Call of Duty: Black Ops 6 — um conto ao auge | Análise

Call of Duty: Black Ops 6 — um conto ao auge | Análise

Call of Duty: Black Ops 6 é o 21º jogo da franquia mais pop do meio dos videogames. Ele foi desenvolvido pela Treyarch, Raven Software, High Moon Studios, Beenox, Activision Shanghai, Sledgehammer Games, Infinity Ward, Activision Central Tech e Demonware. Ah, quem o publicou foi a Activision Blizzard, uma subsidiária da Microsoft.

Modern Warfare III (2023) foi o sacrifício feito para Black Ops 6 ganhar o título de “Call of Duty com maior tempo de desenvolvimento”. Enquanto a Sledgehammer teve apenas 16 meses para terminar MWIII (2023), a Treyarch e a Raven aproveitaram quatro anos para dividirem o manto de desenvolvedores principais do tão aguardado debut da franquia como uma propriedade intelectual da Xbox. Este é o primeiro de muitos CODs que serão lançados “Day One” no serviço de assinatura Xbox Game Pass; assim, todos os olhos estão voltados à sua performance na crítica e audiência.

Call of Duty Black Ops 6 análise - troy joga xadrez

Enquanto uma franquia de tal escala sofre mesmo ao espaçar seus lançamentos entre múltiplos estúdios que costumam ter três anos para ir do conceito até o término do projeto, ela ainda se beneficia do burburinho que varia de ano à ano. Todo Call of Duty é criticado incessantemente, mas todos em níveis diferentes. Um quase-novo início todo ano. MWIII (2023) já passou, agora a conversa é sobre BO6.

Ou seja, o foco que coloquei nas consequências bem reais da ficção representada na narrativa dos últimos dois reboots de Modern Warfare não se encaixa perfeitamente na ótica de um Black Ops, que engloba outro gênero de narrativa militar, com outra abordagem.

Nota: Esta análise apenas cobre a CAMPANHA de Call of Duty: Black Ops 6.

Nota²: Esta análise contém spoilers de The Manchurian Candidate (1962), Apocalypse Now (1979), Black Hawk Down (2002), Soldier of Fortune II: Double Helix (2002), The Manchurian Candidate (2004), Call of Duty 4: Modern Warfare (2007), Call of Duty: Modern Warfare 2 (2009), Singularity (2010), Call of Duty: Black Ops (2010), Call of Duty: Modern Warfare 3 (2011), Call of Duty: Black Ops II (2012), Valiant e1m7 (2015, DOOM II mod), Call of Duty: Modern Warfare (2019), Call of Duty: Black Ops Cold War (2020), Call of Duty: Modern Warfare II (2022), Call of Duty: Modern Warfare III (2023), BIG DEAL ’92 (2024, The Campaign Trail mod) e Call of Duty: Black Ops 6 (2024).

a vida, morte e fortuna do fantasma

A empresa encarregada da campanha dos últimos dois jogos da subsérie, Black Ops Cold War e Black Ops 6, é a Raven Software. Assim como muitos outros estúdios que hoje em dia são cotados apenas como produtores de COD por serem subsidiárias da Activision, a Raven possui uma longa história antes de chegar aqui. Fundada em 1990, a empresa produziu clássicos cult como Heretic, Hexen (o 2 é meu jogo favorito!), Soldier of Fortune, Star Wars: Jedi Knight II e Academy, Quake 4, Marvel: Ultimate Alliance, Wolfenstein (2009), e Singularity. Estes são apenas alguns títulos notáveis de seu catálogo expansivo.

É importante denotar o pedigree da Raven Software por um motivo em especial: Black Ops 6 é muito inspirado em um de seus títulos prévios, Soldier of Fortune II: Double Helix, de 2002. Afinal, Jon Zuk, um dos diretores criativos de BO6, foi o diretor de SOF II.

