Clock Tower: Rewind — um mundo sem consequências | Análise

Clock Tower: Rewind — um mundo sem consequências | Análise

Tudo nessa vida é efêmero: franquias de jogos vem e vão por fracassos comerciais, membros chaves saem do desenvolvimento, mudanças de licenças ficam perdidas no limbo e esses fatos são assustadores para a comunidade que tenta preservar a história desse tipo de mídia. Porém, de tempos em tempos, a indústria parece ouvir os anseios desse grupo e aí temos relançamentos ou meios de acessibilidade para títulos esquecidos. O título da vez é Clock Tower: Rewind, a “primeira vinda” deste clássico do terror tão importante para o ocidente.


Clock Tower

Clock Tower é um jogo de terror point and click lançado em 1985 para o Super Famicom exclusivamente no Japão pela Human Entertainment. O jogo acompanha a órfã Jennifer Simpson que, junta a outras três garotas (Anne, Laura e Lote) é adotada pela riquíssima e igualmente misteriosíssima família Barrows. Ao chegarem na mansão da família, a responsável pelo processo de adoção, Mary, se retira para ir buscar o pai adotivo que até então não tinha sido introduzido às garotas. Percebendo a demorada ausência de Mary, Jennifer decide ir atrás da mesma e se separa das outras meninas. Ao se distanciar do grupo, Jennifer ouve um grito e volta imediatamente, encontrando ninguém mais na sala onde todos estavam. Jennifer então precisa se aventurar pela extensa mansão em busca de suas irmãs e evitando quaisquer perigos que possam se esconder nas sombras deste recluso lar.

Clock Tower é um dos principais responsáveis por pavimentar a estrada que levou jogos de terror a serem o que conhecemos hoje em dia, por isso é até surpreendente ver que certas coisas não envelheceram tão mal quanto poderiam. A gameplay consiste em explorar a mansão com a indefesa Jennifer, coletando itens que podem ajudar ela a resolver problemas que impedem seu progresso e te levam cada vez mais perto de entender o que está acontecendo nessa mansão. Porém, o que atrasa a vida de nossa protagonista não é apenas puzzles pelos caminhos. Andado tempo o suficiente pela mansão, Jennifer vai testemunhar alguma de suas irmãs sendo mortas pelo implacável Scissor Man, esse sim vai se tornar a maior pedra no caminho de Jennifer. 

Como uma garota qualquer, Jennifer não tem muitos meios de se defender perante as enormes tesouras de jardineiro que a perseguem incansavelmente. Seus únicos meios de sobrevivência são pontos estratégicos da casa no qual ela pode se esconder para despistar Scissor Man temporariamente. Os locais disponíveis para se esconder são espalhados e normalmente requerem que você resolva algum “puzzle” anteriormente para poder usufruir deles. O primeiro, por exemplo é um quarto com um papagaio que você precisa prender para que ele não te dedure caso o Scissor Man te persiga até lá, outros envolvem abrir passagens para poder se esconder ou justamente cortar passagens para que o Scissor Man não possa continuar atrás de você. Caso o seu perseguidor te alcance antes de você conseguir encontrar um lugar para despistá-lo, tudo vai depender do nível de pânico da Jennifer para definir se um ataque pode ou não ser fatal.

O medidor de pânico é realmente a única coisa que pode ser considerada uma mecânica tradicional nesse jogo, ele serve como uma espécie de estamina física e mental de Jennifer, se agravando conforme ela se depara com os horrores da casa ou quanto mais ela se esforça correndo por aí. O estado atual de pânico pode ser medido pelo retrato de Jennifer sempre presente no canto inferior esquerdo da tela. Ao ser pega por Scissor man, dependendo do nível de pânico, Jeniffer pode ou não ser capaz de medir forças contra seu perseguidor e o incapacitar temporariamente.

Ainda sinto que a mecânica de pânico funciona melhor em teoria do que na prática, já que além de seu funcionamento ser muitas vezes inconsistente (indo de 100 à 0 quase que instantaneamente), o fato dela também punir o jogador por querer se movimentar mais rápido pelo mapa acaba tornando a exploração frustrante. É compreensível que essa decisão tenha sido tomada para dar mais enfoque para a atmosfera do jogo, mas isso acaba tornando o pacing uma espécie de ame ou odeie.

Seguindo nas linhas de atmosfera, isso é uma coisa que Clock Tower excede horrores. A ambientação, além de se apresentar usando uma pixel art jubilosa, também usufrui de um desenho de som quase que completamente diegético. Pela esmagadora maioria do jogo você vai ter que lidar com o ensurdecedor silêncio da mansão que é apenas interrompido pelos seus próprios passos, os objetos que você interage e o que pode ou não estar se aproximando pelos cantos escuros da mansão.

Clock Tower também é um jogo muito interessante pelo seu fator de rejogabilidade, levando em conta que foi um jogo lançado em 1995 é surpreendente como os desenvolvedores se esforçaram para criar uma experiência que pudesse ser revisitada múltiplas vezes. O jogo não somente conta com um total de nove finais como também apresenta resoluções diferentes para os mesmos puzzles e caminhos alternativos que podem ser tomados em cada novo save. A tela de título até contém com uma opção de “Quick Start” para poder pular a introdução da história e ir direto para a jogatina.

