Por algum tempo pensei em como começar a contar a minha história sobre Trails in the Sky de um jeito que fizesse jus à obra. Cogitei em tramar megalomanias de escalas inconsequentes e cheias de pretensões. Também cogitei em abordar jornadas reais e metafóricas — abordagens e narrativas que conseguissem tirar bons suspiros.
Foi em algum momento que eu me deparei que talvez eu devesse levar as coisas de maneira um pouco mais parecida com as lições que aprendi com o próprio jogo.
Permita-me então começar de um jeito mais singelo, para podermos trilhar com o pé no chão, até nossos rastros ascenderem aos céus. Talvez a primeira etapa dessa jornada seja escrever uma anedota ruim.

Trails in the Sky 1st Chapter é um jogo desenvolvido pela Nihon Falcom e publicado pela GungHo Online Entertainment . Foi lançado em 19 de Setembro de 2025 para PC, Playstation 5 e Nintendo Switch 1 e 2.
Trails é um RPG escrito por pessoas que realmente queriam escrever suas palavras, e pertence à franquia de RPGs criada por uma das empresas mais bem estabelecidas no gênero e que (aparenta) até hoje não ter um tostão no bolso. Esse não é o primeiro Legend of Heroes. Na realidade, o primeiro Legend of Heroes se chama Dragon Slayer: The Legend of Heroes. O subtitulo virou prefixo e agora, décadas depois, assim como Persona 4 Golden e Persona 5, a Nihon Falcom apagou o título da franquia-mãe com Trails in the Sky 1st Chapter.
Sou particularmente contra essas ações linguísticas, mas confesso que a ideia de chamar o primeiro Trails de “1st Chapter” é bem espertinha. Afinal, a sequência recebeu o título de “The Legend of Heroes: Trails in the Sky SC” posteriormente. SC representa Second Chapter, e o terceiro jogo veio como “The Legend of Heroes: Trails in the Sky the 3rd”.
Alguns anos depois, o primeiro jogo recebeu, na versão de PS Vita, o título de “The Legend of Heroes: Sora no Kiseki FC Evolution”, ou seja, First Chapter. A primeira vez que ouvi falar sobre FC, achei que era o fã-clube de Trails in the Sky.

Não existe muito bem um antagonismo na maioria dos elementos do Remake de Trails em comparação com o jogo original. A mais perceptível diferença é a troca dos visuais do começo dos anos 2000 de jogos de PC e PSP.
Os bonequinhos — pré-renderizados em 3D, mas fotografados e adicionados como sprites 2D, assim como Donkey Kong Country e Super Mario RPG — fazem falta, eu sei. No entanto, a decisão de 1st Chapter estrear em um novo visual apologético de animes contemporâneos da franquia foi ótima.
Compare os visuais deste jogo com o ainda não lançado Trails Beyond the Horizon… aquele filtro oleoso de PS Vita foi demitido e eu admito que, apesar de sentir carinho por ele, esse novo caminho cativa.

Neste primeiro capitulo da subfranquia Kiseki, você acompanha a jornada da protagonista Estelle e seu irmão adotivo Joshua, estudando e se aventurando para se tornarem bracers, basicamente uma guilda de mercenários que auxiliam a população do reino de Liberl com aquilo que for necessário.
Após se formar e ganhar sua licença bracer, os irmãos decidem realizar uma peregrinação na região em que vivem, conhecendo cada povo e cultura, sem pressa ou necessidade de se aproveitar das invenções mais mirabolantes.
Em meados deste conto, o começo humilde em que pouco a pouco Liberl se abre e eventualmente se transforma na descoberta das memórias de quem viveu os momentos que marcam as características do povo. É necessário, por exemplo, atualizar a carteirinha bracer em toda nova cidade principal para conseguir trabalhar naquele lugar.

Tudo é tão afável no mundinho de Trails… A rotina e o cotidiano se complementam de uma forma confortante. Todos esses elementos sempre se fizeram presentes desde o Trails original. A construção do início até, quem sabe, lutar contra deus é bem preocupada com cada um dos moradores de pequenos vilarejos e grandes capitais.
Pense neste primeiro jogo como o cotidiano da leitura de um bom livro de fantasia de algumas centenas de páginas. Você pode pensar “mas eu já sinto isso do meu Final Fantasy…” e, a não ser que você tenha milhares de horas em Final Fantasy XIV Online, você não viu nada. Existe um motivo claro do porquê fãs de Legend of Heroes são tão vocais na quantidade de linha de diálogos deste jogo:
Ele é literalmente apaixonado pela própria prosa.

Não diria que é sob um teor ou pretexto egocêntrico, mas sim por que talvez esse fosse o grande sonho de seus escritores. A ideia de criar essa grandiosa franquia de videogames que se aproxime dos grandes contos literários da humanidade.
Uma história real: após finalizá-lo, abri Final Fantasy IV (retraduzido) de Super Nintendo, e comecei a jogá-lo. Imediatamente pensei em como eles conseguiram transpor tantas sensações em minúsculas caixinhas de texto.
O jeito que Trails in the Sky conta sua história é extraordinário, porque é também apaixonado pelo próprio cotidiano. Essa quantidade de flavors textuais está na conversa com cada NPC que fala sobre a própria vida e seus pequenos problemas. Cada um destes conflitos e questões vão se desenvolvendo com o sistema de dia a dia de Trails in the Sky.
Não é um sistema típico de Majora’s Mask ou qualquer jogo de fazendinha. Você literalmente avança um conjunto de quests principais e de repente a sua tela está lotada de NPCs com a bolinha amarela na tela para você ouvir as reflexões alheias deles. São muitos, eu te garanto isso.