John Mullins, Soldier of Fortune
John Mullins em SOF II: Double Helix

Soldier of Fortune é um FPS absolutamente lotado de gore baseado em uma revista para mercenários americana do mesmo nome. Um videogame baseado numa revista já é um acontecimento raro, mas é especialmente estranho que esta seja voltada à este nicho. Até seu protagonista, John Mullins, é uma pessoa da vida real! Ele é um veterano da Guerra do Vietnã que veio a se tornar um mercenário e então um autor. Além de emprestar seu nome e aparência para o protagonista do jogo, Mullins foi o consultor especial da Raven para ambos SOF; assim conferindo um bom senso de semi-realismo às situações representadas neles.

Antes que você estranhe: sim, ele parece muito o Capitão Price de Call of Duty. Sim, o Price é baseado nele.

Captain Price Call of Duty 4: Modern Warfare
Capitão Price em COD 4: Modern Warfare

Enquanto o primeiro Soldier of Fortune esbanja seu combate veloz, exagerado e ensanguentado no altamente modificado motor gráfico de Quake II, o segundo jogo da franquia escolhe uma abordagem bem mais tática com um sistema robusto de stealth, inimigos mais perigosos e um ritmo mais lento no altamente modificado motor gráfico de Quake III… uma estranha dualidade de direção considerando a proximidade dos dois jogos.

Assim como COD, SOF passou por crises de identidade em seu passado. A Raven até chegou a considerar uma direção tática inspirada em Rainbow Six no início do desenvolvimento de SOF 1. Acredito que essa tendência vazou para Double Helix, que dividiu sua atenção entre a ação cinematográfica desenfreada do primeiro jogo e uma tentativa honesta de fincar os pés no chão com a ajuda da consultoria de Mullins.

Double Helix é um jogo extremamente conflitado. Sua narrativa de larga escala completa com cutscenes longas e um grande foco em tematizar seus níveis apropriadamente apenas enriquecem a experiência, mas no fim ele se confunde ao tentar misturar a ação desenfreada do 1 com suas ideias novas mais cautelosas. Isso sem tocar na má-funcionalidade do comportamento de inimigos que te identificam de longe e possuem mira perfeita, enquanto você precisa atirar parado como se estivesse jogando Counter Strike. O jogo ainda manteve o dual-wielding e gore exagerado do 1! As coisas não batem.

Soldier of Fortune II: Double Helix (2002)

Isso é algo bem comum se voltarmos nossos pensamentos ao que hoje é descrito como o “FPS moderno”. Estes jogos costumam tentar passar um certo nível de verossimilitude em suas campanhas, mas esbanjam sistemas de vida que recarregam automaticamente, checkpoints constantes e deixam a contagem de corpos bater a casa dos milhares. Double Helix me interessa nessa conversa não só por se deixar levar pelo mesmo dilema, mas também por ter passado por ele antes mesmo de Call of Duty sequer existir (ou da fenomenologia de Halo vazar para o resto da indústria).

Sim, as pessoas interessadas em jogos de tiro militares querem experiências tanto cinematográficas quanto verossímeis. Mas essa é uma barganha difícil de atingir… os primeiros Tom Clancy’s Rainbow Six e Ghost Recon eram táticos e realistas, mas eles careciam de uma narrativa envolvida ou de desenvolvimento direto de personagens. Soldier of Fortune II, em contraste, só consegue criar uma fac-símile desta experiência, mesmo que tenha a ambição blockbuster necessária para começar a equação.

Soldier of Fortune II: Double Helix (2002)
Soldier of Fortune II: Double Helix (2002)

Eu não tenho uma visão muito positiva de Double Helix, mas algo que permeou meus pensamentos enquanto o jogava menos de uma semana antes do lançamento de Black Ops 6 era um desejo. Eu queria que, de alguma forma, Black Ops 6 tentasse redimir esta antiga tentativa da Raven. 

