Call of Duty Modern Warfare II – não confunda com Call of Duty 2, Call of Duty Modern Warfare 2 ou Call of Duty Modern Warfare 2 Remastered – é o 19º jogo da franquia principal de jogos de tiro com temática militar publicados pela Activision Blizzard e desenvolvidos por…uh… times diferentes, dependendo de cada um dos lançamentos anuais. Esse ano foi a vez da Infinity Ward, o estúdio que está com a franquia desde seu primeiro jogo, retomar as rédeas.
Mas você já sabe de tudo isso e de muitas outras trivias sobre estes que constituem uma das séries de jogos mais vendidas da história. Você sabe das campanhas anuais acopladas a cada um dos jogos que uma quantia considerável de fãs dispensa ao pagar os agora R$ 320 (ou US$ 70) para participar do grind multiplayer de todo ano, e também do quanto a falta de uma campanha em Black Ops 4 fez a Activision pensar duas vezes: tanto sobre a importância de um burburinho pré-lançamento da mídia sobre as cenas chocantes indispensáveis dos jogos desde o escândalo de “No Russian” no MW2 de 2009, quanto no estado e legado da franquia.
E só foram daí pra pior. Considerando que sempre existem três jogos com orçamentos na casa das centenas de milhões sendo desenvolvidos simultaneamente, um em cada estúdio e para cada ano, a opinião pública e crítica sobre determinadas campanhas demoram para serem internalizadas pelos times de desenvolvimento sob o guarda chuva da Activision, e por consequência recebemos narrativas cada vez mais passivamente violentas e imperialistas.
Fazem três anos desde as missões “Clean House” e “Old Comrades” do primeiro reboot de Modern Warfare, e a Infinity Ward aparentemente não aprendeu nada. Muito pelo contrário, parece que a violência constante às minorias “justificada” pela moralidade cinza dos protagonistas só se tornou ainda mais internalizada pela franquia.
Nota: Esta análise apenas cobre a CAMPANHA de Call of Duty MWII 2022.
Eu cheguei à campanha de MWII esperando ao menos algumas melhorias, considerando que Black Ops: Cold War teve uma história maravilhosa cheia de finais, mecânicas devidamente exploradas e uma surpreendente crítica aos EUA, CIA, dentre outros comentários sobre o dano dos seus experimentos indescritívelmente cruéis realizados em programas como o MKULTRA. Ela havia sido desenvolvida pela Raven Software, famosa no passado por franquias como Hexen, Heretic e Star Wars: Jedi Knight. Vou admitir que sou meio fanboy deles, mas a qualidade de Cold War ainda assim foi uma surpresa para mim.
Mas agora estamos falando de MWII, onde a própria Infinity Ward trabalhou na campanha. Vou me manter breve porque no fundo no fundo, ele não tem tantas ideias para discutir quanto parece.
Em primeiro lugar, temos seu legado. Como parte de um reboot da série Modern Warfare, ele tem muito mais paralelos diretos com os conceitos dos outros que o jogo de 2019, mas com muitas diferenças de direção.
Em primeiro lugar, o Gaz ainda está vivo e na ativa. Ele morre sem muita cerimônia no MW 2007, mas aqui volta para representar a imagem do “bom soldado”. Ele não questiona nenhuma ordem de seu superior direto (Capitão Price), e fica quieto por boa parte das cutscenes e diálogos. Daí temos mais alguns soldados que controlamos por pequenas durações em missões específicas como de costume; e finalmente Soap, um dos soldados mais amados da trilogia original. Ele não só se expressa bastante durante as missões como também é alvo de algumas das mais memoráveis do jogo, “Alone”. Nela, ele combate furtivamente enquanto ferido para escapar de uma emboscada. De resto temos o Ghost, que é mais uma ideia do que um personagem real e não faz quase nada além de ficar bonito no marketing e enfiar novos conceitos mal explorados na narrativa, e o Capitão Price, que é só o mesmo de sempre.
Claro, existem vários outros personagens importantes que você controla, mas aqui estou focando nos presentes da trilogia original. Eles são quase figuras míticas à essa altura do campeonato. Sobrevivem tudo juntos, fazendo o que é necessário para cumprir uma missão, mas não tem medo de quebrar algumas (ou várias) regras de engajamento para chegar lá, como diz o próprio Gaz em uma das frases miscelâneas que aparecem quando você morre (mas com palavras mais vagas).
