Below the Crown — a reinvenção do gâmbito | Análise

Below the Crown — a reinvenção do gâmbito | Análise

A vida é um tecido trançado com fios de desentendimentos constantes. Desentendimentos sobre os outros, desentendimentos sobre nós mesmos. Quando escolhemos abraçar ou contrapor regras, crenças e percepções, sejam elas impostas ou adquiridas, nossos rumos mudam de direção; quando escolhemos escutar opiniões subversivas, abrimos janelas para desconstruir ideias vigentes. Margens pra novas tomarem espaço.

Nunca me considerei uma pessoa sangue-fria e calculista o suficiente pra me arriscar em “jogos de estratégia”, dos RTS aos jogos de carta como um todo. Mas os ventos da vida me mostraram que há sim alguns territórios a serem explorados, até mesmo por mim, apesar da minha resistência. É como Jeff Warren comenta sobre as rejeições de seus colegas a começar a aprender meditação: muitas vezes, sofremos com o que chama de “falácia da singularidade”, onde acreditamos que somos casos especiais de pessoas particularmente incapazes de fazer ou conquistar coisas específicas na vida… como no meu exemplo: acreditava ser incapaz de aprender xadrez.

Foi a partir da minha experimentação com o minigame “21” de Resident Evil 7: Banned Footage Vol. 2, que comecei a entender um pouco do apelo desses jogos de estratégia. Não jogando o blackjack original, jogo de cassino que inspirou a expansão de terror, mas sim através do minigame que subverte completamente o escopo das regras e possibilidades do original. Uma base de jogo de azar e blefe, mais que qualquer outra coisa, que foi então transformado num título de apostas cheio de twists e furos de lógica mirabolantes, absurdos do ponto de vista de um design “tradicional”.

A filosofia de 21 em RE7 é a seguinte: além de apostarmos nas probabilidades, buscando nos aproximar ao máximo da soma de cartas equivalente ao valor 21, há a introdução dos “trunfos“, tags que concedem poderes especiais (pense nos itens consumíveis de Buckshot Roulette, por exemplo). Podemos causar dano extra ao vencer a rodada, removendo mais dedos do inimigo de uma vez; ou talvez pegar a melhor carta disponível da pilha para nos aproximarmos de 21 sem estourar o limite; ou quem sabe mudar o valor-objetivo da rodada, de 21 para 24? Que tal 27? E se fosse 100?!! E por aí vai.

São jogos de premissas bestas, mas profundidades telescópicas como essas, que começaram a me atrair para o mundo dos jogos de estratégia baseada em probabilidades e estatísticas. Como explicitei anteriormente, não me considero uma pessoa do público-alvo que aprecia racionalização lógica ao extremo, mas esses jogos que subvertem, brincam com nossas expectativas, mesmo assim me agarraram ao gênero. Jogos como o hit Balatro, que bombou por distorcer-contorcer-retorcer as regras do Poker, ou o subestimado King of the Bridge, um sensacional título de “xadrez de goblin” com um livro de regras absurdo. Por exemplo: você pode mover a Rainha do inimigo à sua vontade, ou tirar seu Bispo do tabuleiro porque ele “trabalha fora do reino”, ou até pegar um pato do laguinho e colocar ele entre as peças. Insano.

Below the Crown é o mais novo contestante que chega à indústria com a proposta de subverter um jogo clássico já consolidado no imaginário popular. O estúdio de Duskers e A Virus Named Tom traz ao mundo um novo “Xadrez Roguelike”, onde o protagonista, um Mago, é enviado às masmorras do Castelo para encontrar tesouros escondidos por ordem do Imperador. Junto a ele será enviada uma equipe de exploradores, incluindo Príncipes, Rainhas, Bispos, Cavalos e Torres.

Dizem por aí que “se algo não está quebrado, não tente consertar”. O xadrez existe de diversas formas há quase 1500 anos, sem nenhuma bola de fogo ou masmorra inclusa, e é bem provável que você já o conheça.

A Misfits Attic diz: “o xadrez não está quebrado, mas e se o transformássemos num laboratório de química e deixássemos as pessoas enlouquecerem?”. E assim nasceu Below the Crown.

Below the Crown - O Imperador lhe envia às Masmorras
“O Imperador demanda que você vá mais à fundo. Ele parece ter certeza de que há tesouros.”

A cada rodada, você é apresentado a um desafio novo gerado proceduralmente: tabuleiro diferente com formatos pré-selecionados e perigos ambientais aleatórios; inimigos com poderes especiais; ladrilhos com dinheiro (que pode ser gasto com Upgrades de peças, Feitiços consumíveis e Habilidades Passivas ao seu feiticeiro) e Tokens de Desfazer a serem coletados.

