Hell Clock — nos sertões a história é outros 500 | Análise

Hell Clock — nos sertões a história é outros 500 | Análise

Nos meus anos de vestibular, eu tive a oportunidade de ter aulas de geopolítica com um professor excelente. Das muitas e muitas coisas que pude aprender, uma frase dele me marcou de maneira até profunda: “A elite brasileira é tosca e imbecil, mas ela não é burra.”. Essa frase não é só um choque barato, é um fato triste saber que por nunca termos conseguido um estado revolucionário bem sucedido, nossa elite é a mesma desde a monarquia, a mesma que conseguiu se manter através de muitos e muitos anos de repressão sistemática e sanguinária. Diante disso, o que sempre nos restou como cidadãos foi entender onde perdemos para não sofrermos constantemente (pelo menos) as mesmas derrotas, e é nesse exercício que o estúdio Rogue Snail nos traz o recém lançado (mas já aclamado) Hell Clock.


Hell Clock é um Action RPG (ARPG) com elementos de progressão de Roguelike e ambientado no pós Massacre de Canudos. Na narrativa acompanhamos o recém acordado Pajeú, uma figura histórica que de fato atuou como guerrilheiro no Massacre de Canudos, que sem memórias encontra uma senhora sendo atacada por soldados da república e instintivamente dá cabo de seus atormentadores. Após salvar a indefesa dona, Pajeú se vê diante da casa de Antônio Conselheiro, outra figura história e fundador do que foi Canudos. Decidido em encontrar o seu mentor e entender o que aconteceu, Pajeú parte em direção aos porões da casa em busca de encontrar conhecidos e sanar suas dúvidas.

Antes de me debruçar sobre as naturezas mecânicas de Hell Clock (que vão ocupar a esmagadora maioria dessa análise) quero falar sobre a escrita e narrativa do mesmo. Esteticamente falando, Hell Clock é um espetáculo acessível e popular, por mais que o uso de hard shadows às vezes possa remeter um pouco ao gigante dos roguelikes Hades, um olhar mais cuidadoso revela a clara inspiração nas xilogravuras de cordel. Além disso, é muito visível que certas decisões do estúdio foram feitas para economizar através do simplificar de certas animações. Mas, por mais que essas decisões sejam aparentes, elas não trazem um ar de pobreza para Hell Clock; muito pelo contrário, elas acabam contribuindo com um charme de simplicidade comparável à produções teatrais independentes, por exemplo (quando você sabe que uma companhia não tem o dinheiro para fazer a exuberância e delicadeza necessária, mas ainda assim entrega algo mostrando o compromisso em comunicar a ideia).

Além das animações e estéticas gerais eu gostaria de enfatizar o cuidado tomado no design dos inimigos. Boa parte deles vêm em enormes hordas. Com que com o decorrer do tempo, você começa a vê-los apenas como enormes massas disformes de EXP ambulantes. Apesar disso, eu gosto como parte dos inimigos representam horrores detalhados do Massacre de Canudos (tal qual os inimigos canhões que são super representativos da quarta incursão do exército à Canudos). Isso, em conjunto com as paletas de cores e decisões de iconografias para as áreas do jogo, criam uma sensação de carinho e cuidado única.

A narrativa, em contrapartida, não contém simplicidade alguma. Todos os diálogos são escritos com uma atenção e cuidado exemplares. Hell Clock não somente é ambientado ao redor do Massacre de Canudos como também a esmagadora maioria do elenco é composto por pessoas reais que fizeram parte desse acontecimento histórico em algum grau — a precisão e respeito na hora de trabalhar em cima dessas personagens da história do nosso país mostram uma obsessão quase acadêmica por parte da Rogue Snail. Para além desse carinho todo com a escrita em si, Hell Clock também traz um baita elenco para todos os personagens nomeados. Em entrevista ao boost podcast, foi revelado que não somente houve um cuidado em escolher atores nordestinos para todos os personagens do jogo vindos da região como também vozes não muito comuns na indústria de jogos foram escolhidas para protagonizar a narrativa. Apesar do elenco inteiro entregar um trabalho fenomenal, eu gostaria de destacar as interpretações de Dody Só como Pajeú e Jonas Falcão como Ministro da Guerra. Esses dois não somente entregam performances fantásticas por si só como as trocas entre eles em seus respectivos confrontos são de arrepiar.