Esses indicadores não eram presentes no jogo original, que optava por realçar a sensação de acompanhar a vida dos personagens como algo mais natural e menos apegado à obrigação de acompanhar cada uma das linhas — em 1st Chapter, todo conteúdo secundário, incluindo a coleta de livros, jornais e as sidequests parece fazer parte do conteúdo principal, o que ajuda na expansão do tempo que você vai ficar jogando.
A melhor maneira de aproveitá-lo é como uma canção de ninar ou acompanhado de um café da manhã calmo e não-vitimizado de uma rotina limitada a 45 minutos de jogo por dia… claro que nos propósitos de analisar ele, eu não me dei a chance de aproveitar esse mundo ideal.
Tudo que eu disse não foi escrito para soar desinteressante, mas para destacar as ressalvas que ajudam a intensificar cada sensação que a história busca retratar. A pressa aqui é mal vista e mal recompensada. Chega próximo a uma terapia de choque.

Esse bastião não se sustentaria sem Estelle e Joshua. Caso o garoto fosse protagonista, ainda conseguiria ser uma perspectiva incomum; apesar de sua feição apática, ele é gentil e habilidoso em cada um dos seus passos.
Mas a perspectiva que acompanhamos é da Estelle! Impulsiva, ciumenta, raivosa, quase sempre menosprezada em comparação com o próprio irmão. Ela é um furacão de emoções que poderia ser reduzido a arquétipos limitadíssimos se não fosse a sensibilidade da escrita do jogo.
Na realidade, os personagens principais são majoritariamente arquétipos bem claros e potencialmente genéricos. É neste papel que todas as minúcias e preocupações são bem alimentadas por um exército de milhões de caracteres.
O conteúdo de escrita, em sua maioria, é formado por elementos já presentes no lançamento original de Trails — incluindo os textos que ganharam uma força memética muito grande nas traduções do começo de 2010 da XSeed. Até mesmo por isso, uma localização menos “soltinha” causou frustração em parte da comunidade do fã-clube.

Uma coisa realmente diferente é o combate, que se desprendeu do puro turno tático para um gostinho de Ys moderno (assim como Trails through Daybreak). É engraçado, você tem o pacote de ataque fraco e ataque forte, habilidades especiais únicas sozinho e em conjunto, e mesmo uma esquiva com Witch Time, tal qual Ys.
Cada personagem bate diferente com peso e danos diferentes, e a sensação de jogar com personagens que usam arma de fogo são próprias dos mesmos. É perceptível que é um jogo da mesma desenvolvedora de outros excelentes jogos de ação. Claro, não compensa executar os oponentes deste modo, e sim alternar para o modo de turno no momento de abater o stagger…
Na realidade você pode bater neles até morrer, mas vai ser uma perda de tempo danada. Será que preciso literalmente explicar todas as minúcias de combate (em turno) de Trails? Ou eu poderia simplificar ele com alguma analogia? É tipo… Like a Dragon: Infinite Weath (nota: talvez Hyperdimension Neptunia!?)!? Brincadeira…

Você tem aquele seu pacote de habilidades especiais e elementais que gastam barras diferentes (EP e CP) entre dano físico e agregados. Todos os comandos entram numa filinha de delay. Então, a depender da velocidade e do ataque do personagem que você controla, é possível executar mais do que apenas uma ação por “rodada”. Ainda é possível roubar os bônus de oponentes com habilidades especiais.
Os bônus podem variar entre ganhar dano, mais dinheiro, zerar a necessidade de MP, e afins. São várias pequenas coisinhas que deixam tudo um pouquinho mais interessante do que a sua base Wizardryana.
A questão de posição de combate não é a coisa mais complicada do mundo; tanto no jogo original, quanto agora. Realmente, em visual, os quadradinhos podem provocar flashbacks de clássicos RPGs táticos. É simples: dê uma porrada nas costas do seu oponente, ou o acerte de ladinho, assim provocando mais dano.

Todas essas ações são acompanhadas de uma trilha que mescla jazz, piano, violinos e lindos sintetizadores — repetitivos, mas efetivos nas suas frequências.
Juntando tudo com pequenas caçadas de interações sociais que remetem algo bem mais próximo da experiência cotidiana de um jogo de fazendinha, esse pacote pode transformar Trails in the Sky no principal assunto de meses de seus sonhos.
Pode ser excruciante a ansiedade de acompanhar a reta final e participar das principais revelações, mas é sempre preciso respirar. Aqui, a peça de teatro não é uma cinemática de cinco minutos, é uma cinemática de meia hora! Personagens vão falar “ele falou isso?” “ela sentiu isso?” mesmo que os gráficos em alta definição com voice acting deixem muito claro que aquilo foi dito e sentido.
Talvez por amor a literatura, quem escreveu pensou em como substituir a narração de novelizações ainda usando as palavras que tinham ao arredor, ao invés de valorizar a fidelidade do audio & visual. Isso é insano… de bom! Claro, também é pouquinho cansativo, mas faz parte da jornada.
Em alguns momentos é difícil lidar com alguns dos clichês imputados e outros dão brecha para muitas incertezas para um jogador de primeira viagem. Nestas horas me vi obrigado a aceitar e abraçar algumas das decisões e rescindir percepções que eu enxerguei em boa fé — torcendo para que as coisas sejam interessantes pro futuro.
O final de Trails in the Sky 1st Chapter é um convite para um compromisso bem longínquo, mas único. Um convite que eu já aceitei. Espero me sentir convidado nos próximos mais-de-dez jogos da subfranquia e eu espero que, de algum modo, eu também tenha te cedido um pedacinho da minha passagem. Quem sabe se aventurando com calma neste mundinho algumas das mais de 500 mil palavras que Trails escreve signifiquem algo para você.

Uma cópia de Trails in the Sky 1st Chapter para PC foi concedida pela GungHo para análise no Recanto do Dragão.




