The Cosmic Wheel Sisterhood – inseguranças e jornadas | Análise

Apesar de ter adentrado no Recanto sem muitas expectativas de qual seria meu papel no ecossistema do blog, ainda fico surpreso que me tornei a coisa mais próxima do arquétipo de Jovem Místico™ do time. Então honrando meu papel (e o enorme hype que eu estava para experimentar esse jogo desde o meu texto do Steam Next Fest), trago a vocês a review de The Cosmic Wheel Sisterhood!


Atenção: The Cosmic Wheel Sisterhood trata de temas sensíveis como automutilação, suicídio, discriminação, disforia de gênero, depressão, ansiedade, temas sexuais, nudez e uso de drogas ilícitas; por isso, pedimos que os leitores prossigam por responsabilidade própria.


The Cosmic Wheel Sisterhood

The Cosmic Wheel Sisterhood é uma “experiência narrativa” desenvolvida pelo estúdio espanhol Deconstructeam (os criadores de The Red Strings Club) e publicada pela Devolver Digital. O jogo gira em torno da estória de Fortuna, uma bruxa condenada a um exílio milenar após ter feito uma divinação que ia contra o “bem-estar” do seu próprio convento. Dois séculos de solidão depois, ela decide recitar um encanto proibido e firmar um pacto com o Beemote (Behemoth) “Ábramar” com o fim de se libertar do exílio e retomar sua antiga vida.

Firmando seu pacto, Abramar explica à Fortuna como o tarot que ela usava anteriormente era um limitador de seus poderes, tendo em vista a vastidão do universo; com isso, ele começa um treinamento para que Fortuna possa produzir seu próprio baralho, e é assim que é introduzida a mecânica mais interessante do jogo: o sistema de deck-building esotérico.

A mecânica de deck-building é dividida em dois aspectos: custo e construção. O custo vem a partir das energias primordiais que constituem nossa realidade alinhadas entre os potenciais mágicos de Fortuna e Ábramar, essas energias primordiais sendo:

  • Ar: O que representa o invisível, o espaço negativo, aquele que impregna o todo. O subconsciente coletivo, o contexto de nossa existência.
  • Água: Aquela que representa substância, sentido, a verdadeira natureza das coisas. Água representa a emoção.
  • Terra: O puro potencial. Determinação, empoderamento e todas as coisas que te empurram para frente. A base, o suporte, a fonte e a direção de seu vigor. Terra é força.
  • Fogo: A adversidade, o confronto, tudo que está contra você. O desafio, a intimidação, o atrito em toda luta. O conflito.

Ao alinhar cada uma dessas energias com o Beemote, você ganha permissão para começar a produzir seu próprio baralho de divinação. Essa construção é baseada em escolher presets apresentados pelo jogos, que são divididos em três categorias:

  • Esferas: Os fundos da carta;
  • Arcana: A figura principal da carta;
  • Símbolos: Toques especiais para adicionar mais significado ou substância na composição da carta.

O sistema é disparado a coisa mais charmosa do jogo e tem um potencial gigantesco – mesmo quando decidi rejogar o começo da campanha para escrever esse texto, admito que acabei me perdendo completamente no processo de criação de cartas, pois ele te absorve de uma maneira inacreditável. Isso junto da narrativa expansiva do jogo permitem florescer um fator de rejogabilidade enorme (e olha que eu era extremamente apegado com meu primeiro deck).

O jogo não se dá esse trabalho todo de criar uma mecânica profunda e interessante de criação de um baralho esotérico se não for para usá-lo bem, né? Fortuna é uma cartomante e, no momento que seu exílio é flexibilizado, diversos visitantes chegam em sua porta com angústias, dúvidas, sonhos e às vezes até ameaças. Cabe então à nossa querida protagonista resolver todos esses conflitos com sua divinação e seus conselhos.