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Seguindo para progressão e gameplay de Hell Clock: elas são bem típicas do gênero de ARPG. Tudo gira em torno da ideia de ir cada vez mais fundo nas dungeons/masmorras, onde o foco é aumentar os seus stats, encontrar itens, desbloquear novas habilidades; tudo isso enquanto derrota hordas e hordas de inimigos, sem esquecer dos eventuais chefões que marcam as transições de uma dungeon para a outra. Fora essa progressão clássica de ARPG, Hell Clock também se mostra extremamente moderno em abraçar o contemporâneo e popular gênero de roguelike. Esse se mostra presente através de convenções agora comuns como upgrades aleatórios baseados no seu arsenal de habilidade — estes sendo as “Bênçãos da Proficiência”, heranças de sabedorias forjadas por suas adversidades. Vale ressaltar que, para além das bençãos focadas nas suas skills atuais, também temos as “Bençãos de Essência” que representam upgrades mais fixos e progressivos baseados nos stats base de Pajeú —, andares familiares mas nem tanto para temperar suas runs e te tirar da mesmice.

Além do que acontece dentro das masmorras também temos outros tipos de upgrades mais “fixos” para aumentar a força de Pajeú nesta terrível e aparentemente inacabável peleja. Existe o Sino de Belo Monte, que aumenta suas estatísticas, duração do Hell Clock, espaço do relicário, etc; as Constelações, que são introduzidas no segundo para quase terceiro ato do jogo; e as Relíquias, itens trazidos ou comprados durante as runs que podem ser equipados, causando diversos efeitos como mudança de elementos das habilidades, ativações automáticas, aumento de status ou até mudanças completas de como certas habilidades funcionam. Com exceção das relíquias, ambos os outros sistemas atuam como árvores de habilidades que são preenchidas com recursos acumulados entre as runs, fazendo com que o loop seja focado em “Adentrar a masmorra atual > Ir o mais longe possível para acumular recursos e testar sua build > Voltar para os restos de Belo Monte > Alimentar o sino e as Constelações (talvez trocar suas habilidades e/ou relíquias) > Repetir o processo”.

Todas essas mecânicas juntas criam um ótimo ARPG feito de quem ama o gênero para tanto os fãs mais hardcore e até os menos experientes. Apesar da curva de dificuldade inicial ser um tanto estranha — o Ato 1 sendo o mais instável nesse sentido com um início tranquilíssimo, uma segunda masmorra com um salto de dificuldade grande e então uma terceira ok — ela gera um sentimento de satisfação único no momento que você percebe que aquela build nova está dando mais certo que as outras. Sério, tiveram muitos momentos que eu estava em um ponto de frustração chatíssimo por ter travado em um boss e com apenas um pequeno ajuste na minha build e escolha de bençãos me vi ficando muito mais forte e cheio de euforia. Agora dizimando todas as hordas de inimigos que antes me causavam tanta dor de cabeça.

Fora as convenções dos gêneros de ARPG e roguelike, Hell Clock tem uma mecânica que é simplesmente o que batiza o jogo; o Hell Clock. O Hell Clock é um contador que fica no canto superior esquerdo da sua tela e começa uma contagem regressiva toda vez que você adentra as masmorras do jogo. Inicialmente ele conta com apenas 420 segundos mas, através do sino de Belo Monte, seu tempo total pode ser expandido para acomodar runs mais longas. A mecânica se faz presente como um obstáculo e título tanto na gameplay quanto na narrativa. Pajeú retorna não somente como um dos principais guerrilheiros de Belo Monte mas também carregando o título de “O Relojoeiro”. Sua pressa se mostra justificada já que, sem aviso algum, toda vez que ele demora demais nas pelejas, seu corpo se enfraquece e ele é tomado de volta para os resquícios de Belo Monte. Além dos efeitos narrativos, toda vez que o tempo do Hell Clock está se esgotando, a música se faz mais tensa com o tic tac do relógio ficando mais agressivo a cada segundo. Em todos esses momentos me vi quase lutando pela minha vida junto a Pajeú e tentando finalizar a masmorra o mais rápido possível.

Apesar do Hell Clock como mecânica trazer uma deliciosa tensão para a mesa, senti que ele age de maneira um pouco contraditória com o resto da arquitetura do jogo. No momento que eu entendi como “manipular” melhor a minha progressão de nível, onde pegar ouro e como ir seguindo as linhas de evolução de bênçãos mais interessantes para a minha build, o Hell Clock começou a me dar muita dor de cabeça. Parecia que eu não tinha como dedicar tempo a pensar numa estratégia, já que isso ia sacrificar meu progresso mais a frente. Honestamente? Eu falo isso mas não enxergo como uma crítica, esse desafio imposto pelo tempo cria uma dicotomia nas suas runs e te incentiva a cada vez mais ter um pensamento e estilo de jogo ágil. Entretanto, Hell Clock também te permite escolher um lado nessa dicotomia e simplesmente não desenvolver esse pensamento ágil. Toda vez que você abre o jogo e vai escolher seu save, Hell Clock te permite selecionar o “Modo Relaxado”. Este modo congela o contador permanentemente e te permite fazer as runs e pensar na sua build o mais tranquilamente possível.

