Se despirmos a franquia AI: The Somnium Files aos seus elementos mais básicos, seja de narrativa, seja de mecânica, o que veremos é uma elaboração sobre uma simbiose humano-máquina que discute os limites e intersecções entre essas duas existências. Porém, esse sempre foi apenas o puxão num estilingue carregado com uma enorme pluralidade de temas sobre empatia, conexão e identidade vestido pela caótica carcaça de conspirações característica de seu escritor e diretor Kotaro Uchikoshi.
Que é, então, o trabalho fazer um AI sem Uchikoshi? (mesmo que supervisionado por ele). Um olhar atento à “No Sleep For Kaname Date — From AI: THE SOMNIUM FILES” — novo jogo da série e assunto dessa análise — pode nos revelar algumas pistas. Entretanto, antes do “fazer”, enquanto publicadora e desenvolvedora, a Spike Chunsoft dispunha um outro verbo como desafio: “vender”. Sem seu realizador principal, como atrair o público de um título já nichado? É aí que temos a carta que sempre está na manga, não importa quantas vezes a tiremos: nostalgia.

“Se não dá pra ter Uchikoshi, pelo menos teremos Zero Escape, sua obra mais cultuada” — ou o contrário, nessa especulação ovo ou galinha que, na verdade, pouco importa. O que interessa é que funcionou e, desde seu anúncio, a mescla de mecânicas entre as duas franquias atiçou a curiosidade de boa parcela dos fãs, inclusive eu. Entretanto, o que mais me importava é o que isso significaria ou em termos narrativos ou temáticos. A resposta trazida pela direção e escrita de Kazuya Yamada, devo dizer já de pronto, é fascinante.
Comecemos com uma breve sinopse: temos o retorno do detetive Kaname Date, protagonista do primeiro jogo, e de Aiba, sua companheira de inteligência artificial, em uma história que ocorre entre o primeiro e o segundo título. Logo de início, vemos Date sendo perseguido por mafiosos até Golden Yokocho, onde são surpreendidos por um OVNI que utiliza de um raio trator para capturar tanto os perseguidores, quanto o protagonista. Porém, de última hora, vemos uma garota sendo levada junto: Iris Sagan.
Num instante, somos levados a um interior do que parece ser uma nave espacial em órbita, mas tomamos controle de Iris agora; estranhamente vestida com um traje sensual de coelho e nenhum dos outros personagens à vista. É nessa confusão proposital que somos colocados no primeiro puzzle de escape característico de Zero Escape e — feito nos jogos originais — somos apresentados à aparente responsável pela situação: Akemi, uma garota réptil com um terceiro olho na testa, que nos apresenta ao que ela chama de “Jogo do Terceiro Olho”.

Sem entrar em detalhes: todo esse início é repleto de referências aos elementos mais fantasiosos e conspiratórios do primeiro AI, o qual ter jogado, com certeza, é uma necessidade para aproveitar plenamente essa nova história, apesar de haver vários subterfúgios para situar o jogador em um universo já em movimento.

Em termos de jogabilidade, ao contrário da estrutura point-and-click dos puzzles de ZE, a partir de uma câmera em terceira pessoa interagimos com um ambiente tridimensional e com objetos menores que podemos pegar e combinar para encontrar as soluções que ajudarão na fuga. Na reta final de todo quebra-cabeça deste tipo, haverá um momento com limite de tempo que alude à ideia do terceiro olho ao apresentar duas soluções inviáveis e te desafiar a encontrar um terceiro caminho.
Apesar dessas novas seções serem a estrela da vez, os somniums característicos da série AI (onde entramos no sonhos de algum personagem) ainda estão presentes e se intercalam entre as seções de leitura e de fuga para dar prosseguimento ao enredo… Mesmo que sejam claramente ofuscados e funcionem mais como apoio à narrativa principal encontrada nas escape rooms. Por isso, são bem mais simples e diretos, o que os torna menos interessantes enquanto fases individuais, mas não deixam de ser essenciais para o quadro geral — o que será discutido mais adiante.