A primeira situação repugnante na campanha acontece logo após começar, quando você controla Ghost usando um míssel para matar o general Iraniano “Ghorbrani”, que é uma óbvia referência ao assassinato ilegal de Qasem Soleimani por ordens de Donald Trump em 2020 (o que não foi aprovado nem pelo congresso Americano). A cena dura apenas alguns minutos e é apresentada de maneira completamente seca, uma cold open sem relação alguma com o resto da história.
Pouco depois temos um segmento de “Kill or Capture”, a primeira missão real do jogo, onde você deve matar uma mulher inocente que puxa uma arma do bolso de seu marido morto pelo seu esquadrão por medo. Nenhum dos personagens faz comentário algum à essa cena. Já na missão “Borderline”, você mata membros do cartel Mexicano (que tomam o lugar de uma facção criminosa carioca do MW2 original) enquanto tentam cruzar a fronteira entre o México e os Estados Unidos, aquela mesma construída sob ordens de Trump. Eles estão escoltando o terrorista Hassan, que é o antagonista principal do título.
Além das claras implicações políticas conservadoras que tentam justificar matar imigrantes ilegais na divisa dos Estados Unidos, você e seu parceiro passam o resto da missão apontando armas e potencialmente matando civis inocentes no Texas. Lembrando, eles estão claramente aterrorizados com a presença de homens mascarados sem distintivos apontando armas para eles na calada da noite.
Uma dessas interações é particularmente difícil de digerir, onde dois homens pegam suas armas legalmente adquiridas para protegerem a esposa de um deles, que corre de medo do seu parceiro no processo. É possível “desescalar” a situação apontando sua arma rápido o suficiente na cara dos dois, mas, não sabendo disso, no fim a situação provavelmente ia acarretar com morte dos dois pelas suas mãos.
Existem tantas cenas horríveis assim (como quando você destrói uma cidade inteira mexicana com mísseis, incluindo uma escola de ensino infantil[!]) que é difícil encaixar todas elas sem eu deprimir a mim mesmo e a você no processo. Dito isso, apresentarei apenas mais um exemplo, pois é um mais sutil que os outros que me ajuda a discutir o tipo de violência representada em MWII 2022.
Na missão “Recon by Fire”, que também serve como homenagem direta à “All Ghillied Up” de MW (2007), Gaz e Price executam uma missão ilegal e não aprovada por absolutamente ninguém do exército para descobrir o possível local de mísseis sendo traficados. Nada é descoberto, o local está livre de mísseis, e a agente da CIA que orquestrou a missão é capturada pelo cartel Mexicano. Ou seja, uma missão sem nenhum precedente ou motivo provado para ser executada dá errado.
Bom, é fácil botar a culpa nos três que se envolveram e deixar que a captura da agente fale por si própria, mas não. A próxima missão, “Violence and Timing”, envolve o resgate da agente da CIA de maneira oficial. Eles estão encobertando o próprio crime (o que é muito irônico se você considerar o resto da história). Durante os eventos da missão, seu esquadrão segue terroristas iranianos pulando de carro em carro numa estrada movimentada com civis enquanto a agente capturada é transportada para uma prisão em um comboio. Se você bater no carro de um civíl ou pasmem, acabar atirando em um sem querer, ganha um game over imediato. Isso não impediu os escritores do jogo de fazer os terroristas tacarem minas no meio da estrada, matando qualquer civil do próprio país deles no meio tempo. É evidente que o próprio teor da missão como executada pela Task Force 141 é extremamente irresponsável e repugante, mas o roteiro simplesmente não reconhece isso e a trata como qualquer outro ato heróico.
O que quero dizer com isso é que a violência causada em prol dos EUA em MWII 2022 é egoísta e apresentada de maneira fria. Para você ter uma ideia, essa não é a única vez que seu esquadrão abre fogo em um lugar público na frente de civis. Por mais que aqui não tenhamos uma missão tão narrativamente pesada e chocante quanto de costume para um Call of Duty pós-MW2 (2009), a violência é normalizada e justificada para um “bem maior”.
A maneira com que o jogo apresenta as cenas exalta a visão do soldado americano como um herói disposto à qualquer coisa pelo… “bem maior”, como acabei de citar. Os civis sacrificados no caminho são contextualizados diretamente como culpa dos inimigos ideológicos dos EUA, que forçaram situações como estas a acontecerem e consequentemente sujar as mãos dos soldados americanos e seus aliados, que são despidos de agência.
Spoilers pesados de Call of Duty MWII (2022) apenas nos próximos dois parágrafos
Ah, antes que você se pergunte, não, “No Russian” não está presente neste jogo, e nem paralelos à ela. Infelizmente, ela vai estar no próximo, o que é confirmado logo na última cutscene. Mas pensa aqui comigo. Os caras fizeram um teaser para a representação dolorosamente construída por animadores e designers de um assassinato em massa. Um teaser. Para a representação de um assassinato em massa cometido pelo jogador.