Além da campanha de Black Ops Cold War de 2020, o último jogo que a Raven teve sua mão direta no desenvolvimento criativo foi Singularity, de 2010. Uma bagunça envolvendo mudança de dimensões onde todos podem morrer por suas mãos, a depender do final escolhido. Você pode até matar a si mesmo para impedir a bagunça de acontecer em primeiro lugar! Singularity só vem ao caso por ter sido o semi-fracasso de vendas resultado de um desenvolvimento prolongado que firmou o fim da Raven como um estúdio autoral e a colocou como um estúdio de apoio de Call of Duty por tempo indefinido. Eu zerei ele também. É ok! uma mistura de Half Life 2, Bioshock (oh não!) e… Call of Duty. Não consigo deixar de pensar que seu êxito em replicar o sentimento da gameplay de COD foi parte do que firmou o funeral da antiga Raven.

Singularity (2010)
Singularity (2010)

Mesmo assim, a esperança não morre. Eu sou muito fã de Black Ops como subdivisão de COD, e em especial amei a campanha que a Raven fez para Cold War, o quinto jogo da série. Ela seguia com reverência a estrutura bombástica e linear do passado com a propensão dos jogos pós-reboot da franquia (2019 para frente) de deixar o jogador quebrar um pouco mais a rigidez dos seus objetivos.

Com toda essa bagagem em mente, abri Black Ops 6 pela primeira vez com inúmeras expectativas e teorias ricocheteando. Será que este vai ser o grito de liberdade da Raven? Os quatro anos de desenvolvimento sugerem que algo bem ambicioso pode ter sido cozinhado… Como ele lidará com o passado dos Black Ops? A própria presença do número 6 no título implica que até após o reboot, ele pode continuar a história… O quão confiante será esta narrativa? Os outros jogos recentes tinham demonstrado uma falta de comprometimento com suas próprias ideias…

a paranoia americana que sentimos de tão, tão longe

Viktor Reznov em Call of Duty: Black Ops (2010)
Viktor Reznov em Call of Duty: Black Ops (2010)

Após a troca de motor gráfico e rebootada da franquia em Call of Duty: Modern Warfare (2019), o universo já denso e confuso da franquia só se embolou mais. Mesmo sendo um reboot da trilogia começada em 2007, a visão de guerra moderna de MW (2019) é bem diferente. Estes jogos tem seus títulos separados por gênero há muito tempo: a série Modern Warfare é o thriller militar, em estética similar à obras como Black Hawk Down; Black Ops é o thriller paranoico, em estética similar à obras como The Manchurian Candidate (tanto o de 1962 quanto o de 2004!) e Apocalypse Now; WW2, Vanguard e outros sobre a segunda guerra são ficção histórica; o resto é festa, mas eles ainda tem suas influências pautadas em nichos, principalmente na ficção especulativa de Advanced Warfare e Ghosts. 

Menciono estes gêneros literários de forma tão direta pois Call of Duty, como uma franquia enorme e popular, se delimita nesta variedade de gêneros narrativos estabelecidos para se vender para diferentes audiências. Uma benção da série Black Ops no cenário pós-reboot é a de poder se desprender do propagandismo político americano cru que veio a se tornar o apelo completo das campanhas dos Modern Warfare. No universo de Black Ops, o maior inimigo é sempre a CIA.

Call of Duty: Black Ops II (2012)
Call of Duty: Black Ops II (2012)

Com a exceção de Black Ops 4, que é o único COD da franquia principal a não possuir uma campanha, todos os outros envolvem uma narrativa onde o protagonista está sofrendo algum tipo de lavagem cerebral. A imagem mais comum é a remetente aos experimentos da CIA com tortura e lavagem cerebral reais denominados MKUltra (feitos durante a Guerra Fria, entre os EUA e a antiga União Soviética), que é representado de forma abstrata no primeiro jogo e diretamente em Cold War e Black Ops 6. Um banho de possibilidades para narrativas doidinhas ficcionais, e uma boa oportunidade de demonstrar ao jogador os horrores causados pela agência.

No primeiro Black Ops, que se passa em plena Guerra Fria, este não é bem o caso. O protagonista Alex Mason passa sim por um processo de lavagem cerebral ficcional muito similar ao MKUltra, mas o ônus do projeto é colocado nos Soviéticos!! ai ai ai… Call of Duty… mas aí vem o motivo da minha deferência à gêneros literários para descrever COD: boa parte da inspiração para esta narrativa vêm do clássico do cinema americano “The Manchurian Candidate”, de 1962. 

