A dissonante beleza de Castlevania: Harmony of Dissonance

A dissonante beleza de Castlevania: Harmony of Dissonance

A palavra “dissonância” significa falta de harmonia. Um amontoado de entidades, sejam elas notas, cores ou outra coisa, que gera desconforto. Uma ideia de inconsistência, uma diferença possivelmente extremista, polarizada, entre pontos que acabam não fazendo sentido juntos. Na música, a dissonância pode ser feita com notas tocadas ao mesmo tempo, criando um som possivelmente alarmante. Apesar da ideia de que a dissonância é uma forma “pobre” de arranjar notas em acordes, uma música realmente interessante usa tanto notas consonantes quanto dissonantes. Uma composição pode ser sem graça se não possuir dissonância.

Harmony of Dissonance

Castlevania: Harmony of Dissonance é o segundo jogo da franquia para o Game Boy Advance e, seguindo a negativa recepção de Circle of the Moon, ele precisava elevar seu nível. Mais uma vez, o foco vai para um Belmont, agora um legítimo. Apesar de que Juste não se pareça com nenhum Belmont na árvore genealógica da família e aparenta estar em uma fase rebelde na qual pintou o cabelo de branco para parecer com o filho do Dracula só pra causar discórdia na família, ele é um legítimo caçador de vampiros, com um porém: Juste possui o sangue dos Belnades também correndo por suas veias. Por conta disso, suas capacidades vão muito além de balançar correntes e lançar machados. O menino pode invocar chamas, se envolver em cristais de gelo ou até fazer chover facas do céu. São em torno de 50 feitiços avassaladores em um jogo que já é quebrado sem eles. Com suas habilidades hereditárias, Juste Belmont tenta salvar seus dois melhores amigos da tragédia em uma narrativa exatamente igual à de Circle of the Moon… só que em um jogo bem melhor.

Vamos começar com o que mais importa, a movimentação. Essa é a parte que mais se destaca em Harmony of Dissonance. Juste é rápido. Substituindo a corrida de Nathan e expandindo o desvio de Alucard, Juste possui dashes para frente e para trás, que podem ser cancelados entre si mesmo sem esforço. Dessa forma, o personagem passa voando pelas salas do jogo, e nem falamos sobre seu slide (que é, efetivamente, mais um dash), seu divekick, e o já icônico High Jump.

Se não bastasse a movimentação absurda, o novo Belmont também é extremamente habilidoso com seu chicote e as sub-armas hereditárias da família. O chicote de Juste acerta na frente, em cima, atrás e embaixo, e ele nem sequer possui ataques direcionais. Por algum motivo, a hitbox do chicote está ativa desde o primeiro frame da animação, o que significa que você pode atacar inimigos enquanto o Belmont prepara seu golpe com a corrente atrás da sua cabeça. O feeling da chicoteada é muito satisfatório também, rivalizando o de Richter em Symphony of the Night e aperfeiçoando o estilo da família nos Metroidvanias. Apesar dos golpes aéreos serem muito lentos (ao contrário de Nathan), essa decisão de balanceamento é bem inteligente.

Nos jogos abertos da franquia, é comum que os personagens tenham muito controle aéreo. Esse controle é quase nulo nos platformers clássicos, com Maria Renard sendo a clara exceção. Por conta disso, o golpe lento do chicote aéreo faz total sentido, enfatizando a força que Juste tem no chão. No chão, um golpe pode ser cancelado em dash, e então em outra chicotada. No ar, você não só fica preso na animação do ataque como no ângulo e momentum do seu pulo, assim como era nos clássicos. Nathan não tinha essa limitação, podendo até mesmo mudar a direção do seu golpe no meio dele. Em contrapartida, o pulo comum de Graves já era horroroso, não tinha como piorar mais ainda.

Todas as sub-armas são bem divertidas aqui em Harmony, e os livros mágicos deixam até a que você menos gosta útil. É natural a distinção entre cada uma, com adagas sendo usadas em disparos rápidos horizontais (com bastante alcance), machados pegando o ponto cego vertical dos Belmonts, água benta causando dano contínuo aos inimigos no chão e a cruz sendo um completo demônio de DPS como sempre. Mas Harmony também inclui a Bíblia e… Socos!?!?! Juste, como alguns outros personagens da franquia, pode dar socos. Mas não qualquer soco — o personagem infere milhares de socos rápidos gritando “Ora Ora Ora!!”. Não preciso dizer nada, né? Bem, a bíblia gira em uma espiral em volta do personagem. Bem útil, mas não tanto quanto era em Rondo of Blood.