Normalmente, durante os jogos, cada pergunta vai ser equilavente à tiragem de uma carta. Durante a construção de seu deck, cada elemento escolhido para a composição das cartas vai trazer consigo uma série de significados, todos imbuídos de significados e simbolismos. Ao tirar uma carta X e atribuí-la a uma pergunta Y, o jogo te oferecerá uma série de respostas que você pode dar ao questionamento do visitante baseado nos significados atribuídos à carta criada.

Cada resposta dada ao cliente te devolve uma certa quantidade de “Energia dos Quatro Elementos” baseada no que você decidiu dizer a ele ou não, criando um loop de feedback interessante ao jogador: se você tiver um deck desproporcionalmente carregado com um único tipo de energia, muito provavelmente você só vai receber aquele tipo de energia de volta baseado nas suas tiragens, fazendo com que você tenha que procurar outros meios para conseguir energia dos outros elementos para expandir e variar seu baralho posteriormente.


Passando para comentar brevemente sobre a narrativa do jogo (na qual me aprofundarei mais na segunda metade do texto, com spoilers e tudo mais), eu acredito que essa foi uma das visual novels mais interessantes que joguei nos últimos tempos. A escrita do jogo realmente parece viva e tudo que você escolhe dizer terá alguma consequência, mais cedo ou mais tarde.

Isso cria um senso de responsabilidade que te absorve cada vez mais para dentro da história, junto do maravilhoso worldbuilding e dos temas que a estória trabalha. The Cosmic Wheel Sisterhood não tem medo de falar sobre problemáticas sociais, autodestruição, relacionamentos pessoais, discussões políticas e muitos outros assuntos mais específicos com a naturalidade e respeito que eles merecem ser tratados.

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Minha maior crítica sobre o jogo reside ainda no aspecto da narrativa: senti que alguns personagens no jogo foram criados pelos desenvolvedores na tentativa de representar conceitos que os próprios roteiristas não compreendiam muito bem. O principal exemplo disso é a Junreisha, a bruxa matemática, uma das bruxas mais antigas do seu convento que constantemente fala sobre como “a entropia é a chave para todas as coisas”, entretanto, todas as ações e ideais da personagem vão exatamente contra a ideia de entropia.

A princípio eu acreditava que isso poderia ser um subtexto para mostrar como a personagem tem interesses próprios que contradizem seus valores pregados, mas isso acaba se repetindo com diversas outras personagens e, no fim das contas, acabou me causando um desconforto destoante do resto da narrativa. Discorro mais detalhadamente sobre essas críticas na segunda metade do texto, mas, para ser justo, essas ainda são ocorrências breves e pontuais comparados ao roteiro geral da obra.

Se você procura por uma visual novel com temáticas e discussões ocidentais do nosso presente, envoltos de um esoterismo muito bem trabalho e um mundo feminino mágico repleto de personagens diverdas e bem construídas, The Cosmic Wheel Sisterhood é uma ótima escolha dotada de um altíssimo valor de rejogabilidade.


Falando sobre os aspectos visuais do jogo, a Devolver já é conhecida por publicar jogos de pixel art de deixar a gente boquiaberto; The Cosmic Wheel Sisterhood não é uma exceção. Apesar do jogo não apresentar um sistema de iluminação exuberante aos moldes de Eastward, Sea of Stars e outros grandes sucessos de pixel art mais recentes, a arte faz um trabalho extremamente competente em criar uma atmosfera confortável e envolvente.

Também achei interessante o fato do jogo trabalhar com uma interface de tela dividida para organizar as diferentes ações que você pode tomar ao invés de simplesmente dedicar uma tela inteira a elas. Me dá a impressão de que o time estava tentando reproduzir estética de um livreto, e eu acho isso irado.

Por fim, um elemento que vi pouquíssimas pessoas comentando sobre é a soundtrack do jogo. A compositora fingerspit (The Red Strings Club; Gods Will Be Watching) fez um trabalho exuberante com cada faixa do jogo. Esse é um dos poucos projetos que consigo dizer que a OST foi para um lado puxado mais para o prog. As faixas mais curtas da OST contém pelo menos três minutos de duração, enquanto as mais longas ultrapassam a marca dos dez com facilidade. Eu vou deixar alguns exemplos das minhas favoritas abaixo para vocês poderem sentir a energia que elas trazem à experiência do jogo.