Valiant e1m7 - "The Mancubian Candidate"
Valiant e1m7 – “The Mancubian Candidate” (2015, mod de DOOM II)

Neste filme, feito antes da publicização dos experimentos pós-Watergate, um esquadrão americano é capturado pela coalisão Soviética em meio à Guerra da Coreia. Todos, então, são obrigados a participar de um programa de lavagem cerebral com o objetivo de treinar um dos soldados em específico, Raymond Shaw, a virar um assassino destinado a matar o atual candidato à presidência americana. 

The Manchurian Candidate, em essência, é uma peça do fenômeno Red Scare da Guerra Fria. Seu maior intuito vai além de sua exímia construção; na história, Raymond é manipulado por sua própria mãe, que se disfarçava como uma anticomunista republicana feroz. No entanto, ela estava secretamente ajudando a União Soviética no comitê de Manchúria à ponto de sacrificar a própria sanidade e vontade de seu filho. Raymond mata sua noiva e o pai senador dela à mando de sua mãe. Ele imediatamente perde a vontade de continuar vivendo e, quando se desvencilha do controle de seu código de ativação (a carta Dama de Ouros) com a ajuda do Major Bennett Marco, mata sua própria mãe e seu padrasto —  o tal do “Candidato Manchuriano”. Logo em seguida, ele tira sua própria vida.

The Manchurian Candidate (1962)
The Manchurian Candidate (1962)

O objetivo de uma história tão emocionalmente pesada é botar o medo do diabo no norte-americano comum dos anos 60. Até seus próprios pais podem ser comunistas disfarçados… nem mesmo soldados americanos estão à salvo. Mesmo com isto em mente, é importante ressaltar o quão influente este filme foi para a cultura pop, até considerando sua posição como adaptação de um romance de 1959. Ele fincou suas garras no thriller paranoico e nunca mais soltou.

O primeiro Black Ops, em minha visão, puxa inspiração nas entrelinhas do Manchurian Candidate de 1962 enquanto pega emprestado a estética e ritmo do remake de 2004; este que adora piscar luzes na tela para denotar a lavagem cerebral sofrida por seus protagonistas, além de conter a imagética das múltiplas TVs demonstrando uma amálgama de notícias. Mas, como Black Ops também remete tão fortemente à imagem do MKUltra, é difícil não estranhar sua representação…

The Manchurian Candidate (2004)
The Manchurian Candidate (2004)

Mas este é parte do apelo dessa subfranquia de COD, não? Eu estaria enlouquecendo se afirmasse que entendi todos os pontos insanos da narrativa transhumanista de Black Ops III ou que todos os ~8 finais de Black Ops II me fizeram completo sentido. Uma técnica admirável utilizada nestes jogos é prover o mesmo apelo de uma campanha mais tradicional de um Modern Warfare enquanto te banha de informações diretamente tiradas do mundo real, especulação, encheção de linguiça… e as vezes pontos temáticos significativos. É uma fórmula muito bem-sucedida para firmá-lo em seu gênero literário.

Black Ops Cold War, em contraste, tenta deixar seus aspectos surrealistas e paranoicos mais pro final, e faz boa parte de sua duração ser gasta com ressignificações póstumas. Ou seja, ele parece um jogo normal até o final, fazendo você repensar todo o resto da experiência para sempre. O protagonista desta vez não é Alex Mason; ele basicamente se cola no seu parceiro Woods o jogo inteiro — ambos como símbolos heroicos da franquia. A dupla dinâmica. 

Call of Duty: Black Ops Cold War (2020)
Call of Duty: Black Ops Cold War (2020)

No meu texto de MWII e MWIII, menciono que os protagonistas mais marcantes de COD são vistos como ícones imortais em seus reboots, e assim eles perderam a maleabilidade de vida e morte que possuíam nos primeiros MW. São ferramentas úteis de marketing que não podem morrer para a Activision continuar abusando da fidelidade do público nostálgico. Gaz não morre no reboot como no primeiro jogo; Ghost não morre como no segundo; Price não morre como no terceiro; Shepherd não morre e eu ainda não sei o porquê; Soap só ganha a paz da morte no terceiro reboot, e esta é basicamente a única coisa relevante que acontece naquele jogo.

