TRIGUN — AMOR & PAZ & MORTE

Eu conheci Trigun por acaso. Eu assisti Trigun por acaso. Eu me apaixonei por Trigun por acaso. Foi um simples acidente, mas um que agradeço. O que me levou à ele foi seu estilo, foi a arte, foi a música, foram as balas. Mas eu saí com muito mais do que esperava. O que inicialmente me prendeu acabou por ser a menor parte.

No futuro, a Terra ficou sem recursos para sustentar a humanidade. Então, como aves migratórias, os humanos criaram o projeto SEEDS para levar o novo povo da espécie até um novo planeta. No Man’s Land é onde pararam.

As terras de No Man’s Land são áridas, e os humanos começaram de baixo novamente. O futuro se junta ao passado, e a tecnologia anciã se torna um refúgio para os que buscam uma vida melhor. Das usinas vem a energia. E das armas de fogo… vem a morte.

Isso nos leva ao “herói” dessa obra. Vestindo um longo e velho casaco vermelho, com óculos escuros bregas, cabelo de vassoura, sem um tostão furado e uma arma que não atira. Esse é Vash, o Estouro da Boiada, o Tufão Humanoide, e sua cabeça vale seis bilhões de dólares duplos. Seja lá o que um homem precise fazer para valer tudo isso, Vash o fez.

Durante a história acompanhamos ele, as agentes de seguro Meryl e Milly, e por vezes o pregador Wolfwood em uma jornada em busca da paz. Uma coisa que precisam entender primeiro é que Vash não é um cara qualquer.

Por vezes bobo, por vezes pervertido. Por vezes frio, por vezes extremamente sentimental. Solitário, mas sempre à procura das damas. Um habilidoso pistoleiro, mas que não atira. Tem sempre algo a mais sobre o Vash. Sempre tem algo escondido. Sempre tem um porém. Atrás do seu sorriso existe dor que apenas seus olhos mostram, e é por isso que ele os cobre com óculos escuros.

Vash é o motivo para essa obra ser tão especial. O Tufão Humanoide leva sob seu nome um sinal de paz; um guerreiro do amor que viaja pelo mundo tentando espalhar o bem ainda que sua presença atraia as impurezas do submundo. E, no fim da sua peregrinagem solitária, está o seu alvo: Millions Knives. O seu irmão.

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A ideia central de Trigun é uma questão moral — quem tem o poder sobre a morte? Somos apresentados à esta questão pela dualidade extremista de Vash e Knives. Knives é um psicopata que pretende exterminar a raça humana, os vendo como o resto do que sobra no universo após tudo ser consumido pelo bicho homem. Mas, para Vash, nenhum ser vivo tem o direito de matar outro. A vida é preciosa demais para que alguém possa decidir quando tirá-la. Esse é um pensamento que ele adquiriu de Rem, a única figura materna que ele teve. Mas nem Knives, nem Vash, parecem ter entendido alguma coisa.

Durante a história vemos essa questão ser abordada de muitas formas, sem uma resposta definitiva. Existe muita verdade no pensamento de Vash e a beleza da vida. De fato, o dom de viver é especial e precisa ser preservado. Mas, se você salvar as borboletas, as aranhas vão morrer de fome. E se salvar as aranhas, elas comerão as borboletas.

Apesar do nobre ideal de Vash, seus companheiros não seguem suas ideias. Meryl, Milly e Nicholas matam se precisarem proteger alguém. A morte é uma arma para eles. Assim como é para Legato e as Armas Gung Ho que servem a Knives.

Na verdade, Vash é hipócrita por dizer que, ao não puxar o gatilho, ele não tem sangue nas mãos. Suas ações levaram à morte de muitas pessoas. Não puxar o gatilho quando precisou fez com que outros morressem. A morte é, por vezes, a única solução.

Apesar disso, todos os personagens parecem concordar com o Tufão em uma coisa ou outra. Existe um clichê em todo tipo de obra quando um personagem morre: nos seus últimos momentos, eles aceitam a morte. Pessoas se sacrificam por outras, outros morrem em paz com o sentimento de dever cumprido. É uma bela forma de ir embora… mas não é realista.

Em Trigun, isso não existe. Sejam aliados ou adversários do Vash… ninguém quer morrer. Apesar de buscar uma adrenalina que o fizesse sentir vivo ainda que precisasse morrer, o samurai dos Gung Ho só queria correr assim que encarou a morte nos olhos. Assassinos treinados a vida inteira para matar sem qualquer remorso, imploram por suas vidas com a arma apontada na sua testa. Em seus últimos momentos, aquele homem chorou aos pés de Deus por não poder viver com seus amigos. Nenhuma morte em Trigun passa sem deixar dor para trás. Ninguém vai em paz.

E isso é como Vash diz: a vida é preciosa, ninguém pode escolher quando terminá-la. E ainda assim, nenhuma resposta parece definitiva. Nada parece nos levar mais perto da resposta. Knives e Vash são o resultado dessa questão moral mais antiga que o tempo.

Naquele dia, dentro da nave flutuando no espaço, um homem apontou a arma para uma mulher e uma criança. Para salvar os dois inocentes, o capitão da nave abriu a escotilha e jogou o homem, que costumava ser seu companheiro, no vácuo do espaço. Ele salvou duas pessoas, pelo preço de uma. Ainda que a arma não fosse disparada, ele não poderia saber de nada. Naquele dia, ele salvou a vida do pequeno Vash, e também morreu por isso. Qual seria a escolha certa?

O amor e o ódio sempre vão existir juntos. A paz e a guerra são dois lados da mesma moeda. A vida e a morte se complementam. Não importa a beleza de um sentimento, ele inevitavelmente levará a outro. Não há como criar um mundo perfeito com apenas um deles… por mais belo que seja.

O fardo de ter uma escolha sobre a vida de alguém é uma cruz pesada de se carregar. Essa escolha pode culminar na vida, na morte, ou nos dois. As pessoas protegem quem elas amam. E, talvez você tome a decisão errada. Porém, todos são pecadores. Não existe perfeição no mundo. Os humanos precisam errar para acertar. Foi isso que Vash aprendeu.

A indecisão entre o assassino e vinte cidadãos levou à morte de ambos. Nenhuma vida vale mais do que a outra, mas o mundo não é perfeito. Se você faz a escolha errada, a cruz pesa mais, e você também precisa ser forte para carregar. O ser humano é falho, mas ainda é um ser vivo belo. Na sua busca pelo amor e pela paz, não esqueçam de encarar a morte com o peso que ela merece. Sem peso demais, nem de menos. Boa noite.