Como dito anteriormente, Clock Tower é um dos principais responsáveis por pavimentar jogos de terror como nós conhecemos hoje e é por uma razão. A obra apresenta muitos conceitos e decisões estéticas que não envelheceram mal e reverberam até hoje em como pensamos em game design para terror. É uma experiência curta, prazerosa e educativa que definitivamente merece ser tida por todo bom fã de terror.


Rebobinando de 2024 à 1995

(Quase) trinta anos após seu lançamento original, Limited Run (em esforços conjuntos com a WayForward e Sunsoft) anuncia Clock Tower: Rewind, uma espécie de relançamento/remaster do jogo original de 1995. Eu fiquei vidrado na época só de ver o nome da WayForward e acabei jogando minhas expectativas lá no teto considerando os trabalhos deles com Ducktales: Remastered e a franquia de Shantae. Na minha cabeça, já tinha sido cristalizada a ideia de que um remake aos moldes desses outros dois gigantes estava a caminho e ia ser um marco pros jogos de terror.

O tempo passou, mais trailers vieram, eu recebi a chave do jogo e o cristalino dessa ideia foi sobrepujado pela realidade deste relançamento, o que tinha a ser experienciado era só Clock Tower com algumas features novas.

Clock Tower: Rewind consiste em ser uma espécie de versão definitiva do jogo, mantendo os gráficos da versão de Super Famicom que são as mais populares dentro da fandom, com as features adicionadas na versão de PSX (save manual, uma sala nova, CGs adicionais e o foreshadowing de um plot point principal do segundo jogo) e algumas mecânicas exclusivas desse novo lançamento em prol de tornar o jogo mais acessível para jogadores da nova geração.

Existem duas mecânicas novas, a de rebobinar que batiza esse relançamento e a mecânica de sentar para recuperar stamina sob comando. O rebobinar permite que você volte até dez segundos de gameplay quando você bem quiser e a de recuperação de stamina permite que Jennifer sente de imediato (o que no original só era possível após ficar parada por um bom tempo) para recuperar estamina muito mais rapidamente.

Clock Tower originalmente já é um jogo com poucas punições, ele autosave a cada sala, não existem decisões que realmente te trancam em uma rota horrorosa e ainda por cima é super de boa de recomeçar caso você sinta a necessidade. Com a adição dessas duas mecânicas ele realmente chega a um estado de zero consequências para toda e qualquer ação que você toma. Entrou na sala errada onde não tem um local para se esconder? Sem problemas! Só rebobinar para antes de entrar nela. Não quer sequer lidar com uma perseguição do Scissor Man? Só rebobinar para antes dele aparecer e então sair da sala. Não existem limites para falta de consequências que essa nova versão pode te impor.

Isso sem contar que as conquistas da Steam acabam sendo peculiares em como elas influenciam a sua primeira run. Aconteceu duas vezes delas acabarem me induzindo a coisas que eu não necessariamente entendia e me levarem ao erro ou ao acerto sem mérito. No primeiro caso, eu usei um item que não devia em um puzzle e disparou uma conquista falando que eu o tinha resolvido, daí fiquei insistindo na solução errada até me tocar que outro item era a solução correta. No segundo caso eu simplesmente entrei numa sala que tinha um puzzle que eu não tinha resolvido até então e o jogo simplesmente me deu outra conquista falando que eu tinha resolvido ele, então eu tentei e dessa vez ele se resolveu sem eu nem sequer entender o que me levou a solucioná-lo. 

Apesar de criar uma “experiência definitiva” para o jogo, sinto que essas adições tornam Rewind uma experiência aguada, até porque mesmo jogando no modo “Clássico” onde o jogo diz que não haverão essas adições de acessibilidade, a feature do Rewind ainda está lá para evitar que você lide com as consequências de suas ações. Durante todas minhas runs em ambos os modos eu sempre sentia que só estava escolhendo entre abrir no RetroArch uma hackrom com ajustes que algum fã fez para deixar a experiência mais palatável ou entre abrir a rom original traduzida.

E tudo isso me leva a um questionamento interessante: por que sequer esse jogo foi feito?

Emulação, preservação de jogos e o que significa tornar um jogo acessível

Mais cedo esse ano, tivemos outro anúncio de uma franquia da Capcom que finalmente estava tendo um jogo querido trazido para o ocidente agora pela primeira vez em inglês! Neste caso foi o Ace Attorney Investigations Collection que trazia o segundo jogo pela primeira vez para o ocidente. Na época, mesmo com o fandom indo à loucura, lembro de ter visto uma pessoa que admiro muito fazendo o seguinte comentário (e sim, eu estou parafraseando):

Tá gente, entendo que todos estamos felizes com a Collection nova, mas, a gente pode parar de fingir que esse jogo nunca esteve disponível em inglês e de desvalorizar o trabalho de quem se esforçou para tornar esse jogo acessível antes da Capcom?