Este, na verdade, já era o caso em Black Ops desde seu segundo jogo. Você joga com David Mason, o filho do protagonista do primeiro! Realmente uma loucura de se imaginar em uma franquia que quer manter ao menos um pé no chão narrativamente. Woods é revelado como vivo após passar semanas em um contêiner cheio dos cadáveres de seus compadres, aparentemente sem comida ou bebida! O vilão, Menendez, massacra dezenas de soldados armado apenas com uma shotgun de funcionamento incompreensível e um machete. A base de verossimilitude da franquia foi pro saco… que alívio.

Call of Duty: Black Ops II (2012)
Call of Duty: Black Ops II (2012)

Enquanto os reboots de Modern Warfare se enchem de desculpas para manter todos os personagens notórios vivos, Black Ops, em seu passado e presente, se mostra consciente da posição de seus protagonistas-símbolo. De certa forma, é mais surreal ainda ver Mason e Woods juntinhos te ajudando como se você já os conhecesse em Cold War. Afinal, você joga com Bell, uma pessoa muito misteriosa até o fim do jogo. Ela parece fazer parte do time quasi-CIA montado por Russell Adler para caçar o grupo soviético renegado Perseus, mas o plot twist do final do jogo te mostra outra verdade.

Bell é a vítima do programa MKUltra escolhida por Adler. Ela tem memórias de ter lutado no Vietnã com ele, mas elas são todas falsas. Bell era afiliada à União Soviética e Perseus, mas foi capturada por Mason, Woods e Adler no início do jogo. Após a lavagem cerebral, o time de Adler buscou chacoalhar a mente de Bell para ela lembrar informações confidenciais de Perseus e ajudar o time. O que os “grandes heróis” Mason e Woods fazem em meio à tortura inimaginável de uma prisioneira de guerra? Eles ajudam Adler! O premio de Bell por ajudar o oeste, caso o jogador escolha o final verdadeiro, é ser morta à sangue-frio por Adler após ele chamá-la de herói.

Adler
Call of Duty: Black Ops Cold War (2020)

Além de ser um ponto dramático extremamente marcante, esta decisão me faz ver Cold War como um jogo muito malandro. Estes jogos não têm tanto medo de criticar a CIA quanto o resto da máquina militar norte-americana, mas tocar em uma ferida como o MKUltra de forma tão direta e mostrar como outros soldados foram cúmplices no processo (até o MI6 entra na brincadeira) é o mais próximo que eles conseguem chegar.

A missão que revela a lavagem cerebral da Bell, inclusive, é um ótimo exemplo da abordagem da Raven com os elementos surrealistas que marcam Black Ops. “Break on Through”, tão inspirada por Apocalypse Now quanto por The Stanley Parable, vê Bell revivendo suas memórias falsas com Adler na Guerra do Vietnã após ser ativada com uma injeção no olho e as palavras-chave “temos um trabalho a fazer”. Você então passa por uma colagem exagerada de um Vietnã de brinquedo feito apenas para Adler te levar às suas memórias reais escondidas nas falsas — uma conversa com o líder de Perseus ocorrida num bunker. Desobedecer as ordens de Adler no meio da tortura descarrilha ainda mais os devaneios de Bell, te levando à informações extras, brincadeiras de design, e até uma seção com zumbis.

Call of Duty: Black Ops Cold War (2020)