É hora de voltar à questão inicial: “Que é, então, o trabalho de fazer um AI sem Uchikoshi?”. É, antes de tudo, encontrar um caminho entre as várias bifurcações — assunto que a propósito atravessa todo o corpo de trabalho do diretor — e caminhar a partir daí, mesmo que, paradoxalmente, esse seja o primeiro jogo sem rotas ramificadas, talvez a primeira grande falta sentida.
Para encontrar esse caminho, além do cuidado com o “cânone”, há também a necessidade de considerar as limitações impostas por ser uma história sanduichada entre duas outras já existentes. A resposta encontrada, então, foi uma exploração das bases conceituais previamente estabelecidas em um setting que, por muitas vezes, é comparável ao clima de um filme de anime que tem o intuito de ter uma narrativa que passa certo senso de urgência e tensão, porém sem poder tomar decisões drásticas, quase como uma curiosidade de um “e se?”.
Mas o que mais me interessa, apesar do setting permitir um enredo diferente e divertido, é a primeira parte: a exploração conceitual provocada pela inserção das escape rooms por diferirem radicalmente da estrutura de quebra-cabeças original quando se trata da racionalidade necessária para resolvê-los.
Enquanto as salas são preenchidas por diversos micro puzzles que se interligam e precisam de um raciocínio lógico específico, os somniums pedem por uma forma de lidar diferente já que suas respostas muitas vezes fogem de uma lógica convencional por dependerem de certa intuição do jogador a partir de sua experiência geral com o jogo, seja pelos seus temas, personagens ou até somniums anteriores.

Não é novidade que dentro das discussões sobre inteligência artificial e a capacidade de replicar a mente humana, um dos conceitos mais polêmicos é o da intuição. Um exemplo clássico — e até um tanto batido — é a comparação entre os jogos go (ou baduk) e o xadrez onde após a derrota do (na época) campeão mundial Garry Kasparov para Deep Blue, IA desenvolvida pela IBM, despertou todo um debate um tanto sensacionalista sobre se a mente humana havia sido superada. No entanto, o go servia como essa última barreira por ser um jogo onde a “intuição humana” era necessária.
Ou seja, o xadrez podia ser o campo perfeito para uma IA com força bruta o bastante para calcular e prever uma quantidade enorme de posições mas, em um jogo com uma quantidade de movimentos muito maior como o go, essa vantagem do computador desapareceria frente à intuição humana. Isso até 2017, quando Ke Jie, campeão mundial de go na época, foi derrotado pela IA AlphaGo em uma melhor de três.

Faz sentido que nessa franquia protagonizada por duplas formadas por humanos e IAs, a influência dessas discussões sobre as barreiras que dividem uma existência orgânica de uma artificial estejam presentes. E, em “No Sleep For Kaname Date”, vemos essa influência se tornar central ao contrastar os dois tipos de puzzle presentes no jogo.
As temáticas sempre estiveram lá quando, ao mergulhar na psique de alguém, utilizamos a Aiba como uma interface para Date interagir com o espaço, por exemplo. Mas nessas ocasiões somos ambos: humano e máquina. Porque se sua companheira é a única que consegue navegar naquele mundo, é apenas a intuição do protagonista que é capaz de organizar informações que permitem encontrar as soluções pouco lógicas dos sonhos — o que é enfatizado inclusive pelo limite de tempo que não permite uma resolução por força bruta.
No entanto, o contraste mecânico presente nesse jogo — e a própria narrativa — faz com que esses temas transbordem para se tornarem o ponto central de discussão. Uma escolha muito inteligente dentro das limitações impostas à sua criação. Junto a essa escolha, a homenagem a Zero Escape e a possibilidade de revisitar personagens queridos — alguns até controláveis aqui — faz com que “No Sleep For Kaname Date” seja uma experiência muito interessante.
Claro, não sem seus problemas, alguns causados pelas mesmas limitações que trazem sua força. Por exemplo, a ausência de Uchikoshi na escrita faz parecer com que os personagens fiquem limitados à algumas características pré-estabelecidas e que algumas piadas conhecidas sejam utilizadas excessivamente. E, também, a falta de rotas reais — sem contar os finais “piada” — que faz com que a narrativa perca bastante do brilho dos twists e misdirections tão presentes nos títulos anteriores.

Se o que espera de No Sleep For Kaname Date, porém, é só sair em uma viagem com personagens queridos, acredito que você se surpreenderá com a qualidade do caminho. Com puzzles majoritariamente bem elaborados e uma história que, apesar de um tanto previsível, entrega momentos de tensão muito divertidos e uma grande variedade de interações entre o elenco. Um pouquinho de Zero Escape e de AI: Somnium Files para aqueles que estavam com saudades.
Uma cópia de No Sleep For Kaname Date – From AI: THE SOMNIUM FILES para Nintendo Switch foi concedida pela Spike Chunsoft para análise no Recanto do Dragão.