Ao combinar livros elementais, Juste pode realizar feitiços bastante escandalosos e cheios de estilo, gastando MP ao invés de corações. Esse é o substituto do DSS que, apesar de ser um maravilhoso sistema, dava bastante trabalho de seguir implementando em jogos futuros. A magia em si não segue um padrão por ser de um livro específico ou de uma sub-arma específica; uma magia de fogo com um machado pode ser qualquer coisa. Você tem que testar! Dessa vez não vou falar todas as combinações como fiz com Circle.

O layout das áreas e salas do jogo são muito mais criativas e divertidas aqui, em um contraste absurdo com Circle of the Moon. Inimigos mais únicos, plataformas bem posicionadas, progressão diferente pra cada sala… na verdade, quando eu comecei a falar isso tudo pra uma amiga, ela disse: “Dá pra perceber que o jogo que você tava jogando era merda, porque você tá falando de level design normal como se fosse foda”. Precisamente.

Harmony of Dissonance

Além dos desafios serem bons na primeira vez que você atravessa uma sala, quando se torna necessário retornar à elas, a navegação não é monótona como era em Circle. Leva um tempo para que você encontre o segundo dos teleportes, mas existe um número belíssimo de warp points em Harmony, com o adicional de um personagem mais rápido, responsivo e divertido de controlar.

Os visuais também são impecáveis e bem detalhados, seria até seguro dizer que é bonito demais (já falo sobre isso). Depois das dificuldades em entender o GBA para o título anterior, Harmony resolveu usar de tudo que o console poderia oferecer! Sprites giratórios, noções falsas de 3D, muitas partículas, até o Mode 7 (ou algo bastante similar). Apesar de que a parte sonora deixa a desejar na música, os efeitos e vozes usadas (principalmente no Juste) maravilham qualquer um. Harmony of Dissonance é quase tão lindo quanto Symphony of the Night! Bem, isso foi um grande exagero, mas ele tentou bastante.

O preço dos sprites maiores, das muitas cores e dos usos avançados do hardware do GBA tiveram um custo, no entanto: a música sofreu demais. A compressão do som é talvez uma das piores que já vi no console. Os instrumentos de Harmony of Dissonance são como unhas arranhando no quadro, sons de vidro quebrando, uma motosserra cortando aço enferrujado. Barulhos estridentes e repetitivos, tentando muito serem complexos e atmosféricos, sendo impedidos pelos seus irmãos estéticos no visual. Harmony pendeu muito para um lado e deixou o outro sem apoio. A minha tese de um jogo dissonante não se referia à trilha sonora, mas essa é a piada mais contada sobre o título, as suas composições dissonantes. Já eu gostaria de dizer que a dissonância com o qual me refiro se dá pela conexão entre a música e o visual, o level design e sua progressão, o polimento absurdo e o número de oversights do jogo. Harmony of Dissonance é um jogo dissonante por sua inconsistência poética, pelo sentimento de constante confusão que notas tão similares podem gerar quando tocadas juntas, e por que isso faz dele tão bom.

Como já falamos sobre a música e arte, uma das coisas que mais fazem jogadores droparem Harmony of Dissonance é sua progressão. Apesar do início rápido e bastante dinâmico, Juste chegará à Torre do Relógio — uma clássica área da franquia, conhecida por sua dificuldade. Em Harmony, as harpias de fato são bem irritantes, mas nada que você não possa evitar e sair correndo. A questão é que, no lado nordeste da área, existe uma pequena sala. Ao entrar, você encontra a Morte e descobre algo muito interessante: o castelo do Dracula tem duas camadas.

Harmony of Dissonance

Rebobinando, Juste Belmont está no castelo para salvar Lydie. O jovem foi guiado por seu amigo Maxim até o local, sabendo que Lydie foi trazida para cá. Maxim estava em uma viagem de treinamento mas, quando voltou, tudo que sabia era a localização desse castelo. Todo o seu tempo de treino sumiu da mente do rapaz, e por um tempo no jogo vemos o personagem relembrando do seu passado. Por vezes, encontramos Maxim com outra personalidade, dizendo coisas rudes e talvez assustadoras para seu melhor amigo Juste. Ao encontrar a Morte aqui pela segunda vez, as coisas começam a fazer sentido. O castelo foi invocado pelo próprio Maxim, assim que o garoto tomou posse dos restos mortais de Dracula. No entanto, existem dois Maxims lutando pelo controle total do corpo, e um deles é o próprio Dracula. Cada um criou uma versão do castelo, e as duas são como partes separadas do mesmo. Ao juntá-las, destruindo o Maxim real, Dracula voltaria a vida com seu castelo completo.

Castelo A e B possuem o mesmo layout, mas os inimigos encontrados em cada castelo diferem bastante. O visual também é diferente! Para terminar o jogo, você precisa explorar ambos os castelos e trocar entre eles quando necessário. A questão é que, depois de descobrir o castelo real, avançar no jogo se torna um inferno. A maneira mais importante de se guiar nos domínios de Dracula é usar seu mapa, que detalha cada lugar pelo qual você passou. Por conta disso, Symphony of the Night buscava deixar os lugares não explorados bem indicados no seu mapa, algo que Circle of the Moon até que tentou fazer também. Porém, Harmony comete alguns erros meio estranhos no seu mapa.

