Desde 2003, a franquia de jogos de corrida Trackmania, da Nadeo, vem dominando os sonhos de seus fãs mais dedicados. Se você acabar amando um destes jogos, sua invasão no seu dia a dia é inevitável — você acorda repentinamente de um sonho com uma batida que te levou à estratosfera, toma café pensando em bugslides, e dorme pensando naquela fase. Aquela em que você ainda não tomou a Medalha do Autor.
A reputação atual de Trackmania se deve, em muito, ao seu modo Stadium, onde você corre com um veículo de Fórmula 1 de modelo não especificado, bradando a bandeira de seu país em busca do tempo perfeito numa pista localizada em um estádio absolutamente enorme. A popularidade deste modo é tão grande que hoje em dia ele se tornou o prato principal. Mas, em seus primórdios, a variedade era o que definia a franquia.
O primeiro Trackmania veio com uma proposta assustadoramente simples para o mercado de jogos de PC: você corre em uma pistas de temáticas diferentes para bater as medalhas de tempo. Cada tema, denominado “Environment”, possui seu próprio carro e ambiente moldados para variações infinitas de pistas. Além das oficiais, o robusto editor de mapas elevou a longevidade destes jogos à um novo patamar. De certa forma, Trackmania me lembra a cena de modding de Doom mas, na verdade, a ideia do editor vem de SimCity.

Eu amo estes jogos. O primeiro possui os temas “Snow”, “Desert”, e “Rally”, que foram inclusive adicionados ao Trackmania 2020 no aniversário de 20 anos da franquia. O segundo Trackmania, Sunrise, seguiu a onda de novos temas, com “Island”, “Bay” e “Coast”. Apto para seus visuais praianos e urbanos com os nasceres e pores do sol mais tocantes que eu já presenciei num videogame.
Esta sequência de temas foi moldando a franquia até a chegada de Stadium com Trackmania: Nations Forever, que apresenta complexidades e nuances assustadoras até quando comparadas aos anteriores. Até seus visuais são diferentes; este é outro tipo de jogo. A estética é a competição, a fome por recordes é todo o apelo.
Os outros temas coexistiram com Stadium até quando a Ubisoft adquiriu a Nadeo em 2009. Trackmania DS, Trackmania² e Trackmania Turbo seguiram esta tendência com sucesso. O problema é que Stadium é simplesmente grandioso demais pra compartilhar os holofotes com outros temas em pé de igualdade.

Assim, nasce Trackmania 2020, um soft reboot de uma franquia que nunca teve narrativa alguma. Ele veio como um jogo apenas voltado ao Stadium e com um modelo de assinatura no lugar de uma compra permanente. Parte do intuito era unir o público, que antes se dividia entre múltiplos jogos com física e visuais diferentes, mesmo que similares.
Como Trackmania 2020 é um jogo em constante mudança, falar dele requer muita contextualização por trás. Resumindo e simplificando, ele funciona assim: Cada uma das quatro estações de um ano recebe uma campanha inédita de 25 fases cada. Pessoas que baixam o jogo gratuitamente sem assinar podem jogar 10 delas; assinantes jogam todas. Com todas, quero dizer que podem jogar todas as fases já lançadas à vontade, até quando a assinatura acabar. Ou seja, é similar ao ato de comprar o jogo. Você só não pode receber campanhas novas caso ela expire. Ah, e a assinatura também te confere acesso a qualquer mapa da comunidade, campeonatos, partidas online e afins. Opa, quase esqueci! Os jogadores gratuitos recentemente começaram a receber uma rotação de cinco pistas curtas semanais chamadas Weekly Shorts onde podem competir contra recordes secretos. Os assinantes também podem jogar essas pistas e todas as anteriores de quebra. Ufa.