Uma cópia gratuita de The Cosmic Wheel Sisterhood para PC foi concedida pela Devolver Digital para análise no Recanto do Dragão.

O jogo se encontra disponível para PC (Steam e GOG) e para Nintendo Switch.

Bruxas, narrativas e identidades.

Nessa segunda metade do texto irei me dedicar a comentar mais as minhas opiniões pessoais sobre a narrativa do jogo, trazendo alguns elogios, reflexões, críticas e etc.

The Cosmic Wheel Sisterhood foi uma experiência curiosa pra mim pelo simples fato de como abordou temas tão pessoais com uma casualidade que você só encontraria conversando sobre esses assuntos com pessoas, sabe? Existe um elemento de pessoalidade e empatia, uma sensibilidade que só conseguimos encontrar nesses tipos de obras independentes, quando não existem enormes times de produção e marketing controlando o que deve ser entregue ou não para a hipotética audiência na tentativa de garantir que seja o mais ampla o possível, visando apenas o faturamento máximo. Isso vem para o bem, mas também tem casos que essa pessoalidade pode ser um pouco “divisora de opiniões“.

Eu acredito que é impossível fazer uma análise desse jogo sem falar sobre a personagem trans presente nele. Durante o decorrer da história, Dahlia, uma de suas melhores amigas, te conta sobre uma bruxa que acabou de ascender; a ocorrência foi tão recente que a mesma nem sequer escolheu um nome para si. Cabe a você então ajudá-la no processo de se descobrir como bruxa.

A introdução inteira da personagem é extremamente respeitosa e trabalhada de maneira bem real, incluindo os conflitos que a mesma sofre nesse período (aparentemente) inicial de sua transição. Além disso, eu também achei muito corajoso da parte do time em fazer o design pré-transição dela ser um design masculino convencionalmente atrativo, mostrando que o ato de performar um masculinidade polida não necessariamente te exclui da questão de questionar seu gênero atribuído em nascimento.

Porém, independente do quão respeitoso e louvável sejam todas as decisões citadas até aí, entra então a questão que divide os mares no jogo: durante todas as conversas a protagonista, Fortuna, reafirma que é comum ela se sentir deslocada no período inicial, comentando que somente o tempo trará respostas sobre como ela quer se enxergar, se mostrar e o que verdadeiramente deseja performar em sua nova existência como uma bruxa; entretanto, uma das principais questões de ser uma bruxa nesse universo é entender qual seria sua “área de expertise”. Isso aparentemente pode ser feito através de outros processos, mas no jogo somos introduzidos ao método através da infusão de um chá: você faz uma entrevista com a recém-bruxa, entende suas inseguranças, desejos, sonhos e afins e imbui tudo isso no chaleiro para criar uma infusão que despertará o caminho inicial da bruxa que ela quer trilhar.

Toda essa sequência é muito íntima e bonita, mas o que me deixou com o coração confuso é que ao final do procedimento a recém-ascendida simplesmente atinge a forma que sonhava instantaneamente.

Como eu já deixei bem explícito em análises anteriores, dificilmente quando estou jogando algo eu o jogo completamente sozinho, geralmente estando acompanhado de um grupo de amigos bem próximos aos quais sempre costumo streamar o que estou jogando, e dentre eles tenho uma amiga trans muito querida que acompanhou toda minha jornada com o jogo.

No momento que finalizamos essa sequência ela abertamente verbalizou como ela não gostou dela e como essa tendência da “transição instantânea” representada nas mídias é algo que a incomoda profundamente. Este desabafo da minha amiga foi realmente algo que ficou na minha mente, pois o espectro das pessoas trans é um universo vasto; então por mais que essa ideia de você simplesmente poder tomar uma poção mágica que vai te trazer a forma e passabilidade com a qual você sempre sonhou seja um sonho, uma base e um apoio confortável para muitas pessoas, pode também ser algo que simultaneamente insulta as vivências, lutas e histórias pessoais de muitas outras.