Primeiro, as áreas do jogo não são muito memoráveis. Não digo que são completamente esquecíveis, mas ainda são bem inferiores quando comparadas a SotN. É fácil se lembrar da Clock Tower, que fica no lado direito do mapa, ou da primeira área, sempre do lado esquerdo. Mas uma boa parte do castelo é fácil de esquecer, e fica difícil saber qual área é qual. Porém, esse não é o maior problema. O problema é que, no mapa, encontrar o seu objetivo é quase um enigma por si só.

Caso tenham lido minha análise de Circle of the Moon, talvez lembrem de como eu falei que os bloqueios eram muito parecidos. Bloqueio horizontal ou bloqueio vertical, e todos possuindo soluções diferentes. O mesmo costuma ocorrer aqui: com portas trancadas, seções de slide, e lugares que ou precisam de Double Jump ou de High Jump. Assim, você sempre vai olhar o mapa e não vai ter ideia do que cada bloqueio vai ser, até porque ainda que você lembre do lugar, pode ser que seja uma porta trancada. Tem três tipos de porta trancada, sem falar nas paredes quebráveis!

Harmony of Dissonance

Mas eu diria que o pior são os segredos que ficam na mesma sala, e logo na sua visão! Porque assim que você os enxerga, o mapa considera aquela sala totalmente explorada. Quando você passar o olho vai apenas ver uma área completamente colorida, sem lembrar que no canto dela tinha um coletável, e talvez um coletável importante como os restos mortais do Dracula (notoriamente escondidos dessa forma mesquinha). E além disso tudo, você lembra que tem dois castelos? E que eles são exatamente iguais? Você não só precisa lembrar das salas bloqueadas uma vez, mas duas, e talvez precise checá-las fisicamente! Algo que, durante uma bela parte do jogo, vai ser uma longa jornada. Não tão longa quanto Circle, mas certamente uma pedra no sapato.

Isso sem mencionar a extensa quantidade de segredos inoportunos do jogo. Coisas que são quase essenciais, como o vendedor. Ele aparece em salas específicas que, à primeira vista, parecem inúteis, mas cada uma esconde um parâmetro obscuro para invocar o vendedor. Em cada sala ele vende coisas diferentes, e se não for dessa forma, Juste raramente encontrará o mercante. Já vi bastante gente que não sabia da troca de livros fora do menu também, que pede que você pressione cima + L/R, ou baixo + LR juntos (esse desabilita os livros). Isso é essencial para o dinamismo dos combates, embora o jogo nunca te fale. Um dos itens mais únicos de Harmony são os Hint Cards, que te contam diversos segredos, e nenhum deles fala sobre os mencionados anteriormente.

Harmony of Dissonance é um jogo bastante polido em diversas áreas. Não só no seu visual, mas no design dos inimigos, conteúdo, escrita… em primeiro olhar, parece um jogo perfeito. Ele aparenta ser, e por muito tempo, será. Até que você começa a perceber, além das coisas já mencionadas, que o combate é extremamente desbalanceado.

Algumas sub-armas e combinações de livros são quase inutilizáveis, enquanto outras, boas até demais. Coisas como Água Benta + Relâmpago (chamada de Gradius pela fanbase) destrói qualquer inimigo sem esforço, a combinação de Cruz + Vento pode invalidar a maioria dos chefes, sem falar na cruz solitária. O próprio Item Crash da Grand Cross (Cruz + Relâmpago), tão simples como sempre foi, é uma arma mortífera pra qualquer inimigo. Por vezes o MP usado não reflete a efetividade do golpe, mas tudo isso é apenas a superfície.

Harmony of Dissonance

Harmony é um jogo quebrado em diversos aspectos, e isso não só dá acesso à diferentes manobras ofensivas ou de movimentação, como também o uso de uma habilidade avançada chamada Damage Stacking. O que acontece é que o contador de danos do jogo só consegue calcular três hitboxes por vez e, quando a terceira entra em vigor, o limitador de hitboxes é momentaneamente desabilitado. O que isso significa? Bem, entenda que seus golpes ficam ativos por muito mais tempo do que realmente estão atacando. Isso é porque uma única chicotada só deveria acertar uma vez por inimigo. No entanto, todo inimigo que entrar em contato com seu chicote durante esse tempo toma dano. Isso é porque a hitbox continua ativa, mesmo quando não causando danos adicionais. Esse sistema funciona bem com duas hitboxes, mas na terceira, ele quebra. Assim, seus golpes começam a dar dano por frame, o que pode até mesmo causar dez hits de uma vez! Um buff tão absurdo no dano pode dizimar qualquer chefe, e nem é tão difícil de fazer! Tudo que você precisa é de uma boa sub-arma ou magia, e tem muitas pra escolher. A própria cruz, solitária, é perfeita pra isso. Caso você a junte com um livro de fogo ou, melhor ainda, um de vento, fica ainda mais fácil e efetivo.

