1000xRESIST — lamentos em coro | Análise

1000xRESIST — lamentos em coro  Análise

1000xResist é o primeiro jogo do estúdio sunset visitor 斜陽過客, vindo de um time composto primariamente por pessoas de famílias imigrantes da ásia para o Canadá. Entre diversos outros temas, ele se aprofunda na… experiência entre gerações de uma família imigrante que veio de Hong Kong para o Canadá. 1000xResist explora o futuro de acontecimentos muito recentes.

Noto ser importante mencionar o quão diretas são as referências aos protestos de Hong Kong de 2019 contra a lei de extradição. 1000xResist não consegue parar quieto em um lugar no tempo, mas diversas de nossas visitas colocam nossos olhos em recriações de situações de confronto entre protestantes e policiais na época. As datas batem, e a família da Iris ter se mudado para o Canadá em resposta também bate com a onda de emigrações vinda dos protestos. Mas este aqui não é um jogo contemporâneo em boa parte de sua duração. Ocupamos futuros distantes.

1000xResist análise

Alguns dos focos aqui são a narrativa, o senso de lugar, e as acomodações que o jogo prepara para montar uma fluidez marcante entre ambos e outros. O ângulo de visão principal é em terceira pessoa com câmera no ombro, mas ele é quebrado constantemente em áreas com câmera fixa, primeira pessoa, e perspectivas desconexas variadas. Diálogos simples mantém o ângulo de câmera estável, mas qualquer interação especial ou crucial para o progresso narrativa é enquadrada com cortes rápidos entre ângulos ditados pela passagem de diálogos (que são todos dublados em inglês, inclusive). Você pula entre eras e perspectivas de forma especialmente considerada. Nenhuma oportunidade de enquadramento único fica para trás.

A principal protagonista de 1000xResist é a Watcher, que vive em um tempo onde nomes não importam, apenas funções. Sua função é apenas observar. Ela recentemente se tornou uma das irmãs principais da sociedade onde vive, que é composta inteiramente por clones da mesma mulher, intitulada ALLMOTHER. Nos dias de hoje, a Allmother fica isolada longe da Orchard (um pomar muito fofo que serve de cidade!) onde as clones vivem e serve como uma figura religiosa forte. 

Na era onde o jogo se inicia, todas as irmãs e Shells (as meninas sem funções executivas importantes, mas ainda trabalhadoras acopladas ao domínio de uma irmã) seguem dogmas religiosos estritos relacionados à Allmother e a sociedade fechada onde vivem. A Orchard parece um fruto de arquitetura futurista, mas não necessariamente uma construída pelas irmãs e Shells. Desde quando esse local existe? Por que só existem elas aqui? Quem é a Allmother?

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Enquanto as outras habitantes da Orchard fazem estas perguntas, a Watcher tem a oportunidade de descobrir tudo. Ou quase tudo. Uma das habilidades que ela ganha em sua função é a Comunhão, onde ela se conecta diretamente com o passado da Allmother para vivenciar as experiências dela em primeira mão. Descobrir qual foi a história dela antes de ser clonada e assim, se tornar uma testemunha direta do passado. Infelizmente, Allmother não é uma deusa tão aberta com seus fiéis. Mesmo ainda abrindo espaços vulneráveis de sua memória para Watcher, fragmentos importantes são barrados de serem vistos por ela de forma arbitrária.

A primeira memória vista pela Watcher é a do último dia que a Allmother, que na época chamava Iris, passou antes do mundo ser invadido por alienígenas chamados de Occupants. Vale notar que esta memória é mesclada com uma versão futura do local que você alterna em tempo real, mas vamos focar nas partes que demonstram o passado mais distante. Com os Occupants, veio uma doença que tem o sintoma principal de fazer a vítima chorar compulsivamente.

