Wilmot Works It Out — o mundo como espelho da alma

Wilmot Works It Out — o mundo como espelho da alma
Arte: Divulgação/Finji

Wilmot’s Warehouse é um jogo lindinho, relaxante e de simples premissa: você é um quadradinho sorridente responsável por cuidar do seu próprio armazém, organizando centenas de diferentes produtos para entregá-los aos seus colegas de trabalho na velocidade mais rápida que conseguir. Wilmot Works It Out, sua sequência, é o contrapeso na vida do protagonista: se nos manifestamos física, intelectual e socialmente através do “trabalho”, essa é a outra faceta de nosso herói: seu lazer, seu descanso, se manifestando através da improdutividade.

Nessa análise, vou discorrer um pouco sobre ambas as experiências (que valem MUITO a pena, nem que por alguns minutinhos); sobre o que as tornam mágicas, o que as tornam um pesadelo, suas mensagens (ou minhas interpretações) sobre a vida real e, não menos importante, como isso tudo nos afeta.

Wilmot, o cubinho estóico, gauche e eternamente sorridente

A prequela Wilmot’s Warehouse, inocente como era, poderia ser interpretada sob uma infinidade de lentes: uma crítica sobre as demandas de trabalho excessivas, a natureza alienante e opressiva de ser funcionário em uma companhia de escala massiva, as dificuldades de lidar com o ofício de “organizador de armazém” lidando com estímulos sensoriais cada vez mais volumosos e ambíguos; Wilmot Works It Out resgata de seu predecessor seus melhores elementos satíricos e contradições divertidas indicadas pelo estúdio, não para falar sobre “trabalho”, mas dessa vez ilustrando a atmosfera e o universo da casa de Wilmot.

O primeiro jogo se dispõe a firmar seus pés (pontas? cubículos? será que o Wilmot usa tênis?) em um tema que muitas pessoas abominam ter que admitir: a importância do trabalho para além do capitalismo, para além da sobrevivência, para além da obrigação moral ou religiosa, mas como formadora de identidade, como manifestação física, social, intelectual, artística, moral — as pegadas de esforço deixadas no mundo por um indivíduo, singular como é, modificando aos poucos o que lhe cerca. Já o segundo pondera, bem literalmente, sobre o ditado “a casa é reflexo da alma” — Wilmot não sai mais correndo por aí para obsessivamente organizar quantidades avassaladoras de produtos em prol de necessidades logísticas, atendendo constrições de espaço e tempo estabelecidas por seu vínculo empregatício, mas porque organizar faz parte de quem ele é. Porque é algo que ama e lhe dá prazer, porque é algo que sabe muito bem fazer, é algo que o tranquiliza, lhe dá controle e satisfação.

Wilmot Works It Out - Wilmot pensativo reflexivo
Imagens de um bloquinho fofo mergulhando nas profundezas da insanidade por causa de um quebra-cabeça.

Olhando para as duas experiências — uma levou cerca de oito horas e outra cerca de treze — dá pra traçarmos um paralelo: Wilmot é um quadradinho de espírito sólido e resiliente, que nunca se acanha frente à magnitude dos desafios que lhe são apresentados. Pode ser um quebra-cabeça pequeno ou um armazém colossal, mas ele irá dar CADA FIBRA do seu incansável corpinho quadriculado para organizar as coisas. CUSTE. O QUE. CUSTAR.

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida!
– Carlos Drummond de Andrade

Wilmot’s Warehouse — O Armazém Infinito

É difícil falar do equilíbrio vida-trabalho sem endereçarmos a série de barreiras que tornam essa relação muito menos romântica do que, em tese, gostaríamos que fosse. Apesar de eu ter comentado lá em cima sobre “a importância do trabalho para além de mera sobrevivência”, seria burrice minha afirmar que as coisas realmente funcionam dessa forma tão platônica.

