Ao ver um anúncio sobre um novo port ou remaster (não remake) de um jogo, é fácil entender o porque daquilo estar sendo feito. Existem muitas razões para uma publicadora fazer isso; ressurgir o interesse em um jogo ou franquia para um potencial novo, deixá-lo disponível para plataformas atuais e ganhar uma graninha extra com pouco orçamento, ou apenas trazer uma experiência repaginada para uma nova geração. Dessa vez, Phantasy Star foi trazido de volta por puro amor e respeito ao seu legado.
Esse texto faz parte da nossa comemoração do Mês das Mulheres! Você pode ver os outros clicando aqui!
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Em 20 de dezembro de 1987 a Sega lançou Phantasy Star para Master System, seu primeiro console que estava sedento para concorrer contra o Nintendinho a qualquer custo. Parte da estratégia agressiva da Sega na época envolvia se esgueirar em todo e qualquer gênero possível, ou seja, é claro que o Master System precisava de um RPG.
Disso veio a ideia original de Phantasy Star, que buscava ir além da escala oferecida por Dragon Quest e outros contemporâneos no console concorrente, com inspirações mais diretas de RPGs de computador como Wizardry, um pé em design de jogos de aventura, proezas técnicas inacreditáveis para um console em 8-bit e um mundo que mistura ficção científica com fantasia tradicional. Ah, e eu mencionei que as dungeons são em primeira pessoa no Master System? E que ele foi traduzido oficialmente pela TecToy para português brasileiro?
Além de tudo isso, o título é conhecido por seu pedigree extremamente impressionante de desenvolvedores que vieram a ser lendas na indústria. Surpreendentemente, Phantasy Star está diretamente atrelado com as incríveis mulheres que trabalharam na franquia dentro de seu DNA. A idealizadora de grande parte da história foi Chieko Aoki (creditada como Otegami Chie), a character e as vezes game designer que veio a ser diretora do quarto jogo da franquia foi a lendária Rieko Kodama (creditada como Phoenix Rie), e uma das principais designers foi Miki Morimoto (creditada como Gamer Miki). Ah, e como poderíamos esquecer da Alis Landale, uma das primeiras protagonistas femininas definidas da história dos jogos? Ela veio pouco mais de um ano após Samus Aran do Metroid, mas ainda assim, Alis foi a primeira mulher a estrelar em um RPG para consoles.
Com isso, a ambientação, personagens e conceitos apresentados acabam por ter uma atmosfera única entre outros RPGs da época. Mulheres são mais presentes em diferentes empregos nas cidades e os conflitos são demonstrados com um foco maior no dia a dia. Você não vê o malvado Rei Lassic destruindo uma cidade, mas sim as pessoas que moram nela tentando sobreviver após a destruição e ruína trazida por ele. O objetivo final é derrotá-lo, mas antes você deve conhecer e ajudar os inocentes que já foram afetados por ele.
Este é um dos maiores motivos pelos quais eu acredito na importância e Phantasy Star até os dias de hoje. Os tempos mudaram em 2023, mas essa abordagem com as peculiaridades próprias à este jogo ainda são de grande interesse histórico e artístico. Por isso fico feliz que a Sega resolveu remasterizá-lo para o Nintendo Switch em 2018, sob os olhos da Rieko Kodama em pessoa! Essa versão é parte da mais nova série SEGA AGES de remasters que também inclui jogos como Fantasy Zone, Out Run e Wonder Boy in Monster Land; todos para o Switch.
Kodama trabalhou como produtora em todos estes remasters junto do estúdio M2, e infelizmente foi seu último trabalho como desenvolvedora, pois ela faleceu em maio de 2022. Seu legado como artista e designer é indisputável. Ela foi um dos membros mais influentes da história da Sega e uma grande diretora e produtora que veio a trabalhar com ambos Magic Knight Rayearth e Skies of Arcadia nos últimos de seus anos mais ativos na indústria. Que ela descanse em paz e que seu legado seja lembrado.
Entre outras fontes, uma grande parte das informações mencionadas nessa parte do texto foram retiradas desta entrevista de 1993 com o time de Phantasy Star, que você pode ler clicando aqui (apenas disponível em Inglês).
Os remasters da SEGA AGES de Switch possuem o objetivo de, ao invés de repaginarem visuais e modernizarem mecânicas à rodo, oferecerem tanto a experiência original com alterações mínimas quanto um novo “AGES Mode”, que rebalanceia partes da experiência para expectativas modernas, mas ainda busca manter o sentimento original.