Durante minha jogatina inteira esse comentário ficava ecoando na minha cabeça, já que boa parte do marketing desse jogo foi feito em cima do “Finalmente estamos trazendo esse clássico que nunca esteve disponível em inglês!”, e assim, isso é um fato, Clock Tower nunca foi trazido oficialmente para o ocidente; mas dizer que essa é a primeira vez que esse jogo se encontra disponível em inglês? Não chega a ser o caso.

Falar sobre traduções de fãs sempre é um ninho de vespas porque, apesar de ser um trabalho muito nobre que permite que obras que nunca estiveram acessíveis fora de seus países de origem possam ser apreciadas mundialmente, existem claramente casos onde isso pode mudar contextos dessas obra e até denegrir a imagem das mesmas (como foi o caso do mangá Chainsaw Man na mão da Nakama Scans ou as ainda mais infames três traduções diferentes bizarríssimas de Cross Channel).

Entretanto, esse nunca foi o caso com Clock Tower, já que ele não só era um jogo extremamente ocidentalizado (sendo praticamente um carta de amor à Phenomena do Dario Argento) como as traduções sempre se esforçaram para manter o tom da obra consistente até com os lançamentos americanos dos jogos posteriores.

Enquanto jogava ficava martelando na minha cabeça?: “Por que esse jogo foi lançado sem nenhuma opção de mudança de controles e configurações limitadas? Por que eu estou jogando o equivalente a um emulador só que um custando 20 doláres? Por que eles não deram um passo a mais para fazer algo realmente novo depois de trinta anos? Por que logo a WayForward lançou algo assim?” e aí me acertou como um raio: isso é tudo que a indústria consegue considerar como acessibilidade a um título antigo atualmente.

Quando você olha pro contexto de 2013 onde Ducktales: Remaster foi lançado por exemplo, ainda estávamos entrando na oitava geração de consoles. A geração anterior não só ainda enxergava retrocompatibilidade como uma regra como também tinha chegado ao pico da mesma através de serviços como Wii Virtual Console e a PSN Store. Mesmo sem conter bibliotecas inteiras de seus consoles anteriores, ainda era possível conseguir jogos não tão famosos por preços acessíveis em uma espécie de “emulação oficial”(mesmo que o PS3 usasse retrocompatibilidade nativa).

Em 2024, ter acesso a jogos de gerações anteriores é um luxo. Ou você se dispõe a participar de serviços de assinatura para ter acesso a uma curadoria limitada do que as empresas entendem que você deve desfrutar da história do console deles, ou você abertamente cede a relançamentos de jogos muitas vezes vendidos à preço de jogos completos (como The Last of Us: Part 1 sendo o remake direto de um relançamento) e às vezes descaradamente usando emulação sem muitos detalhes extras (como Super Mario 3D All-Stars).

Isso se tornou um status-quo quase que irremediável, cada vez menos empresas se importam em tornar esses clássicos acessíveis porque seus públicos são nichados demais para o esforço ser monetariamente viável aos olhos delas. E quando tentamos tomar as rédeas da situação através de meios ainda legais e para casos extremamente específicos, como foi o recente caso da Videogame History Foundation tentando conseguir isenção das leis de copyright para acesso acadêmico a títulos sem meios de distribuição oficiais, somos pisoteados em prol da manutenção da ideia de que jogos devem ser visto apenas como produtos que à serem vendidos e lucrados em cima sem nenhuma espécie de preservação ou estudo que não gere renda direta para os detentores de direitos desses produtos.

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No fim do dia, receber Clock Tower: Rewind com todas suas virtudes e defeitos é só uma reafirmação de como a indústria se comporta e pretende continuar se comportando: Jogando para debaixo do tapete todo e qualquer esforço que pessoas tenham feito em prol da acessibilidade desses títulos e os vendendo como oportunidades únicas em vida de ter um vislumbre desse passado que elas querem engavetar bem longe de você. Collections ainda são uma faca de dois gumes nesse assunto, porque apesar delas trazerem muitas vezes conteúdo de certa forma revisado e com extras relacionados ao jogo (como é o caso de Rewind, trazendo entrevistas sobre o jogo e material gráfico refeito em cutscenes semi-animadas bem bonitas), acabam sendo também medidores de águas das empresas para “se vender a gente considera fazer algo novo” (e que também foi o caso de rewind).

Vendo isso, tudo que nos resta é tentar desfrutar das franquias que podemos através dos métodos que temos, seja apoiando os produtos vendidos em esperança de retornos triunfantes, arquivando eles da forma necessária para que gerações futuras possam usufruir delas, fazendo trabalhos voluntários para que obras possam ser expandidas além de seus idiomas originais, ou, simplesmente escrevendo sobre na expectativa de que isso marque um ponto na história onde todos esses devaneios foram superados e se tornaram preocupações do passado.

Uma cópia gratuita de Clock Tower: Rewind foi concedida pela Wayforward para análise no Recanto do Dragão.

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