É confuso, mas posso te assegurar que era mais confuso ainda na época em que existiam duas assinaturas pagas diferentes, recentemente unificadas pra deixar as coisas mais simples (e aumentar o preço para todos). Neste passado agora distante, os jogadores gratuitos podiam jogar a campanha sazonal por completo. Ainda fico muito triste que isso foi retirado. A assinatura agora é apenas anual, nada de pagar por mês ou trimestre. Ela custa R$84,99.
Olha, esse modelo é confuso e pede uma boa grana por ano, mas são cerca de 100 fases de campanhas oficiais inéditas, além de 260 Weekly Shorts e todas as outras centenas de pistas lançadas anteriormente; suas para sempre. Mesmo assim, meu medo da Ubisoft um dia fechar os servidores e deixar o jogo inacessível é gigante. Só espero que, se um dia isso acontecer, as pistas existentes continuem existindo de forma offline. Fora isso, o acesso de Trackmania 2020 me parece melhor do que o de Fortnites e gachas por aí. As coisas ao não desaparecem em rotações para quem paga a assinatura e o progresso não é balanceado em volta de um cassino.

Esta discussão sobre o modelo de monetização é importante pois é a primeira coisa que qualquer jogador terá que lidar ao demonstrar interesse por Trackmania 2020. Este é o preço que a Ubisoft Nadeo resolveu pagar para executar sua ideia de um jogo que unificaria os fãs em uma só bandeira.
Em meu tempo com o jogo, fui livre para desfrutar centenas de pistas. Completei algumas campanhas, notavelmente a primeira já feita para o jogo, a do Verão de 2020. Ela foi a única desenhada inteiramente pelos veteranos da Nadeo, uma informação que só consigo traçar do streamer Wirtual. Desde então, fãs são contratados para construírem os tão detalhados mapas que constituem cada campanha.
Como em alguns dos jogos passados, elas são divididas em cores com dificuldade crescente, cinco para cada. Branco, Verde, Azul, Vermelho e Preto. Ao jogar a campanha da temporada atual, seja lá qual for, você deve ter todas as medalhas de prata até então para liberar as fases vermelhas e todas as de ouro para liberar as pretas. Isso não é fácil.

As fases de Trackmania pedem tudo da sua alma pra serem completadas na medalha de ouro, pelo menos pra mim. Eu sou muito ruim no Stadium. Só sei jogar Rally ou Valley bem. Ok, mas estamos falando de Stadium!!!!! Para dirigir bem seu carrinho de Fórmula 1, você deve se atentar ao tipo de superfícies em que pilota e ajustar seu veículo entre curvas diretas com o pé no acelerador, curvas onde você larga o pé, e curvas que requerem drifts para serem navegadas eficientemente. É difícil se adaptar ao drifting, pois ele reajusta violentamente o arco de sua curva e pode te fazer perder uma marcha.
Este conceito é engraçado, não? Em qualquer Stadium existe um sistema de marcha, mas a transmissão é obrigatoriamente automática. Existe uma pequena luz azul em seu carro no Trackmania 2020 que te permite visualizar sua marcha atual e as suas transições, mas ela é tão minimalista que a maioria dos jogadores perfeccionistas resolve baixar um velocímetro como plugin. Certas abordagens só podem ser executadas em marchas específicas, e o comportamento de seu veículo também é influenciado pela já mencionada superfície.

E como Trackmania 2020 ama suas superfícies. Você dirige em asfalto, grama, terra, areia, neve, gelo, metal, madeira, metal, água e até plástico. Ser bom em terra não significa que você vai saber maximizar seu movimento na muito lenta areia, ou que você vai saber lidar com os deslizes mais sutis da grama. Superfícies diferentes sempre existiram na franquia, mas o carro de Stadium desse jogo é o que mais deve sofrer com elas.
Muitos dos jogadores old school da franquia preferem se manter em mapas de asfalto, terra e grama para demonstrar o aprendizado acumulado que os fez se apaixonar pelo jogo em primeiro lugar. Muitos ficam apenas nos mapas estilo “tech”, que focam em ação veloz no asfalto. Mas assim, eu fico muito feliz que essa mistura maluca de superfícies está aqui.
A megalomania do editor de pistas se deve às inúmeras adições feitas pra ele nesse jogo. Como esse jogo foi feito pra durar anos e anos como o único Trackmania ativamente sendo atualizado, ele precisa entregar a gama de customização párea para tal. Isso inclui também os diferentes efeitos de boost, como “reactor”, que pode te fazer flutuar ou colar no chão dependendo de sua direção.