A imagem do Vietnã e da Guerra Fria como demonstrada em Black Ops Cold War é uma de generalidades e abstrações. Uma empacotada do sentimento americano sob o valor dos soldados que tiveram que se enfiar onde não eram bem vindos. Uma guerra que os EUA perderam e se envergonharam de sequer terem participado. Com isso, os olhos da percepção pública desta vez foram voltados ao soldados, múltiplos dos quais foram alistados contra suas vontades numa loteria. Após o conflito, 268 soldados receberam medalhas de honra. Desde então, apenas 30 foram condecoradas, 7 na Guerra do Iraque. A Guerra do Vietnã marca uma representação brutal e relativamente recente da imagem do “soldado traumatizado”. Quando vemos uma obra feita após esta guerra, como o filme Black Hawk Down, que adapta um livro de não-ficção sobre a Batalha de Moghadishu de 1990, o trauma e o heroísmo são inseparáveis. Em uma parte do filme, os Sargentos Shughart e Gordon são cercados e eventualmente mortos por grupos de Somalis (civis e combatentes juntos) após a queda do helicóptero que os transportavam. Mesmo que eles estejam atirando cegamente nas centenas de pessoas que os rodeiam, a ação é demarcada como heroica. Azeda, mas heroica. O sangue nas mãos dos militares no oriente médio é sempre melancólico, mas também, de certa forma, valoroso.

Black Hawk Down (2002)
Black Hawk Down (2002)

Em contraste, a representação da guerra de outro pedaço de cultura pop norte-americana, Apocalypse Now, vê as ações cometidas no Vietnã com completo desgosto. Nele, quando o comboio de protagonistas massacra um grupo de civis vietnamitas, esta é a única reação possível. O maior ônus da ação é colocado em quem mandou aqueles jovens soldados invadirem o país.

Black Ops Cold War nem toca em nenhuma destas feridas. Ele busca se separar enquanto chama atenção à elas. Um jogo de guerra no lugar de um sobre guerra. Por isso que passei tanto tempo deste texto colocando os pingos nos is que estes jogos deixam para trás: estas representações e imagens certamente querem evocar algo em sua cabeça; esta foi minha tentativa de destrinchar parte do que já senti em jogos passados. Com este contexto em mente, vamos falar de Call of Duty: Black Ops 6.

o dever se divide; desobediências numa ambição do tamanho do mundo

Apocalypse Now (1979)
Apocalypse Now (1979)

Desta vez, Call of Duty Black Ops 6 se passa na Guerra do Golfo do início dos anos 90, que foi basicamente um prelúdio à guerra do Iraque que os EUA vieram a se envolver na década seguinte, mas lutada no Kuwait. Como Bell está morta e enterrada, agora controlamos “Case”, outro protagonista mudo, misterioso, e sem rosto. Sério, ele aparece apenas como um homem de balaclava e óculos escuros. Não precisava de tudo isso pra se esconder, amigo…

Em uma missão no Kuwait que envolvia o resgate do Ministro de Defesa do Iraque, algo dá errado. Case está em campo com outros agentes da CIA, Jane Harrow e Troy Marshall. Eles resgatam o Ministro em uma emboscada ao comboio que o levava, mas enquanto caminham para a extração, são interceptados pelo grupo misterioso “Pantheon” e então abrem fogo. Depois de lidar com soldados do Pantheon, o grupo encontra o aparentemente renegado agente Adler. Sim, o Adler parceirão do MKUltra! Ele imediatamente executa o Ministro à sangue frio. Conta outra, Adler!

Os protagonistas prendem Adler e saem do Oriente Médio de mãos vazias. Porém, uma mensagem secreta deixada por Adler ao Woods (que agora aparece sem o Mason e numa cadeira de rodas) o aponta para um esconderijo na Bulgaria. Basicamente: Adler acha que este tal de Pantheon já se infiltrou na CIA e assim chama as pessoas que mais confia para abandonar a organização e operar de forma segura e independente para investigar o Pantheon. Daí para frente, vemos uma dedicação muito grande de Black Ops 6 para sair dos padrões do pastelão militar e se encaixar no pastelão de ação e espionagem.

Desde MW2 (2009), Call of Duty tem uma paixão pela ação desenfreada hollywoodiana. Dali pra frente, você pôde deslizar montanha gélida abaixo em um snowmobile descarregando uma Glock automática, presenciar o colapso da Torre Eiffel, incendiar vietnamitas vivos com uma SPAS-12 equipada com munição incendiária, e até derrotar mechas enormes. Esta tendência é simultaneamente abraçada e ignorada pela série, que trata estes momentos como fanservice ocasional mais que parte inerente da temática. Até Black Ops Cold War é assim. Black Ops 6 abraça os anos 90. Enfie duas pistolas na mão em akimbo e saia pulando com estilo como se estivesse num filme do John Woo; é justo também dizer um jogo do John Woo pela existência de Stranglehold?