O time da Rogue Snail se mostra de parabéns na questão de acessibilidade e agência do jogador em Hell Clock. A esmagadora maioria das builds são igualmente viáveis. O Hell Clock pode ser ativado e desativado a qualquer momento. As relíquias, sino e constelações trabalham em harmonia para te dar uma sensação firme de progresso. Além de tudo isso, depois dessas primeiras semanas de lançamento o estúdio ouviu o feedback da nova onda de jogadores e lançou um novo modo com uma reformulação total do pacing da campanha, assim abrangendo um público bem mais extenso sem abrir mão da visão de design tão única e essencial que levou esse projeto a existir. Me faltam palavras para descrever o quão feliz fico em ver um estúdio brasileiro tendo tamanha maturidade nas escolhas de design e desenvolvimento de seu jogo. Isso faz de Hell Clock um diamante em meio a tantos jogos incríveis lançados esse ano.

Entretanto, apesar do claro estado diamantino do jogo, é preciso dizer que esse diamante é bruto e está sendo constantemente lapidado. Rogue Snail não faz segredo em dizer que o post-game de Hell Clock ainda se encontra em beta, mesmo que ele seja um dos grandes se não o maior apelativo para a parcela do público familiar ao gênero de ARPG. Fora isso, apesar da narrativa ser construída com carinho e ser impactante, as personagens nem sempre conseguem se fazer tão presentes quanto eu pessoalmente gostaria. Suas falas se mostram escassas com menos de 40 runs do jogo e nisso você vai se ver interagindo com múltiplos personagens para eles apenas rotacionarem em sua direção sem ter nada a dizer. Hell Clock faz um trabalho para remediar isso com a introdução de personagens novas e esporádicas em Belo Monte, trazendo um ar de frescor com seus novos comentários, mas ainda assim isso só ressalta como outras personagens permanecem quietas em comparação aos recém chegados.

Obviamente isso não é nada que desabone a grandeza de Hell Clock como obra; na verdade a honestidade do estúdio em apresentar o jogo como um trabalho em andamento só adiciona uma certa empolgação em saber que eventualmente novas coisas virão, e a conduta do estúdio reforça esse sentimento de entusiasmo e crença na obra. Em menos de um mês de lançamento, os desenvolvedores se mostraram comprometidos o suficiente para lançar um reformulação inteira da campanha do jogo. Se isso não é motivo para acreditar que Hell Clock já vale a pena e que novas falas, novas interações e até novas builds possivelmente virão, eu sinceramente não sei o que é.

Uma cópia gratuita de Hell Clock para PC foi concedida pela Mad Mushroom, através do Keymailer, para análise no Recanto do Dragão.


A partir daqui eu pretendo me estender mais sobre divagações em relação a narrativa de Hell Clock e pensamentos pessoais da minha parte. Novamente, o jogo tem menos de um mês lançado então estes pensamentos definitivamente conterão spoilers fortíssimos. Eu não sinto que isso diminui a experiência de Hell Clock em nenhum aspecto, já que o jogo é extremamente orientado para sua jogabilidade. Entretanto, já estejam avisados caso queiram experienciar a narrativa de Hell Clock em primeira mão!!!


Antes de falar da narrativa, é um tanto óbvio que nós precisamos falar sobre a valente decisão da Rogue Snail em fazer toda sua ambientação ao redor da Guerra de Canudos, que só no seu nome já carrega uma série de decisões e questionamentos. Ao se referir aos acontecimentos históricos de Canudos, sempre há uma divisão em falar como “A Guerra de Canudos” ou “Massacre de Canudos”. Não existe um jeito errado de falar, mas ambos tem suas questões, se referir como massacre retira os feitos históricos da população canudense que conseguiu resistir de maneira inacreditável perante às forças da república. Mas se referir como guerra também implica que foi um conflito “”””””””””justo“””””””””” (entre muitas aspas porque né, qual guerra nos últimos séculos foi justa?). Enfim, só essa questão já mostra o quão delicado é falar sobre Canudos.