Mesmo que você possa usufruir de inúmeros mapas customizados focados diretamente no seus nichos favoritos, como puzzle, trial, RPG, tech, ou até bonk, suas utilizações em mapas das campanhas oficiais me interessam muito. Elas moldam a direção visual e de design passada à maioria dos jogadores, e mapas de todo tipo são presentes nela — com a possível exceção de trial — mas com um maior minimalismo que deixa todos fáceis de abordar, por mais que fiquem realmente meio difíceis mais pro final de cada campanha.
Eu adoro essa distinção. Ela grita que Trackmania 2020 não quer só oferecer o editor robusto pra incentivar um playground infinito, mas também usufruir de todas suas ferramentas mais peculiares. O que me encanta em seu modelo, como live service mesmo, é que as campanhas diferentes apresentam maiores ou menores graus de experimentação. A de Outono de 2024 é lotada de seções com carros do primeiro Trackmania, pistas que te fazem dar a volta nelas mesmas ao contrário entre múltiplas seções mirabolantes de ice slides, e até um mapa quase inteiro de plástico que parece um brinquedão de shopping. Em contraste, a do Inverno de 2025 resolveu puxar as rédeas e oferecer mais pistas estilo tech tradicionais, com testes de precisão constantes e um grande foco em otimização de marchas. Ter acesso a todas essas interpretações e reinterpretações do mesmo jogo em um só pacote é admirável.

Pensando bem, DOOM II de 1994 tecnicamente recebe expansões até os dias de hoje. Algumas saudosistas, outras radicais; todas DOOM. Mapas feitos por fãs assíduos para todo tipo de apreciador existente. Este modelo é o que Trackmania 2020 tanto busca — DOOM apenas não está atrelado a um modelo de assinatura ou curadoria assídua como nas oficiais de Trackmania.
Eu… odeio ter que fazer essa distinção. A centralização dos mapas da comunidade em servers da Ubisoft preocupa-me com o futuro do jogo, e ainda é limitado para quem está ativamente pagando a assinatura. Você pode receber os mapas oficiais para sempre, mas a comunidade desaparece de sua vista. Não é como recomendar uma WAD dificílima de DOOM como Swim With the Whales para aquele seu amigo que quer sentir um gosto do que a comunidade está fazendo. A barreira de entrada é bem maior. Pelo menos ainda temos o Nations Forever disponível de forma realmente gratuita.
Voltamos, então, para o que está em Trackmania 2020. A base de aprendizado de um novato, por mais que muito útil para alcançar as medalhas de ouro, não deve ser seu foco no início de uma jornada. Controlar seu carro com a minúcia necessária é o que mais importa. Qualquer microajuste de direção pode radicalmente alterar seu tempo numa pista. Alguns truques, como a navegação entre rampas em paredes, pedem um bom olho para o ângulo de seu veículo e a forma como você o “joga” para o alto. Uma curva aberta cruzada por um ângulo fechado vai te custar caro. Mesmo dentro dos confins arcade quasi Hot Wheels, você deve delinear os ápices de cada curva para seguir rotas similares às de corridas reais.