Boa parte dos alunos expressa descontentamento com o baile de formatura daquela noite que pode acabar em um evento de contágio em massa, mas a Iris parece… de boa. Ela não chora. Não demonstra fraqueza. Ela não tem com o que se preocupar. Mas sua amiga Jiao tem. As duas são imigrantes da china, mas a Iris fala apenas Cantonês enquanto a a Jiao gosta de usar palavras em Mandarim. A Iris se adaptou aos costumes norte-americanos e a Jiao não conseguiu ainda os acompanhar. Mesmo em situações tão similares, ainda é fácil achar características que as separam.

Não ajuda que a Iris parece tratar a Jiao muito mal e, após rejeitar o pedido dela de irem no baile como pares, a Iris deixou ela pior ainda. É bem amargo situações onde a única intenção da Iris é esconder as partes que ela considera indesejáveis da sua própria amiga. A Watcher percebe isso em sua comunhão, mas não é o suficiente para quebrar a imensa fé que ela tem na Allmother. Até que a Fixer, uma das irmãs principais, vem deixar as coisas complicadas.

Neste momento inicial, já dá pra entender que a Watcher e a Fixer tem um passado juntas. Mesmo assim, quando a Fixer revela uma das memórias escondidas da Allmother, Watcher segue o protocolo. Ao invés de ouvi-la e internalizar o que viu, ela só a denuncia para a líder Principal, o que resulta em pena de morte para Fixer. O governo bota fogo nela.

A partir daí já dá pra descobrir um dos segredos de 1000xResist. Por ficar cega em sua fé, até a própria protagonista cometeu um ato extremamente cruel com uma pessoa que amava. Ela não é tão diferente da Iris. Existe uma insistência neste jogo de caracterizar Watcher como uma figura revolucionária complexa, em partes por sua posição como uma “figurante” política e religiosa que viu demais e se rebelou quanto por ter sido complacente com a visão ditatorial da Allmother no passado.

A radicalização da Watcher vai ficando mais clara com o passar dos capítulos e ela não fica sem consequências por ter causado a morte de Fixer. O que seria um arco bem convencional de radicalização em vista de um governo ditatorial ganha cores com as ações multifacetadas da Watcher e sua interação com o resto das Shells que vivem na Orchard.

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Algumas das minhas partes favoritas são nos momentos onde você é livre para explorar algum hub lotado de personagens para conversar e segredos para descobrir. Nestes momentos a visão em terceira pessoa tradicional é adotada para deixar sua exploração desinibida e você pode fuçar o labirinto enorme que é a Orchard livre de pressões de tempo ou urgência da história. 

O que torna a Orchard especial como uma área aberta é o seu layout confuso e interconectado. Você pode ligar um compasso estilo Skyrim para ver todas as clones com quais ainda não conversou, e mesmo assim achar todas não é uma tarefa fácil, mas ainda sim é muito satisfatório, a ponto de tornar estes momentos prazerosos mecanicamente da mesma forma que algum outro jogo mais focado em gameplay ou combate.

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É normal adquirir familiaridade com uma área aberta quando um jogo te faz visitá-la tantas vezes, mas raramente isto é um processo tão inerente à exploração. Uma escada rolante simples no sul da Orchard que parece te levar ao primeiro andar acaba só te deixando sair dela lá no norte do mapa. Se a próxima clone com quem você queria conversar está no primeiro andar do sul, você deve achar caminhos bem menos convencionais para chegar lá.

Claro, existem muitos jogadores que não vão clicar com este tipo de navegação para tirar o proveito máximo da narrativa, mas acredito que o risco que os desenvolvedores tomaram de potencialmente alienarem uma parcela dos jogadores vale a pena. 

Estas conversas são todas opcionais, mas adicionam muito à experiência. Como as Shells são nomeadas por função, você acaba atrelando os adjetivos utilizados para nomeá-las à suas personalidades. A Observant Shell, por exemplo, parece meio alheia e solitária, mas sempre está atenta. A Studious Shell, que trabalha na biblioteca com a Knower, ama falar curiosidades e dar aulinhas de história para a Watcher. Chega um ponto que você consegue reconhecer algumas delas apenas por suas poses na Orchard e mal precisa mais do adjetivo acoplado aos diálogos.

