Aviso: este ensaio possui spoilers leves de The Cosmic Wheel Sisterhood
“O universo é grande, mas o pensamento pode ser maior ainda” — Uma sábia bruxa no espaço sideral.
Eu tive um diálogo com meu professor de crítica onde conversamos sobre “critical play”, a linguagem de videogame e mídia num geral; e ele me veio com o seguinte questionamento — como você pode dizer que videogames são sobre interatividade sendo que em outras mídias nós também estamos interagindo? Interagimos com nossos cérebros; e às vezes com olhos e ouvidos.
Naquele dia, não consegui refutá-lo. Em videogames, nós estamos interagindo num sentido material, com nossas mãos, moldando e criando a experiência, literalmente. Nós fazemos o mesmo em livros e filmes mas… não exatamente?
Se olhar essa conversa por cima, parece besta. Ninguém está errado — estavamos apenas apontando o óbvio em nossa perspectiva individual. Mas acontece que é impossível analisar arte de uma forma “material” ou “literal”.
Pensando sobre isso depois, eu mudei de ideia. Interatividade não é a essência dos jogos — é a tangibilidade. Nós somos artesãos.
E foi assim como eu me senti jogando esse jogo. Um artesão, criando cartas com minhas próprias mãos, moldando a realidade.
The Cosmic Wheel Sisterhood traz consigo uma proposta ousada — brincar de adventure com diálogos ramificados e decisões impactantes na trama através de adivinhações com cartas baseadas em tarô. Uma estrutura narrativa abertamente e conscientemente arbitrária, com escolhas que geralmente são decididas através da sua interpretação das cartas — que abre espaço para diversos questionamentos: se eu posso escolher uma entre outras interpretações, logo, as outras também estariam corretas (mesmo que drasticamente diferentes), então… o que eu fiz não foi adivinhação? Se minha leitura de uma carta tem o mesmo resultado de outra, então minhas escolhas não importam?
Em qualquer jogo com foco narrativo e ramificações, vão existir esses pontos; válidos ou não, o gamer gosta muito de liberdade e utilitarismo, então zero surpresas até aqui. E mesmo que essas questões sejam levantadas de um jeito ou de outro, o jogo assume o compromisso com as cartas, assume a responsabilidade de uma estrutura arbitrária em cima da agência do jogador — e assume que eu não estava lendo o passado ou prevendo o futuro, e sim moldando-os, alterando a realidade.
Através desses poderes, a metalinguagem permeia o jogo inteiro. Desde a mecânica principal de criação de cartas até os diálogos e puzzles que integram parte do jogo; Cosmic Wheel Sisterhood é uma grande colagem. Colagem de figuras visuais, colagem da narrativa, colagem política, e até culinária — você está o tempo todo montando esse artesanato com as próprias mãos, superando o universo com os pensamentos, mas como jogador, com isso, vem uma grande responsabilidade.
O poder de recriar eventos no espaço-tempo é realmente inusitado para um artesão, visto que, à princípio, eu só estava fazendo o básico do artesanato — colagem de figurinhas representativas com o tempero dos quatro elementos fundamentais da natureza. Isso era o suficiente para me fazer sentir consciente do que estava por vir nas minhas leituras. Mas o poder de… moldar a realidade?
E foi aí que eu me lembrei da conversa que tive com meu professor. Nós estamos o tempo todo moldando a realidade dos jogos, seja com o cérebro, olhos, ouvidos… e com as mãos. Moldar a realidade é natural para um artesão; e esse jogo faz um comentário extremamente cativante sobre as condições do mesmo.
O grande ponto sobre artesanato no jogo coincide bem com o tema de “destino” na trama — a forma em que a protagonista se acorrenta à destinos fixos e molda a realidade de outrem (o tempo todo) para mudar o universo para melhor, fazendo de tudo para reescrever esses destinos e se desacorrentar de tais circunstâncias, mesmo que isso signifique sacrifício. O sacrifício do micro pelo macro.
A felicidade que dá de ver outras bruxas realizando seus sonhos e alcançando diversas conquistas através de meu artesanato — é imensurável.
No fim, eu saí de The Cosmic Wheel Sisterhood triste pela conclusão, mas feliz pela jornada como um todo. O jogo me abençoou com uma fé genuína, foi quase como uma epifania — fé por aqueles que se recusam a acreditar em suas capacidades como artesãos, fé por aqueles que nos abençoaram com suas cartas, fé pelo universo, fé pelo nosso destino.
+Confira também nosso outro texto de The Cosmic Wheel Sisterhood!
Notas
Resolvi escopar o texto dessa forma por conta de devaneios que vieram pela minha cabeça. O jogo é extremamente politemático, rico em worldbuilding e com muita coisa pra debater sobre — PORÉM… um texto maior significaria uma demanda maior de tempo, spoilers e interesse por parte de leitores que possivelmente (provavelmente) não jogaram o jogo. O jogo é realmente muito aberto à diversos debates e estou extremamente feliz com isso, mas POR ORA não me satisfaria bater a cabeça, forçando interpretações do fundo das sensações, só para abranger um conteúdo maior em relação ao jogo.