa cena é torturante, porque Ed tenta, em pânico, lutar por sua vida enquanto tenta salvar Winry. Essa cena não é tida como uma luta de anime, muito pelo contrário — isso é um filme de terror psicológico. Ed sai muito machucado da situação, e apenas sobrevive porque Winry empurra um porco pendurado do açougue em cima de Barry, que cai sobre Ed. O jovem alquimista já havia reconectado seu braço (sozinho, aguentando toda a dor disso) e criou uma lâmina para matar o assassino. Essa é a primeira vez que Edward transmuta seu automail para uma arma letal, como uma representação simbólica dos seus medos e inseguranças. Então, Alphonse aparece atrás dele e o para. Ed, em pânico, corta seu irmão, que não sofre nada por conta da armadura e diz “Você sabe que precisa de mais do que isso pra me matar”.

Os militares aparecem para prender Barry, já que Hughes também havia notado todas as pistas do criminoso, e Edward recebe o crédito pela apreensão (Roy manteve o relógio com ele, sabendo que Ed voltaria para pegá-lo). Sentados sob o pôr do sol, após a experiência mais traumática de suas vidas, Alphonse e Edward falam sobre a pedra filosofal, e Ed diz que isso é tudo que ele tem para se agarrar — a promessa de que teriam seus corpos de volta. E que, pra isso, ele não se importa de ser chamado de demônio assassino ou de cão do exército. Mas, ainda assim…

“Quer nos chamem de demônios, ou mesmo de deuses… na verdade, nós somos apenas humanos. Tão pequenos e fracos, incapazes de salvar a vida de uma garotinha”.

Nina

As lágrimas de Edward também despertam as de Winry, que via de longe tudo isso. Toda a construção desses episódios é um indício perfeito de como 2003 buscava alterar a história sem retirar seu significado, enquanto também procurava transmitir maior profundidade nas filosofias únicas da obra original. Como o motivo para Edward ser contra matar qualquer pessoa, ou a podridão do exército, ou as motivações iniciais de Scar, e também a busca pela pedra filosofal, que se tornou oficial nesse episódio.

Nina

Edward enfrenta um trauma após o outro nos momentos mais difíceis de sua vida, para enfim encontrar o que ele realmente buscava para seguir em frente. Mesmo o momento que ele percebe que está prestes a morrer é diferente do Brotherhood, embora mais pra frente ainda teremos a luta contra Scar. Aqui o medo dele é tão real que você chega a chorar vendo o pânico de Edward. O próprio luto com relação à Nina não vai direto para depressão, já que Ed ainda tenta terminar essa história achando um culpado e até mesmo joga fora sua licença por um breve momento por não conseguir pensar direito. O momento após a captura do assassino em série é muito impactante também, quando Ed chora nos braços do seu irmão falando que nunca sentiu tanto medo na vida e que achou que a vida dele ia acabar ali. O tanto que esse menino enfrentou o inferno durante esses episódios é o suficiente pra abalar qualquer pessoa, e isso é algo que apenas 2003 traz com tanto poder.

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Apesar de ainda preferir o material original, Fullmetal Alchemist é minha franquia favorita, e eu chamo de franquia justamente pelas diferentes maneiras de transmitir a mesma história. Eu amo os dois animes, eu amo o mangá, eu amo as light novels, os jogos, os filmes (menos live action), e tenho imenso respeito pelo universo incrível que Hiromu Arakawa criou. Uma obra tão icônica e atemporal que inspirou pessoas a criarem sua própria interpretação dela diversas vezes, sempre com algo único e especial que separa as diferentes jornadas dos irmãos Elric. Eu ainda pretendo falar mais sobre o anime clássico de 2003, mas senti necessidade de prestar algumas palavras para estes notórios três episódios tão importantes para a trama. Obrigada e boa noite.