Essas mecânicas, assim como a movimentação do Juste, transformam Harmony of Dissonance em um intenso jogo de ação. Similar à um Mega Man X! Não é a toa que, antes mesmo de descobrir esse exploit, eu já considerava muitos dos golpes e movimentação do Juste bastante similares aos do Mega Man… só que antes eu me referia aos clássicos, sem saber do quão foda Juste Belmont pode ficar com um pouco mais de esforço.

Esse erro técnico tão pequeno mas tão efetivo no jogo permite com que ele se torne um playground de runs absurdas, com muita experimentação e liberdade. É um jogo bastante notório pelas suas speedruns, porque é de fato um Castlevania divertido de dominar. E toda essa situação retorna para meu argumento original — esse é um jogo dissonante, e isso é uma coisa boa.

Mesmo seus problemas fazem dele uma experiência um pouco mais carismática, e diversas dessas falhas contribuem para a diversão. A falta de saves no castelo seria uma reclamação quando se trata de outros jogos, mas foi uma das partes mais legais da aventura pra mim. Afinal, Juste Belmont é um personagem forte e rápido, então faz sentido que hajam tão poucos saves. E, ainda mais, eu me sentia como se jogando Dark Souls, buscando Bonfires sempre que encontrava uma nova área, já que saves são tão escassos e ainda tão importantes.

Harmony of Dissonance

Seu chicote, sub-armas, magias, movimentação e até alguns equipamentos interagem perfeitamente com o jogo e seu level design que, ainda repleto de falhas, proporciona uma das melhores e mais satisfatórias experiências que a franquia pode oferecer. Com tantos jogos bons e quase que completamente consonantes, um pouco de desordem e confusão são bem vindos para criar um título tão bom quanto Harmony of Dissonance, que já sinto vontade de revisitar.

E eu poderia ter terminado a análise aqui mesmo mas… bem, quando você termina a campanha principal, desbloqueia duas novas: Boss Rush e Maxim. O Boss Rush é bem divertido, especialmente quando você domina o Damage Stacking (afinal, não tem como usar livros nessa run). Mas Maxim é a estrela da noite.

Maxim é um personagem simples, que não pode mudar seus equipamentos ou até checar seus status. O menino precisa vencer os chefes do jogo, mas possui as habilidades necessárias para explorar o castelo inteiro sem esforços. Isso não significa que ele é só um Juste todo upado — muito pelo contrário. Maxim tem o dobro de velocidade, tanto na corrida quanto nos Dashes e Slides, tem três pulos, um golpe principal muito rápido, um Item Crash que destrói tudo na tela, uma técnica de cura, uma Sub-Arma que se assemelha muito à Cruz (não tão boa quanto pra Damage Stacking) e, o melhor, um roll. O roll dele é feito pressionando cima + pulo, e pode ser usado quantas vezes quiser e por quanto tempo quiser… gastando MP! Isso dá a ele não só pulos infinitos, mas um spindash no chão e um dive de Mario 64 no ar. O momentum que esse move dá é tão divertido que eu provavelmente vou usar a ideia em jogos futuros meus, porque eu queria que mais jogos tivessem uma ideia tão ridícula quanto essa. Pulos infinitos com saltos mortais? E você pode usar no chão pra sair deslizando como a Maria Renard faz? Quando eu achava que Harmony não podia melhorar…

Acho que só vale um adendo de que o Maxim é feio, muito feio. O spritework dele é horroroso e parece feito por uma criança. É uma palhaçada… não, sacanagem mesmo o que fizeram com o menino. Tá certo que o Juste andando e atacando não é um galã também, mas com o Maxim ultrapassaram todas as noções de descaso. Ele aparece feio assim na campanha, mas jogando é ainda pior. A animação de dash que só mexe o bracinho de trás (de um jeito ridículo) e também sendo reutilizada pra todos os golpes normais do personagem, a corrida ridícula dele, a pose parada que parece ter usado tracing de algum outro personagem, a animação “edgy” de olhar pra trás que só parece que ele tá com vergonha… esse jogo parece que foi feito por uma criança de 10 anos pra um jogo de Flash de Castlevania. Mas não foi! O bom é que, tal qual um jogo de flash feito por uma criança de 10 anos, é muito divertido e único. Obrigada pela atenção!

Harmony of Dissonance fanart by @cstlesecrtstars

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