Rhapsody II — dialogando com sombras | Análise

Rhapsody II — dialogando com sombras | Análise

Como a sequência de Rhapsody, um JRPG musical em estilo conto de fadas, Rhapsody II: The Ballad of Little Princess dá voltas em círculos. Ele reexamina o original tanto quanto o retraça, ao mesmo tempo que o olha de maneira inocente. Ele trata o conto de fadas original como um mito temporalmente distante, ao mesmo tempo em que vários de seus personagens ainda estão presentes no segundo jogo como mentores.

Assim como em muitos outros jogos, tecnicamente não é necessário jogar o primeiro para ir no segundo… mas existem tantas ressignificações de conceitos, revisitações de relacionamentos e dinâmicas, e graus enormes de nostalgia por um jogo que não tinha saído há nem um ano que não tem como pular o primeiro. Estranho para uma sequência, não?

Rhapsody II análise

Rhapsody II: Ballad of the Little Princess é um JRPG musical lançado originalmente em 25 de novembro de 1999 pela Nippon Ichi Software exclusivamente para o Japão, diferente de seu jogo anterior que também veio aos Estados Unidos. Agora, em 29 de agosto de 2023, Rhapsody II foi finalmente localizado ao inglês e remasterizado para PC e Nintendo Switch. Não existe uma versão em português ainda, infelizmente.

Quando escrevi sobre Rhapsody ano passado, não passou pela minha cabeça em momento algum que iríamos receber uma versão em inglês de suas sequências tão cedo. Mas não só foi anunciado o relançamento do Rhapsody II, mas também o do Rhapsody III! Agora a trilogia está completamente disponível em plataformas modernas de maneira mais acessível e até com dublagem em inglês para certas linhas de diálogo. Porém, as músicas ainda só estão em japonês.

Este texto faz parte da Ode aos RPGs, um projeto em andamento do site! Os outros textos podem ser vistos aqui!

Ao jogar Rhapsody II, me surpreendi pelo quão estranho ele é como sequência. A estrutura, o combate e até algumas ambições narrativas são completamente diferentes — mas tudo parece ainda ligado ao primeiro jogo espiritualmente. Agora temos nove atos ao invés de uma história completamente contínua, mas de certa forma no Rhapsody I ainda existiam divisões claras entre acontecimentos. O combate agora é em turno tradicional de JRPG ao invés de estratégia baseado em grid, mas a simplicidade foi transplantada entre os dois estilos de maneira imperceptível. A história agora é sobre Kururu, a filha da Cornet (que foi a protagonista do 1) — mas as duas possuem amizades e arcos similares.

Parece uma segunda tentativa recontextualizada de contar a história do primeiro jogo, só que de uma maneira que apenas funciona como sequência. É, é bem bizarro, mas vou tentar expressar os mecanismos da história sem confusão. 

Rhapsody II análise

Anos após o final de Rhapsody, a ex-protagonista Cornet agora é a rainha do reino de Marl junto de seu marido Ferdinand. Os dois tem uma filha de 12 anos chamada Kururu, que é o mesmo nome do fantoche que acompanhava Cornet no primeiro jogo (e algo a mais que seria spoiler comentar sobre). Diferente da Cornet que cresceu em Orange, uma vila pequena, a Kururu é bem mimada. Ela é uma princesa que tem tudo à seu alcance e até usa da guarda real como seus mordomos pessoais quando sai do castelo escondida. É, esse é o problema. Considerando que ela é a próxima a ser escolhida para a coroa, ela é muito protegida pela sua família, então quase nunca pode sair. Não é a toa que ela é meio mimada; ela nem sabe como é o resto da cidade em que ela mesma mora! Mesmo assim, ela tem uma grande amiga que a acompanha: A Crea, filha da Etoile, que por sua vez era a melhor amiga/rival de Cornet no primeiro jogo.

De certa forma, a vida de Kururu em Rhapsody II é quase transplantada da vida da Cornet do 1. Tem até aquele clichê dos filhos do protagonista da obra original terem amigos que são filhos dos amigos de seus pais. E é isso que torna esse jogo tão interessante. Além de tudo isso, assim como sua mãe, a Kururu também está a procura de um príncipe para si mesma. Mas enquanto Cornet se apaixona por Ferdinand após já ter interagido com ele, a Kururu quer caçar um. Nos primeiros atos de Rhapsody II, a Kururu foge com a Crea para tentar achar seu príncipe. Bem no pique da frase de efeito da Cornet: Tome a iniciativa!