Deixando bem claro, não quero que levem como uma crítica, até porque eu como o homem cis que sou não tenho espaço para elaborar além disso, mas peço para que considerem essa reflexão. Até porque dentro dos padrões de respeito à comunidade trans o estúdio fez mais do que o possível para tratar esse tema com a qualidade que ele merece.

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Seguindo agora para outras questões, no terceiro ato do jogo ocorre um plot-twist onde a obra vira um jogo de manejamento de recursos e você é jogado em uma corrida política contra suas duas melhores amigas (e uma outra personagem que simplesmente não existia até aquele ponto da estória). Para mim foi realmente surpreendente essa virada de chave na gameplay e eu sinto que o pacing do jogo atinge seu ápice justamente nessa etapa da história, onde é lhe dado um prazo de 32 ciclos (dias) onde você precisa coordenar sua equipe de campanha, estudar o cenário político, fazer alianças, lidar com a concorrência e almejar o melhor resultado possível dentro dessa corrida.

Eu também acho louvável o quão sincera é a escrita nessa etapa: o jogo não tem medo de mostrar como planos de governos neoliberais com pitadinhas de fascismo são super bem recebidos pelo público, e de mostrar como as pessoas enxergam planos focados em horizontalismo e poder popular como “utopias ingênuas e inalcançáveis”. Isso tudo sem contar que é oferecida a Fortuna a decisão de ser a pior versão de si mesma, podendo optar até para estratégias de campanha racistas para diminuir uma de suas oponentes (eu achei essa opção assustadora, não tive a coragem de optar por ela em nenhuma run do jogo e não pretendo tão cedo).

Também elaborando um pouco mais sobre o que falei anteriormente no texto, eu tive um certo problema com a representação das bruxas mais antigas. Aedena existe somente para ser um papel antagônico a boa parte do cast e simbolizar um tiranismo quase que puro em essência; ela faz um ótimo trabalho nisso e o twist de revelar que a pessoa responsável pelo exílio que te puxou ao ponto mais desesperador de sua vida se encontra morta e você não pode mais fazer nada é incrível, mas em contrapartida Junreisha e Cupressa são no mínimo contraditórias. Elas parecem carregar consigo ideais muito fixos e paralelos muito claros a ideologias conservadoras; entretanto, é bizarro que os “motores principais” para esses ideias são coisas completamente opostas ao que elas pregam.

Junreisha insiste em uma ideia de entropia mas ao mesmo tempo todos os planos de ações dela envolvem tomar decisões que “retém energia” para que seja melhor utilizada por aqueles que entendem, ao invés de deixar a energia e o caos do universo seguir como devem. Cupressa para mim é um caso mais complicado ainda, pois ela prega ideias de coletividade, crescimento sem a necessidade de predar em outros seres vivos, e uma espécie de “tecnocracia” onde por ela ser um ser sem sentimentos humanos, também supostamente não apresentaria falhas humanas, o que em tese demonstraria que ela seria mais capaz de liderar sem ser corrompida; o problema é que o plano de governo inteiro dela condiz com toda e cada palavra que sai da boca dela, a pior parte sendo que o jogo não te dá a opção de apontar essas contradições óbvias fazendo com que em diversos momentos eu acreditasse que ela fosse uma personagem feita para não se levar a sério (além de que ela é a bruxa historiadora, o mínimo que ela deveria saber é que tecnocracia é o caminho mais rápido e fácil para a corrupção).

Mas no fim de tudo, a maioria dos jogos que trago pro Recanto costumam ser experiências muito íntimas e por isso não consigo bater o martelo em todas as opiniões que coloco aqui. The Cosmic Wheel Sisterhood não é diferente nesse aspecto. Muito de como a estória do jogo se apresenta consiste em refletir como você decide se portar naquele mundo, o quão longe você está disposto a ir em busca do que você deseja, o que você está disposto a sacrificar, o que importa para você e como você lida com isso.