Mas nem é só isso que eu queria falar de spoilers, pois tem algo mais que se relaciona com a repentina mudança de direção da campanha. Enquanto em boa parte dela seus inimigos principais são terroristas iranianos e um cartel mexicano, o plot twist da traição do Tenente-General Shepherd vem como um paralelo ao MW2 original, mesmo que de maneira completamente diferente. Aqui, ele contrata a Shadow Company (que também estava presente no MW 2019) para encobertar as consequências de um transporte de mísseis mal-planejado que acabou com o roubo de três deles por ultranacionalistas russos. A cobertura é descoberta pela Task Force 141, que então é caçada por Phillip Graves, um dos líderes da Shadow Company. Ou seja, todo o resto da história vai pro saco por causa disso, e ainda faz dos membros da 141 completos hipócritas por terem encoberto sua própria missão na Espanha. O foco faz um giro 180º para essa traição que, vou ser honesto, é bem mais plausível que a do jogo original, mesmo que ainda pode ser prevista imediatamente por um jogador familiar com MW2 2009 só de ter o Shepherd no meio. O problema é que a história covardemente contorna sua própria violência à minorias lotada de paralelos com a vida real para lidar com uma traição irrealista de filme C de ação militar.
Acabaram os spoilers.
Não vamos nos rebaixar à linha de pensamento de que CoD tem alguma pretensão de levar sua representação da guerra a sério. Eles apenas demonstram a visão normalizada da violência de seus próprios roteiristas e a provável mão da Activision Blizzard em fazer ele apelar para cenas consideradas icônicas da trilogia original de Modern Warfare. Para isso, vamos rápidamente falar sobre o design de MWII 2022.
As missões vão de popcorn shooting genéricas (que eu provavelmente nunca vou enjoar de jogar) até algumas completamente insanas desde suas premissas. Não me leve a mal, eu realmente acredito que experimentação com a fórmula de CoD é uma das coisas que mais me mantém atrelado à franquia em pleno 2022 — vide várias das missões em Black Ops: Cold War como “Brick In The Wall” e “Break On Through” — mas eu não suporto a maneira em que MWII lidou com as suas. A já mencionada como mal exemplo na narrativa “Violence and Timing” envolve alguns minutos incríveis de tiroteio de ponta cabeça enquanto suspendido por um fio num helicóptero antes de… virar um híbrido entre corrida e ação? Você vai tomando carros uns atrás dos outros enquanto avança no comboio por uns ~15 minutos. Eu posso te assegurar que não existe complexidade suficiente nessa missão pra durar tudo isso. Tudo que você faz é sair um pouco da janela para matar uns três inimigos por carro e seguir em frente, ocasionalmente desviando de minas ou balas de APC.
E as coisas ficam ainda mais bizarras em missões como “Alone”; por mais que ela seja ótima como ponto de respiro na história, é a pior missão de stealth que eu já joguei num CoD. O objetivo é contornar levas de inimigos em um mapa semi aberto com armadilhas e ferramentas improvisadas que você faz por meio de um sistema simples de crafting. As armas que você vai encontrar vêm com poucas balas e sem um silenciador, e ainda assim só poderão ser usadas após o Soap dar um jeito no braço machucado dele. Até aí, tudo bem. Sou muito fã de jogos de stealth, mas a execução dos sistemas nessa missão é lamentosa. Eles seguem aquela regra em que se um inimigo te ver, todo o resto na área instantaneamente começa a te meter bala. Nas dificuldades mais elevadas, isso se traduz na sua morte quase instantânea. Além disso, os inimigos não possuem um nível intermediário de detecção onde aumentam a suspeita sem saber onde você está. Ou você está completamente escondido, ou é caçado incessantemente. É uma experiência bem quebrada e repetida mais uma vez ao fim da campanha, mas por uma duração menor.
Agora, e as missões mais tradicionais? As próximas ao início da campanha são absolutamente monótonas, e só começam a ficar realmente interessantes em “Cartel Protection”, que se passa em um cenário Mexicano de tirar o fôlego em uma área evacuada de civis, o que hoje em dia chega como uma surpresa agradável em meio às outras situações lotadas de mortes de inocentes retratadas sem um pingo de tato no resto do jogo.