Rhapsody II análise

Enquanto os acontecimentos são parecidos, a maneira com que Rhapsody II os reexamina é notável. Algumas vinhetas do primeiro pareciam não encaixar tanto na grande narrativa, mas como no II temos atos separados, eles fazem sentido. É claro que o começo da aventura de Kururu envolve ela explorando as áreas mais seguras próximas do castelo onde ela inevitavelmente encontrará locais que já apareceram no primeiro jogo. É claro que ela vai ajudar pessoas com pequenos pedidos ao invés de salvar o mundo, e é claro que ela vai primeiro tentar derrubar uma loja de sorvete que vende cocô de gato gelado antes de lidar com situações de vida ou morte. A cada momento importante novo da narrativa, Rhapsody II se sente confortável aumentando suas ambições. A nostalgia dos lugares revisitados é recontextualizada com relacionamentos complexos entre vilões na reta final. O Ato 8, por exemplo, é absolutamente enorme. Envolve três áreas grandes com suas próprias dungeons e arcos de personagem focados nos protagonistas: a Kururu, Crea e o príncipe Cello. É, ela acha o seu príncipe pouco depois do início do jogo. Agora só falta conquistá-lo! Infelizmente isso acaba tirando da mesa o possível romance entre a Kururu e Crea, que é algo implicado em múltiplas cenas onde a Crea meio que dá em cima da nossa protagonista sem dó.

E assim, é claro que eu amei todo pedaço disso! Rhapsody não seria nada sem seus momentos alongados onde o foco é a comédia e músicas com letras leves. É parte do que torna a experiência mágica, e agora é claramente traçável do começo ao fim do jogo.

A abordagem que o Rhapsody II toma em relação aos personagens é um bom exemplo disso. A tropa de quatro vilãs principais do primeiro jogo está de volta, mas desta vez elas funcionam mais como rivais que inimigas diretas, pois agora temos… outra tropa de quatro vilões com personalidades bem parecidas para entrar no lugar delas. Isso pode parecer estranho, mas é algo que adiciona muito às cenas entre Kururu, Crea e os vilões. Basicamente, a família de bruxas Marjoly do primeiro jogo está lutando contra a família Akurjo em busca da Shadow of Beauty, que, em meio a outros efeitos misteriosos, pode ajudar a Akurjo a “recuperar a sua beleza de quando era nova”.

Mas mesmo considerando que as duas famílias tem seus próprios subordinados gatinhos malvados e membros muito similares em personalidade, é impressionante o quão diferentes eles realmente acabam sendo. É uma boa metáfora para explicar como o Rhapsody II se relaciona com o primeiro de múltiplas maneiras. 

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A Gao da família Marjoly é uma bruxa bombadona que canaliza magia para ficar mais físicamente forte. Ela é uma das vilãs mais de boa do primeiro jogo com a Cornet. Ela é meio rude, mas não é tão interessada em ajudar a Marjoly como suas irmãs. Agora, na sequência temos a Lan-Lan, uma mulher-lobisomem que na prática tem as mesmas habilidades da Gao. Ah e ela é perdidamente apaixonada por ela. A presença de Gao no segundo jogo, onde ela interage com a filha da protagonista do primeiro como se nada tivesse mudado demonstra uma visão nostálgica do passado; a presença de Lan-Lan como uma vilã nova com uma temática parecida com a de outra do primeiro jogo demonstra uma vontade da sequência de reinterpretar o passado; e a interação e romance entre as duas vilãs dialoga com as duas visões. Tudo isso menos de um ano após o lançamento do primeiro jogo.

Entre as áreas revisitadas e as novas que são vistas com novos olhos, entre as músicas reiteradas e os números inéditos ao segundo, entre o combate antes baseado em grid e agora tradicional em turno — mas ainda dedicado a dar espaço a iniciantes acima de tudo. Em todo canto de Rhapsody II, as eras se conectam, se desmontam e criam novos laços entre si.

Rhapsody II análise

Rhapsody II cria um conto de fadas único como continuação, onde todos seus espaços são oportunidade para reminiscência. A Kururu não tem que passar por tudo que sua mãe Cornet passou, mas sua jornada a espelha em partes. Conforme a narrativa avança, ela vai se tornando cada vez mais distante da do original. Seu olhar se desvia do que foi ficado para trás para focar no que é importante para a Kururu como pessoa. Mesmo retraçando alguns dos passos da sua mãe, ela não precisa se prender à sua sombra.

Uma cópia gratuita de Rhapsody II: Ballad of the Little Princess para PC foi concedida pela NIS America para análise no Recanto do Dragão.