É até possível dizer que a melhor forma de aprender os fundamentos de Trackmania 2020 é pegando a medalha de ouro das fases brancas de cada uma das campanhas. Mas eu não posso dizer isso, pois acho que a melhor forma é buscando uma medalha ainda mais ambiciosa: as secretas medalhas de autor.
Cada fase, desde as oficiais até qualquer customizada, tem um tempo a ser batido ainda melhor que o considerado ouro. Este é o tempo que o autor do mapa bateu antes de publicá-lo. Ele pode ser relativamente próximo do ouro como uma escolha de balanceamento ou absurdamente difícil de abater. O simples ato de descobrir a existência destas medalhas é uma das maiores surpresas que o jogo proporciona a um novato que resolveu ficar bom em uma fase.
Brigar contra o próprio autor é um desafio trivial para jogadores muito experientes, que então vão direto para a próxima escala da competição, mas para mim ainda é o maior desafio que aguento no Stadium. Brigar com o próprio autor do mapa que você passou tanto tempo treinando é impagável; e o melhor é que o jogo nem revela o tempo necessário para bater esta medalha.

O fantasma de ouro delineia muito bem rotas boas o suficiente para te ensinar, mas para ir além dele você precisa criar sua própria estratégia. Corte curvas, tome algumas abertas e não erre um mísero drift. Prepare-se para o efeito de rodas molhadas que vai pegar em alguns tipos de chão, e masterize o controle dos Reactor Boosts. Cada mapa vira uma versão extrema de si mesmo. Tudo culpa do equivalente a um par time escondido.
Correr contra um inimigo invisível que possui todos os conhecimentos escondidos e otimizações para levar vantagem em cima de ti frustra tanto quanto emociona — a equação secreta que demarca os passos de Trackmania 2020. Este não é um jogo com uma estética de campeonato como seu antepassado Trackmania Nations ESWC; as cores fortes e mistas foram escolhidas para agradar os olhos e passar uma sensação de leveza. Ele não quer parecer uma experiência hardcore, pois realmente não precisa ser. Mesmo assim, Trackmania é um jogo indiferente.

Seus erros podem ser definidos nos milissegundos. Uma fase inteira pode ser arruinada só por causa de uma minúscula seção de gelo, caso você não tenha dominado as peculiaridades dos ice slides. Você pode ter batido uma medalha de autor de primeira, pra só então perceber que ainda está apenas no top 25000 do mundo naquela fase. Não importa qual nicho de mapa você preferir, cada um vem com suas mecânicas avançadas apropriadamente amedrontadoras. Você não pode escapar do clamor que este jogo tem por otimização. Afinal, você está sempre competindo com todos os outros que já o jogaram.
O âmbito final da competição solo de Trackmania é a tabela de rankings. Ela segue dividida entre rankings mundiais, continentais, nacionais e regionais (só para países grandes). Ao melhorar numa fase, você é informado de sua posição nas três escalas.
No começo, isso não importa. Caçar uma medalha é o mais importante antes de pensar na sua posição. É depois da medalha de autor que a escala de Trackmania infla sem parar. Você não precisa mirar no top 100 do mundo de imediato; o regional pode estar logo ao seu alcance.

Digo isso com certeza pois, na minha jogatina de Trackmania² Valley — um dos jogos mais Source Engine não feitos na Source Engine de todos os tempos — eu cheguei no top 29 do Brasil! Admito que esse não é um dos jogos com a maior concorrência, mas eu ainda tive que me lotar de boas medalhas de autor pra chegar lá. Seu tempo, em contraste com sua posição no top de uma certa pista, te gera pontos de campanha que são usados para definir seu rank.
Em toda sua simplicidade de controles que envolvem apenas acelerar, frear e mexer o volante, Trackmania é a franquia de corrida mais conceitualmente minimalista que já tive contato. Sua proposta é tão atraente que até parece que apenas um jogo da franquia é necessário para carregar este conceito. Mas, para todos os labirintos de madeira que voei a 600 KM/h no primeiro Trackmania; para todas as colinas que dominaram minha mente em Trackmania² Valley; para todas as línguas que gritaram comigo em Trackmania Turbo; para todas as praias nas quais chorei em Trackmania Sunrise: eu não posso deixar Trackmania 2020 reinar sozinho.
Uma cópia de Trackmania (2020) para PC foi concedida pela Ubisoft para análise no Recanto do Dragão.