Estes últimos servem como salvaguarda ao jogador, pois o permitem voltar uma jogada atrás para corrigir erros potencialmente fatais. Pra completar, cada tabuleiro tem um temporizador de jogadas, e eventualmente forçará movimentos arriscados ao crescer um cerco de ladrilhos de lava. Enquanto isso, os Feitiços, Habilidades e Upgrades de peças são bastante diversificados, incluindo poderes de congelar peças inimigas, invocar aliados mesmo em áreas intransponíveis ao seu Rei, carregar mais Feitiços simultaneamente, poder se movimentar de forma não-ortodoxa para peças específicas e muito mais.

Na mesma moeda em que acredito que algumas dessas opções precisem ser retrabalhadas e rebalanceadas, fico impressionado com a profundidade estratégica que o esqueleto do jogo, no momento ainda em Early Access, acaba oferecendo, mesmo quando temos pouco acesso à tais recursos. Cada escolha faz uma diferença significativa na forma como o jogador precisa abordar cada movimento, cada jogada, cada decisão tomada, considerando o tamanho de seu arsenal e a complexidade de cada tabuleiro.

  • Below the Crown - seleção de Feitiços e Upgrades
  • Below the Crown - Habilidades do Mago
  • Below the Crown - Upgrades de Peças

A natureza roguelike do jogo também cruza o território da dificuldade de forma similar ao sistema de Stakes de Balatro: à medida que você derrota o chefe do tabuleiro final, consegue Selos Mágicos que podem ser utilizados para elevar a dificuldade do jogo em uma de quatro categorias – diminuir o tamanho da sua equipe, aumentar a quantidade de perigos ambientais, “melhorar a inteligência” e “melhorar a força” dos inimigos (seja lá o que isso significa), além de adicionar mais um “Ato” à dungeon, aumentando a quantia de tabuleiros enfrentados e diminuindo a quantia máxima de Tokens de Desfazer carregados simultaneamente.

Diferentemente de King of the Bridge, que possui uma pegada muito mais cômica e casual em sua narrativa idiota e seu design absurdista, Below the Crown demonstra seu afeto aos dungeon crawlers através da apresentação dramática e quase monocromática, desprovida de floreios visuais agradáveis ou um “game juice” explosivo, suculento e viciante (na verdade, por enquanto temos uma versão muito mais crua e menos viva do jogo comparado ao trailer lá de cima). Aqui apenas enxergamos vultos e silhuetas saltitando, peças voando entre muco e lava, rebocos decadentes, vegetação hostil e olhos misteriosos à espreita. A atmosfera decrépita alimenta a paranoia e a opressão que sentimos no papel de servir ao Rei em busca das supostas riquezas, sacrificando nossas vidas por ordens da nobreza.

Por fim, o jogo também aparenta possuir uma metanarrativa secreta que envolve avaliações psicológicas misteriosas em momentos aleatórios, perguntando-lhe sobre seus sentimentos e percepções da vida, sentimentos de solidão, ansiedade e proximidade pessoal com as peças, apesar de que ainda não fui capaz (e nem sei se irei, visto que é um roguelike ultra longo) de desvendar no que isso culmina. De acordo com o próprio estúdio, é possível que a história não seja levada super longe pelo time ao nível de algo como Inscryption, por exemplo.

Além das diferenças do xadrez comum aqui apresentadas — não se engane, elas foram suficientes pra me prender por quase dez horas antes de decidir escrever a análise, mesmo como um jogo em Early Access super limitado — Below the Crown não tem muitos segredos. O que vemos nos trailers e descrições não oculta muito em particular do que a experiência tem a oferecer, até onde pude descobrir. Infelizmente, algumas funções presentes nos trailers (como Feitiços e Upgrades) sequer foram implementadas ainda, ou foram removidas por não funcionarem da forma intencional, de acordo com as dezenas de micro-patch-notes publicados.

Alguém como eu, que não costumo sentir conforto em jogos de estratégia competitivos (como o próprio “xadrez normal”), certamente consigo me divertir bastante em títulos como esse. Seu valor não reside em uma hiper-profundidade narrativa oculta através de twists e puzzles secretos, como nos jogos de Daniel Mullins (Inscryption, Pony Island), mas sim numa recriação simplesmente interessante e ousada de clássicos como o Xadrez de Below the Crown.

Não é apenas chegando ao fim das masmorras que você encontrará o ouro; às vezes, o ouro é a própria jornada em si. Não subestime o poder de uma experiência, por mais simples que possa parecer. Não se limite a crenças irracionais criadas por você ou absorvidas pelas opiniões dos outros. Você pode se divertir mais do que espera com a mais simples das premissas.

Below the Crown é um exemplo disso. Gostei muito dele, por mais que se apresente ainda de forma crua e relativamente desbalanceada; vai continuar no meu radar por algum tempo, visto que é o tipo de jogo que gosto de revisitar de vez em quando.

Uma cópia de Below the Crown para PC foi concedida gratuitamente para análise no Recanto do Dragão.