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Para você caro leitor que não tem ideia do que foi Canudos, aqui segue um pequeno resumo: Canudos foi uma região na Bahia fundada originalmente por vaqueiros e em uma expansão latifundiária pela região por volta do século XVII~. Porém, com o decorrer dos anos, o local foi perdendo sua população até se tornar uma aldeia abandonada. É nesse contexto em 1893 que Antônio Conselheiro entra na História. Antônio Vicente Mendes Maciel — que anteriormente já havia sido comerciante, professor de nível primário e até advogado provisionado — era uma figura curiosa que, depois de uma série de infortúnios acontecimentos, passou a vagar pelos sertões do nordeste brasileiro. Após mais infortúnios (e até ser injustamente preso) ele decidiu se instalar na região da antiga vila de Canudos e a rebatizar de “Belo Monte”. Nisso, diversas pessoas das mais diversas origens começaram a se juntar na região da vila; afinal de contas ela ficava próxima a um rio que fazia com que a terra fosse relativamente fértil e, sob o acolhimento de Antônio Conselheiro (como eventualmente passou a ser chamado), os recém chegados tinham condições de trabalho mais humanitárias do que as outras fazendas na região. Assim, a comunidade foi ganhando cada vez mais os rumores de utopia no sertão.

O importante de ressaltar sobre a população de Canudos é que ela era quase que inteiramente composta por pessoas marginalizadas: sertanejos, pessoas negras recém libertas da escravidão e até povos originários.

Nota: Essa pluralidade da população de Canudos é traduzida de maneira incrível no sistema de Constelações de Hell Clock através da inclusão de estrelas que vão além das figuras católicas, como orixás e entidades indígenas como Guaraci, Jaci, Tupã e até Jurupari!

Com o agrupamento desses “socialmente indesejados” alcançando números nunca imaginados (25 mil para aquela época era muita coisa.) somado às ideologias controversas de Antônio Conselheiro para época (ele alegava que a recém-instaurada República Brasileira era a materialização do governo do anticristo na terra e que suas decisões não só profanavam os ideais católicos como também eram a prova da chegada do fim do mundo, such a diva) pintavam Canudos como um “grande risco”. Não somente para as elites baianas próximas, mas também para o estado brasileiro já que a cidade era independente e não concordava com as cobranças de impostos da época (que não somente eram extremamente violentas como também não traziam nem retorno material ou social para a grande massa nordestina).

Com desaprovação da mídia enquanto também era alvo direto não somente dos governos estaduais da Bahia mas também do governo federal Brasileiro, Canudos sofreu quatro duras incursões militares, a última envolvendo pessoalmente o então atual ministro da guerra Marechal Carlos Machado de Bittencourt. A população canudense cedeu na última incursão e não só a cidade foi reduzida novamente a ruínas como o restante de sua população (em especial mulheres e crianças) foram submetidas a atrocidades cometidas pelo exército republicano da época. 

Depois desses três (não tão) extensos parágrafos de aula de História finalmente temos a fundação para discutir a narrativa de Hell Clock. E já começamos com a primeira e mais importante questão: Hell Clock não somente faz uma escolha valente em ambientar sua narrativa ao redor de Canudos, como também dobra a aposta e preenche seu elenco com pessoas reais que estiveram presentes em algum momento desses acontecimentos históricos. O boss final em especial para mim foi uma escolha a qual não esperava ver, mas mais do que justa para o tom que a história estava seguindo em sua reta final.

E aí entra uma questão divisiva: Hell Clock conta com diálogos feitos com muito carinho e uma dublagem muito além de fenomenal. Entretanto, apesar de tanto esmero nessas áreas, pouco se vê em matéria de escrita de personagem. Pajeú é um exemplo primoroso disso, já que quase nada se vê dele para além do guerrilheiro que pretende defender e salvar Belo Monte e seus iguais à todo custo… mas honestamente? Isso é completamente justo. Em qualquer ficção contendo figuras históricas existe um certo dilema (especialmente no caso de Canudos onde existe pouco ou quase nenhum registro relativo à muitas de suas figuras participantes) em como retratar elas. Ou você segue através de diversos registros e monta sua história ao redor de coisas que essas pessoas reais já fizeram, ou você chuta o balde e transforma essas figuras históricas em OCs seus para fazer o que quiser com eles (tal qual Hamilton ou Assassins Creed II).

Hell Clock toma a primeira (e mais respeitosa) abordagem e faz com que sua escrita de personagem seja totalmente voltada para a relação dessas pessoas com Canudos/Belo Monte. Porém, isso não impede Hell Clock de fazer comentários extremamente contemporâneos e trazer sua narrativa para o presente.

