Em 2021, o estúdio independente Analgesic Productions lançou seu quinto jogo, Sephonie. É difícil mencionar um jogo do estúdio — que é formado apenas por Marina Kittaka e Melos Han-Tani — sem falar ao menos um pouco dos seus outros jogos. Eles são notáveis por suas direções confiantes, escopos bem medidos e vastos mundos.
Mas mesmo sendo difícil, vou me restringir a falar principalmente de Sephonie aqui, e deixar comparações com jogos passados como Anodyne de lado. Afinal, Sephonie por si só já me dá muito o que falar.
Agora, em 2023, Sephonie acabou de ser lançado para Nintendo Switch, que é a versão que joguei. Ela roda muito bem! Mas nesse texto gostaria de direcionar os holofotes para o jogo em si, então vamos lá.
Os jogos da Analgesic sempre parecem ter uma escala densa e gigantesca, mesmo que muitas vezes não passem das dez horas de duração. Esse é o caso de Sephonie. Ele se passa na ilha fictícia de mesmo nome, que fica em território Taiwanês. Os três protagonistas tem ascendência Taiwanesa. Amy Lin é norte americana e descendente de família Taiwanesa, Riyou é japonês e descendente de Taiwaneses, e Ing-wen é nativa do país. Os três foram mandados em uma expedição marítima para a ilha de Sephonie para explorarem as espécies biológicas presentes nela com a ajuda de uma nova tecnologia que os permite criar uma conexão direta com as espécies e tirar especificações sem ajuda externa.
Assim que eles chegam, um campo de energia inerente à Sephonie os naufraga dentro da ilha, onde eles planejam continuar a missão enquanto esperam por resgate. Inicialmente, Sephonie parece um lugar pequeno, mas há uma rede de cavernas expansiva e estranhamente desenhada.
Já de cara, a escrita de Sephonie torna os seus temas tangíveis: os três protagonistas estão buscando uma conexão entre si mesmos e suas ancestralidades. A cultura e percepção que eles tem com Taiwan provida de suas criações e o rico e quente ambiente da ilha de Sephonie. Enquanto você explora a ilha e suas cavernas com qualquer um dos três personagens com os sistemas de platforming 3D, seus encontros com as espécies nativas são pontuados por conexões feitas com o sistema de ONYX, que é representado por um jogo de puzzle onde você junta peças coloridas em uma grade pouco a pouco. É um literal puzzle platformer, mas com os dois gêneros separados drasticamente em suas próprias seções. A parte de puzzle tem um aspecto arcade satisfatório; é simples de aprender mas difícil de otimizar.
Além de servirem como uma metáfora clara sobre a interface que forma a conexão entre os protagonistas e partes da ilha, as seções ONYX também se conectam com o platforming. Ao terminar a conexão com uma espécie, ela te dá um novo tipo de peça a ser usada em conexões futuras. A peça ganha o nome de onde veio e forma uma rede sistêmica das conexões passadas feitas pelos nossos biólogos principais. Enquanto algumas das espécies estão bem na frente de seu caminho e são fáceis de serem localizadas, outras ficam escondidas por rotas alternativas ou espaços muito bem ocultos.
Enquanto isso, as seções de exploração 3D com platforming são carregadas por simples mecânicas que são usadas com elegância, mesmo sendo muito bizarras em conceito. No lugar de um pulo duplo (haters de pulo duplo, prestem atenção!), Amy e os outros biólogos possuem um dash com pouco potencial horizontal, mas que se usado contra uma parede te entrega tanto a distância extra quanto um segundo pulo automático! Ou seja, é possível dizer que, ao pular da plataforma que você está para uma mais alta, você de propósito tem que fazer um salto impossível que só é salvo de última hora pelo dash jump. Você “erra” pulos para atingir locais novos. Isso torna a exploração imprevisível e condusiva à experimentação. Não tem como saber se você realmente vai conseguir fazer a gambiarra de pulos que você planeja sem ao menos tentar!
Junto do dash jump, também existe o clássico wallrun, que felizmente é usado aqui de maneira experimental e bem diferente. Apertando o gatilho para correr, a lógica de controle muda para se parecer com controles de tanque, onde você usa as direções da direita e esquerda para girar o personagem naquela direção lentamente. Tal característica dos controles deixa você mirar um wallrun mais facilmente e o arco vertical forte da mecânica mais controlável. É meio difícil explicar a tangibilidade do wallrun de Sephonie, mas talvez dizer que é um casamento entre confiável e imprevisível ajude.
