Historicamente a ATLUS relança seus jogos em versões definitivas que trazem mais conteúdo, qualidades de vida, remasterizações em HD ou qualquer outra coisa que justifique que você compre o mesmo jogo mais uma vez. Foi assim com Persona, que recebeu variados relançamentos de Persona 3, Persona 4 Golden e Persona 5 Royal ou até mesmo Catherine Full Body. Fato é que essas versões trazem diferenças, mas ainda é de se pensar que você consumidor comprou o jogo uma vez e agora terá que comprar novamente se realmente quiser ter acesso aquele conteúdo. De certa forma, você que comprou antes sai perdendo no fim das contas.
Posto isso na mesa, Shin Megami Tensei V: Vengeance é também um relançamento de um jogo já existente, entretanto, talvez seja o relançamento mais saudável da ATLUS (se isso é possível). Anunciado em 2017 e lançado em 2021 para Switch, Shin Megami Tensei V teve uma recepção até que bem positiva, mesmo que existisse uma pressão em cima do estúdio, que por tanto tempo ficou sem notícias de um título numerado após SMT IV em 2013 e o foco dado em Persona após o sucesso da franquia com seu terceiro título.
Entretanto, mesmo bem recebido pelo público, SMT V não chegava isento de críticas: uma história confusa cheia de buracos narrativos, um desempenho tenebroso do jogo no Switch, e até o balanceamento de níveis que requeria um jogador estar em níveis exatos para não tornar o jogo fácil ou difícil demais. Além disso, existem as más línguas que diziam que esse jogo estava incompleto, o que se provou verdade no futuro; logo mais chegamos lá. Então, três anos no futuro, e após 100 horas de jogo, o que podemos esperar em Shin Megami Tensei V: Vengeance?
+ Apoie o RDD comprando Shin Megami Tensei V: Vengeance pelo nosso link de parceiro Nuuvem!
O que há de novo?
Para esse relançamento, a ATLUS mantém algumas “tradições” e repara alguns erros do passado, pois em SMT V: Vengeance existem duas rotas: a Rota da criação — que se dispõe a ser a rota que estava disponível no jogo original, mas ainda com qualidades de vida extras — e a Rota da Vingança — que, para aquele jogou o original, talvez seja a opção viável, já que nela existe uma nova história, uma nova personagem, novos demônios e mecânicas exclusivas. Isso difere de alguns relançamentos passados do estúdio como Persona 5 Royal, onde mesmo que existissem alguns micro insertes da nova história ao decorrer do jogo, se tornava maçante passar pelas mesma coisas (se você fosse o maluco igual a mim) que já tinham sido trabalhadas no jogo original.
Mas para você que nunca jogou Shin Megami Tensei V: Vengeance, o que lhe aguarda é apenas uma jornada de 160 horas, estimasse que para cada rota ser concluída de forma saudável o jogador levará em torno de 80 horas. Para CADA rota. Isso soa meio absurdo de se ler de primeira e continua absurdo quando você pensa que esse numero pode duplicar.
Além de melhorias de qualidade de vida como salvar a qualquer momento ou os trilhos de magatsu que são caminhos alternativos para partes diferentes do mapa que trouxeram mais densidade para a exploração (foi uma forma inteligente de expandir para além daquilo já disponível no jogo original), temos também o Antro dos Demônios. Ele é um hub social entre o Nahobino e seus demônios que cria um laço entre eles. O hub pode gerar, além de boas interações, level ups de status aleatórios, ganhos de habilidades e itens (o que reforça a minha teoria de existir “personalização” de todos os RPGS da SEGA, vide Drink Links do Yakuza 8, ou os laços de amizades em Soul Hackers 2), de certa forma, se você for o tipo de pessoa que costuma apenas jogar os jogos normalmente, as mudanças mais substanciais acabam aqui porém, se você for mais dedicado a série, bem, isso não é nem a ponta do iceberg. Lutas com super chefes, um modo de dificuldade super desafiador, os inúmeros finais, tudo isso, sim, fará que o jogo tenha as 160 horas prometidas.
A criação procede a vingança
Fato é que SMT V: Vengeance é robusto, recheado de conteúdo, híper-mecânico, mas foi uma jornada que botou em jogo muitas das convicções que tenho ao que espero de um jogo. Talvez isso se dê pelo fato de Shin Megami Tensei ter uma dependência de seus trunfos passados, visto que têm muitas referências à figuras e momentos de Shin Megami Tensei III: Nocturne e uma estrutura narrativa muito similar à ele também.