O mais impressionante é como esta diferença cultural deste mundo de ficção científica vai além de um elemento estético (que por si só já seria divertido), pois 1000xResist não quer apresentar uma sociedade estática. Você vê a Orchard e seus habitantes mudando radicalmente durante sua playthrough e eventualmente a aparência mais religiosa da sociedade abre espaço para uma mais laica e… até nomes começam a existir!

A intenção aqui é ficar o mais livre de spoilers o possível, então acabarei com este exemplo por aqui. Durante os 10 capítulos do jogo, mudanças tão drásticas irão ocorrer que é difícil não spoilar algo super especial só de comentar por cima. Não diria que uma discussão de 1000xResist sem spoilers se torna fútil, mas é difícil tocar em alguns de seus temas sem entrar em detalhes complicadinhos…

Mas ainda posso elogiar o jogo sem dó! Quero tomar um tempo para enfatizar como os sons e visuais contribuem para deixá-lo memorável. São 85 músicas na trilha, e a maioria mistura alguns instrumentos clássicos como pianos e violinos com um trabalho de sintetizadores arrepiante. Olha essa! Demarca até alguns momentos mais calmos com um senso de que algo gigantesco está prestes a dar muito errado, ou que você vai descobrir algo que não deveria.

É redutivo descrever uma trilha tão gigante apenas como no parágrafo acima, então se prepare para músicas chorosas, inocentes, tensas, pesadas, quietinhas, barulhentas, esparsas, densas, etc… A pura quantia de músicas garante um retoque pessoal a cada cena da sua longa jornada que provavelmente vai passar das 10 horas. Quando menos esperar, alguma música vai vir te atingir diretamente.

1000xResist análise

Elas conversam muito bem com a direção do jogo, que já comentei no começo do texto. Passar diálogo por diálogo é uma ação vinda do jogador de forma direta, mas é fácil se perder em um ritmo perfeito ditado por si mesmo nos maiores eventos da narrativa. É. as cutscenes, em maioria, requerem que você pressione um botão para passar o diálogo e avançar as animações. Outra coisa que não irá agradar alguns de fãs de jogos narrativos… Mas menciono isso para enfatizar o quanto isso adiciona um grau de expressão do próprio jogador às cenas.

Guiado pela mão invisível da direção, você pode conferir ênfase extra para diálogos ou passar rápido por discussões que vão e voltam entre personagens. Uma fusão maravilhosa da linguagem cinematográfica e prosa literária comum em romances.

Olhando por este lado, 1000xResist acaba se encaixando bem no ritmo que você esperaria de um RPG moderno, mais pelo estilo de diálogo que por temática ou gameplay. Pessoalmente, amo ler diálogo desta maneira, e acredito que acaba conferindo muita personalidade à obra e minha experiência com ela. É uma das únicas formas de me fazer chorar em um momento emocionante sem falha. Afinal, uma cena contínua de cinema pode acabar passando rápida demais para eu a internalizar por completo. Aqui, qualquer implicação da narrativa fica clara.

No fim da jornada, uma implicação em especial é inescapável. As mulheres que vivem entre as eras de 1000xResist possuem laços análogos. Todas sofreram de formas diferentes. Todas erraram, e algumas erraram feio. Uma linhagem em especial é lotada de lamentações similares que podem ser vistas de geração em geração. A Iris não é tão diferente de Watcher, assim como a Watcher não é tão diferente da Principal, por exemplo. O ciclo de machucados que assolam elas é muito difícil de ser quebrado e por vezes é tão forte que nunca pode sumir por completo. Um toque de Azul pode abraçar até o mais cruel vermelho. A história só pode realmente começar com perdão.

1000xResist quer que você abra espaço para sentir. Desde as pequenas conversas com as Shells e Sisters até o terror das mulheres que devem lutar tanto para encontrarem perdão e paz em meio a um mundo tão injusto. Mesmo se falhar nisso, ele parece grato de ter você dando seus ouvidos.

Uma cópia gratuita de 1000xRESIST para PC foi concedida pela Fellow Traveler para análise no Recanto do Dragão.