No terceiro ato, após reviver todos os acontecimentos de Canudos e vingar seus iguais, Pajeú finalmente reconhece que se encontra em uma espécie de pós-vida. Estranhamente, após essa realização ele não retorna aos resquícios de Belo Monte, mas sim nos metrôs (ao que tudo indica) de São Paulo. A partir daí, ele segue enfrentando inimigos que se assemelham muito mais a tropas de choque das nossas atuais polícias militares do que os antigos e datados soldados republicanos. 

Enquanto as seis primeiras áreas do jogo são representações locais históricas da região nordestina e iconografia católica, as últimas três masmorras decidem fazer comentários sobre a evolução da população marginalizada, locais onde estão presentes e também sobre as ideologias que os assombravam nos tempos de Canudos e ainda assombram. A decisão de fazer os metrôs serem os de São Paulo não é à toa, já que é um fato histórico e estatístico a migração em massa da população nordestina em rumo à capital paulistana em busca de melhores oportunidades de trabalho. Também existe o trem, batizado como “Trem das sete”, que faz alusão a Raul Seixas, uma grande figura oriunda da Bahia. A reta final reforça ainda mais a temática, que demonstra que as ideologias racistas que marginalizaram os moradores de Canudos ainda seguem presentes na nossa contemporaneidade, mesmo que menos escrachadas.

Eu viajava muito pela Bahia de trem. Isso ficou na minha cabeça. A cultura da cidade de interior. Tinha cidade que o dono era o cara que tinha geladeira! Todo mundo ia ver a geladeira! Essa cultura do Brasil é fantástica. Eu falo muito do trem como uma imagem de um novo momento que está surgindo. Um momento que o processo civilizatório chegou a um ponto que bateu no teto. A última televisão colorida já foi vendida. Aí, você pergunta: ‘E daí?’. Sem imposições nenhuma, o mundo está mudando, realmente. Os valores estão mudando e ninguém pode impedir isso

Raul Seixas em entrevista a Rádio Cultura AM em 1976

Apesar de todo o pessimismo com o futuro e confirmação da persistência da eugenia, o final de Hell Clock é bonito de uma maneira simples… E isso é curioso.

Pajeú e Antônio Conselheiro falam de maneira explícita para a audiência do jogo como seu povo ainda sofre da mesma Peleja, a repressão policial, o racismo e a marginalização. Entretanto, Pajeú afirma de maneira otimista que vai continuar lutando por seu povo e trazendo paz para todos eles, mesmo que somente no pós vida. Assim o jogo é encerrado com um otimismo de protagonista shonen de final de primeira temporada.

Para todos os efeitos, eu não acho isso um final ruim, mas é curioso como um jogo que até ali tinha uma escrita tão sóbria decide nos quarenta e cinco do segundo tempo mudar seu tom para tamanho otimismo. Isso retoma o que eu disse na reta final da análise mais pra cima: Eu realmente espero que esse jogo tenha mais conteúdo.

Do fundo do meu coração? Eu, Cauê Batista, evito falar muito sobre jogos de capítulos ou depositar expectativas muito específicas em obras em desenvolvimento que escrevo sobre aqui porque não acho de bom tom para uma análise crítica. Mas Hell Clock vai ser uma exceção para mim porque eu sinto que essa mudança tonal traz uma possibilidade narrativa muito interessante.

Eu gostaria muito de que no futuro a Rogue Snail se comprometesse não somente a continuar desenvolvendo todo o post-game de Hell Clock (como eles já fazem com tamanho carinho) mas que talvez pudessem vir DLCs de novos lugares para além de Canudos. Sinto que o Massacre do Carandiru em especial seria um paralelo muito interessante para esse tom otimista que o final traz, não apenas ele também foi um fruto de violência policial (como praticamente foi seu apogeu até hoje) como querendo ou não algo bonito pode nascer de onde ocorreu o Carandiru (o Parque da Juventude e tudo ao seu redor); sinto que essa mensagem pode reforçar o que o final do jogo quer trazer.

Nossas elites são traiçoeiras, sanguinárias e sistemáticas. Mas não é por isso que devemos ficar de braços cruzados perante às suas respectivas tiranias. Se arme, se eduque, se cuide, e principalmente, zele não somente pelo seu material, mental e espiritual, mas também pelos daqueles ao seu redor. Afinal de contas, não é só você que está nessa peleja, muitos vieram antes e a partir de você incontáveis virão depois.