+Leia também: Rhapsody II — dialogando com sombras | Análise
Personagens não são personagens, são apenas arautos de suas verdades: o humano que tem um demônio dentro de si que pode dominar o mundo, moldar à sua forma, seja ele na ordem ou no caos, ou em nenhum desses. De certo é que o Cânone da Criação (rota do jogo original) é um repeteco de tropos antigos, é uma história inchada e onde realmente faltam pedaços de informações. Os seus até então arautos não correspondem com aquilo que acreditam, e me faz pensar sobre existir realmente uma tentativa narrativa em contrapor papéis ou induzir o jogador ao erro.
Tudo aquilo que envolve o jogo original é a parte mais fraca desse pacote. Por mais que ainda ter acesso a ele é realmente importante, ter que jogá-lo foi um fardo. Além dos problemas citados anteriormente, a rota da criação possui um começo lento, uma história desconexa dos temas que tenta abordar, e mesmo que eu não acredite em utilidade para algum meio narrativo, existe uma parte do jogo onde realmente não acontece muita coisa. É um vazio, um espaço entre o meio o fim. Na ordem você parece ser alguém sem escrúpulos, no caos tudo faz sentido (e não parece ser tão rebelde sem causa) e no neutro você é um covarde.
E da vingança vem a desforra
Em contrapartida, o Cânone da vingança é o complemento e também antítese da rota anterior, com uma nova personagem sendo a peça basilar daquilo que eles querem construir. Os dilemas da rota da vingança fazem mais sentido, visto que os personagens que haviam destaque na rota da criação são meros coadjuvantes, as divindades que em algum momento desejavam recriar o mundo aos seus olhos são inimigos comuns. Até mesmo o início do jogo é subvertido para algo novo. Existe uma distância significativa, mesmo que parte dela se assemelhe com a primeira, as informações que antes faltavam, aqui residem.
Em estrutura, o cânone da vingança é mais linear, não tendo tantos chefes e sendo mais focado em progredir com a história e construir o dilema: Qual é a utilidade no sofrimento das pessoas se não apenas para fomentar o poder de outras? (sugestivo, eu diria).
Diferente da rota original, a sua decisão final é interferida pelas escolhas feitas em toda a jornada: ir para o caminho da fé e restabelecer a ordem ou devolver o planeta ao caos e criar um mundo para os humanos acaba sendo uma tarefa que levará tempo e exige sua atenção.
O fim sempre fora de vista
É digno de nota que Shin Megami Tensei V: Vengenance é um jogo realmente robusto (e se você for daqueles que quer precificar a sua experiência). É um pacote que trará uma eternidade de conteúdo para você explorar e uma inédita tradução em português para um Shin Megami Tensei. Ele serve aqueles que já tiveram uma experiência anterior com o título e põe mudanças naquilo que soa familiar, e também serve como algo totalmente novo para aqueles que nunca tocaram no jogo e terão sua primeira experiência com a série. Mas aqui entram umas questões que devem ser abordadas e que passaram pela minha cabeça enquanto jogava: desde quando o nosso consumo de videogames deixou de ser saudável?
Quero dizer, quando se tornou aceitável ter materiais e comentários validando as quantidades cavalares que um jogo deve oferecer? Entendo que cada um (apesar de odiar a palavra) consome aquilo que bem entende, mas usando o jogo dessa análise de exemplo, quantas dessas 80 horas são passadas com sessões intermináveis de grind? E segundo o que pude perceber ao usar algumas Mitamas que aumentavam o nível, é quase metade do tempo, e é nisso que eu penso: como isso pode ser saudável?
Tenho um conhecido que está jogando esse jogo por mais de 2 meses, com mais de 150 horas e isso domina parte da vida dele. Não que isso seja ruim. De algum modo, ele se diverte e adora fuçar em tudo dentro do jogo, mas quando isso (quase) aconteceu comigo, eu comecei a encarar aquilo como trabalho, e a minha ligação com o jogo se quebrou, por mais que ele fosse super competente naquilo que se propõe.
Necessariamente o que fez eu pensar que meu momento de lazer poderia ser levado como trabalho (além de escrever essa analise que vocês leem)? Talvez a progressão soe artificial? a quantidade massiva de conteúdo? Talvez seja um daqueles casos que “esse jogo só não é para mim”?
Creio que não chegarei em uma resposta concreta aqui, afinal, parte da subjetividade do indivíduo e também de certa forma de como o videogame se rege num sistema capitalista ainda mais acelerado que em seu nascimento. No mais, Shin Megami Tensei V: Vengeance vale a sua atenção, mesmo você venda sua alma para o diabo no processo.
Agradecimentos à Nuuvem, que nos disponibilizou o código de Shin Megami Tensei V: Vengeance para análise. Você pode comprar sua cópia enquanto apoia o Recanto do Dragão através deste link!