Katekyo Hitman Reborn! é uma das minhas obras favoritas desde que eu era pequenininha. Assim como Fullmetal, a minha obra favorita com toda certeza, também foi escrita por uma mulher. Reborn é sobre um garoto perdedor que não consegue acertar em uma única coisa em sua vida, Sawada Tsunayoshi — Tsuna. Tsuna é ridículo e mesmo sua própria mãe o reconhece como “bom-em-nada Tsuna” (ainda assim ela torce pelo seu filho). Todo mundo sabe que ele é um fodido.
Tsuna tinha desistido da sua vida até que um tutor particular veio da Itália com um aviso prévio vindo apenas algumas horas antes. Reborn é um Hitman da poderosa família Vongola da máfia italiana, e veio treinar Tsuna como o décimo chefe da família pelo seu parentesco com o primeiro. No início, o mangá era apenas comédia, com cenas de ação conceituadas apenas no humor e no absurdismo. Um mangá da Shounen Jump. Com o tempo, vai ficando mais sério e se tornando… um mangá da Shounen Jump, mas de luta. Não é disso que eu quero falar hoje.
O primeiro arco, Daily Life, é conhecido por ser monótono e chato. Quer dizer, eu não acho que esse é o consenso mas todo mundo gosta de Reborn pelo que ele se torna após esse arco. No anime são vinte episódios até que entremos em Kokuyo e as coisas mudem realmente, mas até lá, muita gente acaba empurrando com a barriga os episódios de comédia cotidiana por não serem muito interessantes, e pela sua repetitividade. Não estou aqui pra mudar seu pensamento sobre a qualidade dessa parte, se você sequer conhece ou leu/assistiu Reborn — mas é a primeira vez que eu pego pra ler o mangá desde o início e contra minhas expectativas eu realmente achei um assunto para falar sobre que não é apenas “eu amo Reborn porque faz parte da minha vida”.
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Embora eu ame o anime e ache que ele flui bem melhor nesse primeiro arco (afinal foi feito após ele já ter sido terminado no mangá, deixando bem claro para os animadores que as coisas iam sim mudar futuramente), ele nunca trouxe algumas reflexões sutis da caracterização dos personagens que só pude ver agora no mangá. A vida do Tsuna é caótica desde o começo, e todo dia ele está a um passo da morte… por culpa do Reborn. Mas a verdade é que ele nunca foi feliz antes, ele nunca teve amigos e, mesmo que de um jeito extremamente conturbado, Reborn ajudou Tsuna a conseguir isso. O método de ensino principal de Reborn é a exposição, lançando Tsuna em todas as situações que ele evitaria a todo custo e dando à ele o empurrão necessário para enfrentá-las. Vencer uma partida de vôlei, se declarar para a Kyoko, não tem como Tsuna escapar dessas inconveniências. Reborn não vai deixar.
Para executar seu método de ensino agressivo, Reborn utiliza balas especiais chamadas “Shinu Ki Dan”, ou “Bala do Último Desejo”. Ao disparar uma na testa de Tsuna, o garoto morre. Nos seus últimos momentos, Tsuna pensa no seu maior arrependimento. E, ao se arrepender, renasce (REBOOOOOORN!!!!) como uma fênix para realizar seu desejo, agora só de cueca e com uma chama no buraco da bala. Em “Shinu Ki Mode” o corpo do Tsuna desliga suas defesas, fazendo com que ele se esforce ao máximo em tudo. Tsuna vai além dos limites do próprio corpo para realizar seu último desejo e viver sem arrependimentos. Essa escrita do personagem é pouco presente no anime, embora mencionada.
Você poderia dizer que a Shinu Ki Dan é um poder dado ao Tsuna por Reborn, mas esse não é o caso. Tudo que é realizado pelo protagonista na história é feito por ele, e apenas impulsionado por Reborn. Tsuna, mesmo sendo bom-em-nada, ainda tem determinação dentro de si. Mesmo desistindo da vida e do seu futuro, para ele, morrer não seria o certo. Ele não quer ir embora sem antes viver de verdade e mudar as coisas. Tsuna não quer morrer se arrependendo de sua vida, mas sim feliz. Essa felicidade, mesmo que seja com a ajuda de um tutor particular hitman, foi alcançada por Tsuna com seu último desejo.