Eu não vou em momento algum falar que algo “envelheceu mal” no primeiro Phantasy Star ou qualquer outro RPG dungeon crawler dos anos 80. Eles carregam com si próprios filosofias e maneiras únicas de interação que são difíceis de serem replicadas com sucesso atualmente. Eram títulos que faziam de seus jogadores cartógrafos e exploradores natos, que usam paciência, cautela e perseverança como reais mestres para terminar o enorme desafio proposto pelo jogo. Porém, isso requeria não só um nível de esforço alto mas também uma filosofia de design difícil de ensinar um jogador dos dias de hoje a se adaptar.
Por exemplo, desenhar os mapas à mão em papel milímetrado é algo que pouquíssimos jogadores novos teriam a paciência para buscar fazer. A franquia Etrian Odyssey no DS e 3DS tentou adaptar isso com um sistema de mapa onde você desenhava com o Stylus as paredes, itens, obstáculos; basicamente tudo. Mesmo assim, essa era uma ideia específica ao console e em que o próprio design do jogo incentivava o uso criativo da mecânica. No caso de Phantasy Star, o intuito era mais natural: Você explora enquanto anota informações relevantes de NPCs no caminho e mapeia as dungeons pouco a pouco. O mapeamento era importante devido aos visuais homogêneos das curvas das dungeons que eram muito limitadas em assets (coitadinho do Master System) e por suas várias armadilhas espalhadas por aí.
O interessante é que o jogo já era meio de boa nesse quesito em sua versão original. Você pode salvar a qualquer momento dentro de uma dungeon, o que abre a possibilidade de maior experimentação em rotas e mapeamento (você pode andar por um caminho apenas para mapeá-lo manualmente e depois reiniciar o save) mas infelizmente também trazia um grande risco constante de softlock para jogadores que não eram tão cuidadosos com seus saves. Dica: Lembre-se de sempre rotacionar o slot e manter alguns importantes intactos!
Mas assim, o Ages Mode não mexe nesse último pedaço. Esse desafio cuidadoso ainda está presente, mas com algumas expectativas diferentes. Pra começar, tanto o Ages Mode quanto o clássico contém a opção de um overlay com um mapa que atualiza automaticamente enquanto você anda, longas listas de itens e equipamento, um manual detalhado e um display que mostra a vida e mana de todos os seus personagens à todo momento dentro do jogo. Falando a real, só essa adição do status no HUD acaba salvando uma boa meia hora que eu ficaria na paranoia checando o menu de status de cada personagem para saber sua vida total (que sempre aumenta a cada nível adquirido).
Isso já torna a experiência bem diferente da original. Por ter 20 anos atualmente, eu não cresci na época em que jogos como Phantasy Star eram comuns, então o costume de mapear dungeons só não está em mim. Mesmo assim, o Ages Mode vai além: encontros aleatórios são reduzidos enquanto o dinheiro e XP adquiridos são muito aumentados. O rebalanceamento transforma este em um jogo de menos de 15 horas de duração, enquanto o original com certeza ia levar muito mais indo às cegas. Ao meu ver, a H2 decidiu fazer essas alterações com cautela para adaptar o jogo à forma que ele é mais provável de ser apreciado hoje em dia.
Enquanto em 1987 um jogador escolhia comprar Phantasy Star especificamente para passar meses jogando e se entretendo, hoje um novo jogador esperaria dele uma relativamente breve aventura; talvez para adquirir contexto histórico do gênero de RPG, talvez para ter algo mais clássico para jogar em alguns fins de semana. Mas claro, isso não impede nenhum jogador novo de escolher o modo clássico e enfrentar o desafio original intocado. Isso torna a versão SEGA AGES extremamente essencial, qualquer seja o tipo de jogador interessado na franquia. Mesmo que eu admire os Pixel Remasters de Final Fantasy, eles não se comparam com as escolhas de direção de Ages.
Ao meu ver, é um feito impressionante e um estilo de remaster não muito comumente visto, que preserva completamente o jogo original enquanto oferece rebalanceamentos supervisionados por alguém que trabalhou nele desde o início. Tudo isso sem sequer ter que repaginar gráficos ou coisas do tipo. Convenhamos que Phantasy Star já é de tirar o fôlego em seu estado original, então isso seria um desperdício de tempo.