Importante sinalizar aqui, então, que existe mais de um significado para o conceito de “trabalho”: aquele esforço que empregamos por vontade própria, com o desejo de transformar, ajudar, conquistar algo que almejamos; e aquele que é mero vínculo empregatício, que executamos por obrigação, em prol da sobrevivência, para adquirir recursos financeiros, por conta de responsabilidades, por aí vai. Não é impossível ver ambas as forças motivadoras se interseccionarem, alguns até encontram o “emprego dos sonhos”… mas, por vezes, não. Muito pelo contrário.

O emprego de Wilmot no armazém era, em teoria, “perfeito” pra ele, coçando aquele seu hiperfoco em organizar tudo, cutucando sua pereba psíquica do TOC que tanto movimenta seu corpinho quadrangular. Era um emprego que aproveitava dos seus fortes e da sua personalidade hiperconscienciosa para processar montanhas de informações subjetivas, estabelecer vínculos de semelhança entre objetos e então unir-los ou separá-los de acordo com o que faria mais sentido para ele, dentro do esquema geral de seu armazém.

Wilmot's Warehouse
Arte: Divulgação/Finji

A experiência desliza entre esses limiares de “simplista e prazeroso” (suplementada pela trilha sonora relaxante, que me acompanhou numas boas madrugadas) e algo que vai ficando eternamente mais complexo, crescendo e crescendo à medida que a produtosfera do armazém se torna mais diversificada e as remessas, cada vez mais volumosas. A situação vai piorando mais, e mais, e mais, e mais… até a tal experiência “relaxante” se tornar num verdadeiro inferno, estressante a ponto de quase me fazer desistir de tanto esforço exigido para continuar mantendo o armazém organizado e, mesmo assim, vê-lo abarrotado até o último centímetro cúbico possível (sem contar nos prazos mais e mais apertados).

De qualquer forma, inevitável dizer que voltamos àquela máxima: trabalho é trabalho, não existe ofício sem seus ossos. O problema surge quando ignorar o que nos incomoda se torna hábito. Fica cada vez mais difícil ignorar o fato de que a demanda de Wilmot se torna cada vez mais avassaladora, uma avalanche que inevitavelmente vai soterrar todo e qualquer tipo de esperança. E, para quem já zerou Wilmot’s Warehouse, sabemos todos os limites que o chefe CJ constantemente viola de seus funcionários, pendurando pôsteres “motivacionais” e oferecendo “frases encorajadoras” sobre meritocracia e diligência no trabalho… alguns de vocês já sabem aonde esse tipo de comportamento leva.

Wilmot's Warehouse - timelapse do armazém do Yan
Um dos upgrades de armazém em Wilmot’s Warehouse permite que você assista uma timelapse completa de sua jornada, do início ao fim.

Wilmot Works It Out — permitindo se acomodar

Se o primeiro título rondava como um abutre em torno dos valores tayloristas de hipereficácia e demandas de trabalho esmagadoras, até o ponto de desistência/morte/substituição da força de trabalho (bem no estilo Amazon, mesmo), o segundo ilustra uma premissa de possibilidades menos existencialmente tenebrosas.

Wilmot passa cerca de um ano sem trabalhar, se dedicando ao clube de quebra-cabeças, reformando e decorando cômodos, retomando hobbies antigos e até adotando um pet. Não vemos muitas dessas coisas realmente acontecendo, pois o jogo foca exclusivamente na parte interna da casa (puzzles e decorações, em particular); apenas descobrimos isso ouvindo os comentários entusiasmados da amigável entregadora Sam, que sempre chega com pacotes para montar e papos para bater.

Wilmot Works It Out - Wilmot e Sam
Wilmot & Sam, dupla dinâmica!

O novo título vêm embrulhado numa embalagem cottagecore de extrema casualidade, sem relógios tique-taqueando, funcionários gritando por pedidos ou um chefe que te humilha e desumaniza enquanto exige uma performance cada vez maior, até te ver quebrar. A casa de Wilmot traz uma realidade acalentadora, como se sua alma fosse posta pra relaxar numa rede, tomando chá, aguando samambaias e comendo torta de maçã ao som de bossa nova (ou ouvindo as trilhas sonoras da Nintendo, o que você achar mais gostoso).

Cada ação, cada efeito sonoro, cada flash visual, tudo tão delicado, tudo tão gostosinho.