Essa narrativa especial e esse conceito estão intrinsicamente ligados com a ideia de viver a vida ao máximo, daquela frase clássica do Memento Mori. “Lembre-se que vai morrer”, porque sabendo que um dia tudo termina, podemos realmente viver. Tudo em Reborn acontece por conta desse pensamento. Os personagens precisam renascer, e para isso, precisam morrer antes. Ao morrer, Tsuna encontra motivos para continuar vivendo, e retorna para realizar seu último desejo sempre que precisar.
Essa ideia é apoiada por outros personagens quando são atingidos pela Shinu Ki Dan. Embora seja raro, outras pessoas já foram alvos da arma de Reborn durante a história, com resultados diferentes. Talvez o mais interessante seja Sasagawa Ryohei. Ryohei é irmão de Kyoko, a mulher que Tsuna tanto ama. Ryohei vive sua vida ao máximo seguindo seu lema: “extremo”. Nada que ele faz, ele faz pela metade. Mesmo que algo vá dar errado, mesmo que seja burro, se ele tem vontade, vai fazer ao extremo. Em uma luta com Tsuna que foi iniciada por motivos cômicos (é um amistoso de boxe), Tsuna precisa vencer mas apenas conseguiria com a Shinu Ki Dan. Só que em Shinu Ki Mode seu poder destrutivo e descontrolado pode seriamente ferir Ryohei, ou até matá-lo. Para remediar a situação, Reborn decide atirar em Ryohei com a bala especial.
Quando a Shinu Ki Dan atinge alguém sem arrependimentos, ela age como uma bala comum. Um tiro de revólver na testa mataria qualquer pessoa, e Reborn é um hitman, ele não daria um tiro que não fosse certeiro. Mas que arrependimento um homem como Ryohei teria? Bem, nenhum. Ainda assim, ele se levanta. Ryohei se levanta sem qualquer mudança notável, apenas com uma chama no buraco do tiro. Ele continua normal, com sua personalidade de sempre, e apenas quer continuar a batalha. Ryohei não tem arrependimentos, mas nem por isso ele morreria com a Shinu Ki Dan — afinal, Sasagawa Ryohei está sempre no seu último desejo. Ele sempre vive no extremo.
Outro personagem que interage com essa ideia é Yamamoto Takeshi. Yamamoto é o primeiro amigo de verdade do Tsuna no mangá, porque eles são parecidos. Mesmo sendo um gênio do Baseball, essa é a única coisa que ele sabe fazer. É tudo que separa ele de ser um “bom-em-nada” também. Mas, por conta disso, ele tem uma mentalidade totalmente diferente do protagonista. Baseball é a única coisa que ele tem, e mesmo que seja uma pessoa carismática, gentil e animada, Yamamoto tem uma ideia bastante depressiva sobre a vida. Quando ele quebra o braço tentando melhorar no jogo, para ele, a vida não tem mais sentido. Ele sobe em cima do prédio da escola pronto para se jogar, quando Tsuna o interrompe e mostra seu ponto de vista (do qual já expliquei). Essa não é uma cena que existe no anime, onde Yamamoto já começa sendo um cara legal sem esse pequeno arco. Quer dizer, para um anime que censura cigarro e sangue, a menção de suicídio não seria muito favorável.
O fato de que Tsuna é um perdedor não o faz querer morrer — muito pelo contrário. Mesmo dizendo que é um fracasso, essa frustração só faz com que ele queira seguir vivendo. Essa é a diferença entre os dois personagens, e também o que os une. Na verdade, durante toda a história, mesmo nas partes sérias pós-Peaceful Days, é isso que importa. Gokudera não entrega sua vida pela família Vongola como sacrifício, porque ele também quer viver e viver com seus amigos. Tsuna não é um herói de shounen por algo moral, nem é um chefe da Máfia por dinheiro e poder, mas porque se ele não lutar ele não vai poder viver com seus amigos também. Até o fim da história o único objetivo do protagonista é esse — continuar vivendo. É natural que Peaceful Days como arco termine, porque mesmo que a vida de Tsuna seja um caos e ele não seja o melhor aluno da turma, ou o melhor esportista da escola, ou o melhor mafioso de todos os tempos, agora ele é feliz. E daí pra frente, tudo que acontece na história são pessoas que por seus próprios motivos podem tirar de Tsuna e seus amigos a possibilidade de continuar vivendo. No final, eles são apenas adolescentes buscando passar tempo juntos. Reborn é sobre morrer e renascer, e por conta disso, viver. Viver com seu último desejo.
CIAOSSU.