Eu até gostaria das missões mais lowkey sem muitos encontros com inimigos como “Tradecraft”, mas elas duram pouco e apenas apresentam diálogos de filme C de ação ao invés de trazer momentos de conexão entre os personagens. São oportunidades desperdiçadas, e acabam parecendo só vinhetas em comparação com o resto das missões.
Por fim, temos um tema. Tipo, um tema real que é refletido durante todo o jogo! Realmente impressionante para uma obra tão despreocupada com si própria, não? Esse tema é o dos Ghosts. Como você com certeza viu em toda peça de marketing nesse jogo, a Activision resolveu mais uma vez colocar os holofotes da divulgação na máscara icônica do Ghost do MW2 original. Eu realmente acho que eles se arrependem de terem deixado os roteiristas da Infinity Ward na época matarem ele logo em sua primeira aparição, o suficiente para basearem um jogo inteiro na ideia de sua máscara em 2013. Em seu retorno, no MWII 2022, ele quase não fala nada e no geral não possui nenhuma personalidade além de seu receio em mostrar o próprio rosto (e a representação do “bom soldado”). Mesmo assim, uma grande parte das missões no jogo envolve pedaços de stealth e um sentimento mais guerrilha nas estratégias que a Task Force 141 utiliza em suas missões. Isso é elevado pelos eventos (citados na seção de spoilers) que os alienam do resto do exército na segunda metade da campanha. A história acaba se tornando um pastiche de múltiplas cenas e ideias importantes apresentadas em sua antiga era, mesmo que alteradas para encaixar com o conceito de guerra moderna atual. Bom.
Isso cria um fio que conecta as missões entre si mesmas sob o mesmo mantra, mesmo nas mais inconsequentes da história. Conforme você avança, mais e mais opções de stealth ficam disponíveis apenas para serem descartadas após apenas alguns minutos, algo que só um jogo AAA desse nível de orçamento consegue bancar. Infelizmente, como disse agora há pouco, o stealth em si é mal executado e na maior parte das vezes envolve fazer um assassinato combinado ou com o Ghost ou com o Price. Sabe, aqueles em que você espera alguns segundos para matar dois inimigos ao mesmo tempo e não ser descoberto. Depois de fazer isso 15x, você provavelmente também vai enjoar.
A culminação do tema dos Ghosts vem mais nas últimas fases (que não irei spoilar) e até acaba com uma missão final que lembra bastante uma das primeiras de Call of Duty: Ghosts, com rapel e tudo. Me pegou de surpresa. Mas, algumas missões antes, temos a já citada — também como um mal exemplo narrativo — “Recon and Timing”. Ela começa como uma homenagem à “All Ghillied Up” em uma linda representação da costa Espanhola digna do cenário de Dear Esther mas se perde em uma estrutura bizarra que mais se assemelha à formula de postos avançados que a Ubisoft popularizou com os últimos jogos de Far Cry e Ghost Recon. Ela é uma das missões mais longas do jogo, e mais de sua metade é gasta com você tomando alguns depósitos de maneira aberta usando suas armas e ferramentas na mochila.
Por mais que isso tenha me intrigado inicialmente, e por mais que eu tenha amado poder correr por quanto tempo quisesse naquele cenário enorme e lindo, os encontros com inimigos lá são horríveis. A IA desse jogo não é feita para locais abertos assim. Quando você taca gás lacrimogênio num tubo de ar, eles saem do depósito que nem formiguinhas semi-imóveis, completamente confusos e espalhados por aí sem qualquer estratégia ou lógica. Chega até a ser engraçado ver um jogo AAA com inimigos tão perdidos assim em comparação com o polimento do resto da campanha.
Então… eu não tive uma experiência lá muito boa nem ao jogar nem ao escrever minha análise de MWII 2022. Não importa quantos anos se passem, eu sempre vou ter um apreço enorme pela fórmula desses jogos. Tipo, isso é uma análise só da campanha, mas eu ainda irei jogar seu multiplayer por pura diversão depois de terminar aqui. Eu não escolhi escrever sobre ele por ódio à franquia, mas me desaponto quando vejo que minha parte favorita deles, a campanha, continua deslizando tanto. Ainda mais depois de uma ótima como a de Black Ops: Cold War. Não serei ingênuo e fingir que de alguma maneira a maioria dos CoDs é subversiva e na real contra o imperialismo americano, mas se até pela métrica da própria franquia este foi além de maneira muito mais insidiosa, então temos um problema que vai obscurecer qualquer outra parte de sua existência para mim.
Uma cópia gratuita de Call of Duty MWII 2022 foi concedida pela Activision Blizzard para análise no Recanto do Dragão.