+Leia também: Unpacking guarda mais nas caixas do que você pensa – Recomendação

Sem sombra de dúvida, o maior potencial aqui é que ambos os jogos da Hollow Ponds trabalham com absurda maestria o conceito de estímulos subjetivos: a semiose de cada objeto, dos produtos no armazém do primeiro jogo às peças de quebra-cabeça do segundo, sempre meticulosamente desenhados para… ironicamente, confundir o jogador. Semelhanças e diferenças, proximidade contextual; muito do que é apresentado simplesmente não faz sentido para além do significado que nós mesmos somos forçados a atribuir às imagens, dando a elas o nosso próprio sentido inventado.

Você não recebe nem os produtos do armazém e nem as peças do quebra-cabeça em ordem ou quantidade predeterminados; muito pelo contrário, por vezes poderá receber peças de um, dois ou até três quebra-cabeças diferentes ao mesmo tempo, e vai precisar quebrar sua cabeça pra entender qual-peça-se-encaixa-aonde. Isso nem sempre é um problema, mas terão temporadas com temáticas tão específicas, esquemas de cores tão parecidos, formas e traços tão semelhantes, que o jogo eventualmente pode apresentar momentos de verdadeiro desafio. Isso sem contar que a confusão é potencializada pelas “peças sem forma” — isto é, não são quebra-cabeças com encaixes óbvios e bonitinhos; todos eles são igualmente de corpo quadrangular, com bordas indefinidas, o que torna seus encaixes enigmáticos e incentivam o jogador a tomar seu tempo analisando cada detalhe de cada artes ao invés de seguir a clássica estratégia de começar pelas bordas (já que, bem, não existem bordas se as peças não tem moldes).

Wilmot Works It Out - puzzle em processo
Montagem em processo ™

O jogo pode, claro, continuar trabalhando em suas imperfeições, em particular nivelando a experiência de decorar sua casa (onde achei os controles confusos), para além de talvez oferecer um sistema de dicas pras temporadas de quebra-cabeças com artes bem mais difíceis (a curva de dificuldade variou um pouco demais em quebra-cabeças específicos, mas nada muito absurdo).

Organizo e organizo até nada sobrar

Wilmot Works It Out - Sam cansadona
Fotos reais de mim rushando esse jogo madrugada atrás de madrugada.

Se a culpa é ou não é do Wilmot de alimentar minha psicopatológica tendência de buscar um significado maior em tudo, não é questão para se discutir hoje. A verdade é que descobri Wilmot’s Warehouse por acidente, um daqueles títulos que já entraram várias vezes na rotação gratuita da Epic Games Store, me chamando a atenção pela arte convidativa, coloridinha e simplista e entregando um pratinho cheio para expectativas razoavelmente baixas (e a preço zero). Wilmot Works It Out foi também mera coincidência, sendo anunciado poucas semanas depois de eu zerar o primeiro, prometendo uma estética e um desafio com vibes nostálgicas e ao mesmo tempo refrescantes.

Meu tempo compartilhado ao lado de Wilmot foi delicioso, cheio de reflexões e pensamentos, mas que, no fim das contas, apenas saíam da cabeça para flutuar tranquilamente como nuvens. Esses jogos me trouxeram acolhimento, paz, um tempinho dedicado ao prazer de só organizar as coisas, nada muito além.

“Espera… esses quebra-cabeças preveem o futuro? Parece que sim. E talvez isso signifique que a obsessão de organização do Wilmot não seja apenas fruto da loucura. Ou talvez seja. Talvez se você olhar bem no fundo, consiga descobrir onde as coisas apropriadas se encaixam em seus lugares apropriados.”

Se você não veio pela crise existencial que eu tive, mas só pra saber se ambos valem a pena: sim. Muito. Um jogo não depende do outro: o primeiro promove um desafio gostosinho e divertido e o segundo é bem mais relaxante e despreocupado, mas ambos são deliciosos e muito satisfatórios dentro de seus próprios méritos.

Uma cópia gratuita de Wilmot Works It Out para PC foi concedida para análise ao Recanto do Dragão.