Mesmo jogando o Ages Mode (e referenciando um guia quando necessário para não tomar soft-lock), eu consegui sentir cada escolha de direção e aproveitar o ritmo aberto e distante que o jogo oferece. Sua narrativa principal é simples e basicamente só envolve alguns diálogos introdutórios entre os party members — dos quais um é um gato chamado Myau! — e NPCs mal traduzidos (não-pejorativo) refletindo sobre o estado do mundo e algumas asneiras. Mesmo assim, o jogo se sobressai com a presença de três planetas diferentes pelos quais você pode viajar e explorar livremente. Cada um deles tem desafios e segredos a serem descobertos pelos jogadores mais inquisitivos enquanto apresentam diversas raças alienígenas com diferentes culturas (até entre os monstros!). Diria que a única coisa que atrapalha isso um pouco é o inventário limitado a apenas 24 itens, incluindo os itens chave que são necessários para terminar o jogo. Com isso, seu espaço de inventário diminui exponencialmente conforme você avança para dar espaço à eles.
De resto, eu diria até que a frequência de encontros aleatórios já não era excessiva, mas mesmo assim é tão reduzida no Ages que você pode passar uma dungeon inteira de early game sem achar nenhum inimigo. Isso pode parecer um pouco demais, mas te incentiva a explorar livremente sem se preocupar. Já que muitos objetivos requerem que você cace uma variedade de coisas em todo local possível sem pudor, uma menor quantia de encontros te deixam fazer isso sem dó e sem ter que retornar à uma cidade tão constantemente para realizar o lento e caro processo de curar sua party. Dica²: não se esqueça de se curar em Camineet e Paseo quando possível! É rápido e grátis!
Ou seja, com isso o jogo consegue chegar ainda mais próximo do brilho de uma estrela. Tomar seu tempo para experimentar com itens, locais e até respostas de NPCs é algo essencial para tanto descobrir e se familiarizar com o universo quanto… conseguir terminar o jogo.
É engraçado que, mesmo como um concorrente em linha paralela com os jogos que a Enix e a (na época) também novata no gênero Square estavam produzindo na época, Phantasy Star puxa muito mais para jogos de aventura. Em qualquer lugar do mapa você pode abrir o menu e ver uma representação visual do quadrado em que está no momento, que dobra como menu. Além de mexer em, bem, tudo que você pode mexer em um menu, você pode usar a função “procurar” para ver se tem algo por ali. Ela é inútil na maior parte do tempo, mas alguns NPCs te dão localizações de itens que só podem ser encontrados dessa maneira. Igualmente, as vezes você deve ir combinando itens pouco a pouco para então poder usá-los, como com as Laerma Nuts que devem ser preservadas em um Laconian Pot antes de serem usadas por Myau em um local específico. É uma dor de cabeça? Com certeza; eu tive que checar um guia para descobrir algumas dessas interações. Mesmo assim, faz parte do charme individual do jogo. A maneira com que ele constrói suas expectativas de como progredir vai lentamente se adaptando até que o costume da experimentação toma o controle e as coisas ficam mais fáceis.
O mundo de Phantasy Star é extremamente aberto. Você pode esbarrar em locais e dungeons completamente irrelevantes para seu objetivo atual, e até terminar algumas fora de ordem; principalmente as diversas opcionais que apenas contém uma peça de equipamento melhorada para um personagem da party. Como o Ages Mode não interfere na dificuldade dos inimigos e bosses ou no efeito das armadilhas (mesmo assim o mapa opcional te mostra onde os buracos estão, mas não baús com explosões e outros tipos de sacanagem), você ainda vai utilizar de algumas das mesmas habilidades que um jogador teria que ter utilizado nos anos 80, mesmo que de maneira diluída — o que não considero como algo depreciativo ao apelo do jogo.
Dessa forma, voltar à gênese (haha) de Phantasy Star mais de 30 anos depois com a versão SEGA AGES ainda se mantém uma experiência pura e ao mesmo tempo considerada cuidadosamente para cimentar o legado de seu time original e suas conquistas. À Rieko Kodama, à Chieko Aoki, à Miki Morimoto. Claro, parte do crédito se estende ao Kotaro Hayashida, Yuji Naka, e outros dos membros do time original também, mas não é maravilhoso saber que um dos títulos mais influentes e especiais do gênero teve tantas incríveis mulheres envolvidas; desde sua criação até sua reimaginação moderna? Feliz mês das mulheres!
Ah, claro que eu não poderia me esquecer… à Alis Landale!