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Considerando estas mecânicas principais e a adição periódica de algumas novas com o tempo, navegar as redes de caverna de Sephonie é extasiante. Alguns dos caminhos que você traça te levam ao seu objetivo, enquanto outros podem te levar a espécies novas, cápsulas escondidas, ou… nada! Parte da área explorável de Sephonie não tem absolutamente nada escondido, mas isso não significa que você não pode ir nesses cantos. Esse traço é uma das coisas que mais me atrai a jogos deste tipo. A liberdade que vem com o fardo de espaços onde quem atribui o valor é você. Por que aquele canto está ali se não tem nenhum item escondido? Você decide isso. Eu passei muito tempo apreciando os locais mais remotos de Sephonie puramente por querer ganhar uma nova perspectiva (literalmente) do local. A presença de um modo foto robusto ajudou!
Mesmo sem entrar nos locais explorados no fim do jogo (que não quero spoilar diretamente), até as partes mais profundas das cavernas de Sephonie são esplêndidas. Cada camada é visualmente única e é acompanhada de uma trilha própria. Contemplar, explorar, andar, pular ou quebra-cabeçar; toda ação que você pode realizar te deixa mais próximo do coração de Sephonie, que é personificada pela narrativa.
O casamento de múltiplas disciplinas que Sephonie consegue propor é um de seus maiores triunfos. A cada passo, Amy, Ing-wen e Riyou se tornam mais próximos de suas infâncias, de suas famílias, da ilha, de si mesmos e entre si. O palco sonoro é lotado de músicas marcantes; cheias de plucks, melodias misteriosas e calorosas, e, notavelmente, uma onipresença no espaço do jogo. Elas te acompanham em quase todos os momentos da experiência, com uma intensidade dominante. As músicas não estão lá para ajudarem momentos específicos a brilharem, mas sim para construírem a cena junto do resto dos elementos. Elas estão quase em primeiro plano.
Minha música favorita da trilha. Minha segunda música favorita da trilha. Minha terceira música favorita da trilha. Eu poderia ficar aqui o dia todo.
Sephonie se dedica a explorar seus conceitos até seus devidos limites, custe o que custar. Seu escopo é tão explícito, tão próximo do jogador, que o jogo acaba demonstrando um grau de vulnerabilidade elevado, que também é espelhada nos protagonistas se abrindo com a ilha e entre si mesmos. Dependendo das sensibilidades de alguns jogadores, é ver alguém tocando em algumas feridas estruturais de Sephonie sem muito esforço — mas é essa idiossincrasia vinda do jogo que acaba o tornando tão memorável.
Sua narrativa é um ótimo exemplo disso. As cenas importantes entre os protagonistas são em sua maioria entregues por caixas de diálogo acompanhadas de ângulos de câmera cinematográficos; porém, o estilo de prosa se assemelha ao de um romance. Existem múltiplas seções onde a entrega da escrita se transforma completamente, como na prosa tradicional presente nas seções pós ligação ONYX com uma das “Key Species” (basicamente os bosses) do jogo, que são acompanhados por colagens de imagens evocativas (e a trilha sonora, claro).
Até nos flashbacks ambientados com representações abstratas de locais e pessoas a escrita se transforma. Ver a constante metamorfose narrativa de Sephonie se desenrolar ao decorrer do jogo é assustador de tão refrescante. Existem muitos maravilhosos jogos independentes que conseguem se aproveitar do limiar entre os romances escritos e os videogames, mas é raro ver um jogo da escala de Sephonie executando isso com tanta confiança.
Sephonie continuou o recente legado da Analgesic Productions como um dos estúdios mais autorais do cenário indie atual. Além de ser super divertido, ele apresenta inúmeras características próprias que não vêm carregadas com o medo de serem apresentadas com a força necessária para brilharem. Do início ao fim, Sephonie estende sua mão para qualquer jogador que busque se conectar com ele. Você só precisa estender a sua com a mesma confiança.
“Eu te amo. Chegue mais perto”.
Uma cópia gratuita de Sephonie para Nintendo Switch foi concedida pela Analgesic Productions para análise no Recanto do Dragão.