Stranglehold (2007)
Stranglehold (2007)

A narrativa envolve um grupo de seis agentes renegados da CIA vestidos de civis enfrentando outro grupo renegado da CIA aos milhares com êxito. Os números de inimigos sempre foram altos nestes jogos, mas aqui o absurdismo fica evidente. Como parte do Rogue Black Ops, vocês decidem resgatar o Adler da mesma prisão da CIA que o colocaram, uma ultrassecreta localizada diretamente abaixo do Capitólio. Provavelmente uma das coisas mais estúpidas já planejadas por protagonistas dessa franquia. No dia que eles planejam invadir o local, o então Governador do Arkansas e futuro presidente democrata, Bill Clinton, está discursando.

Este é mais um dos apelos que Call of Duty faz para chamar sua atenção; em Black Ops 1 temos o Presidente John F. Kennedy e em Cold War o Presidente Ronald Reagan — agora, no entanto, não vemos George W. Bush em sua época de governo, mas sim um Presidente futuro… o que possui estranhas insinuações. Black Ops 1 representa Kennedy pra chocar, e Cold War representa Reagan como um sociopata simultaneamente amoral e moralista (mesmo que sua aparição esteja bem aberta à interpretação). Clinton, em Black Ops 6… mais deixa perguntas que respostas. O objetivo de Case é pegar a biometria facial de um senador próximo ao Clinton no evento enquanto se disfarça de jornalista. Esse senador é um maldito. As três formas possíveis de recuperar sua biometria revelam novos estilos de corrupção e politicagem escritas de forma tão ácida quanto a representação de povos do Oriente Médio do passado da franquia.

E Clinton? Fica de fundo o tempo todo. Um prelúdio mais que uma representação. Ao meu ver, é uma forma de construir tensão para um papel maior dele numa sequência pois, surpreendentemente, Black Ops 6 busca iniciar um novo arco em sua teia narrativa. Tanto a presença do número 6 em seu título, após Cold War ter aparentemente abandonado a convenção, quanto suas inúmeras referências aos eventos de flashback da narrativa de Black Ops 2 dão a entender que esta é sim uma série constante e conectada, diferente dos outros reboots. Muito bizarro. O Woods está numa cadeira de rodas pelos eventos do BO2 mesmo, e ainda vocaliza sua intenção de cuidar do filho do Mason. Pera, então o Mason morreu nessa série mesmo!!! Mas de qualquer forma, o jogo envolve o Adler no meio desses eventos, e ele simplesmente não existia nos jogos antigos!

Soldier of Fortune II: Double Helix - bioweapon
Soldier of Fortune II: Double Helix (2002)

Onde sequer estamos? Soldier of Fortune 2? O Pantheon de BO6 esconde uma arma biológica, The Cradle. O Prometheus de SOF também, o Romulus. Os protagonistas devem se separar de suas organizações que estão corrompidas por dentro por agentes inimigos e operar dentro de um esconderijo apenas com seus parceiros mais confiáveis. Tudo vai por água abaixo. Diferente do jogo passado voltado primariamente à ação direta, o atual prefere deixar o jogador escolher sua abordagem. Uma teia inescapável. Lembra da Guerra do Golfo? Do Kuwait?

BIG DEAL '92 (2024, The Campaign Trail mod)
BIG DEAL ’92 (2024, The Campaign Trail mod)

É impossível escapar do que veio à criar o mais novo Call of Duty. Como poderíamos? Inimaginável. Um jogo com tamanho orçamento e penetração cultural não foi feito às cegas. Como deve ser, para um estúdio veterano com sua própria longa carreira, se envolver em uma das maiores franquias do entretenimento? Toda a cultura pop em volta da guerra, ação e espionagem coalesce em uma. Black Ops 6 nos faz questionar a vida de Case assim como fizemos com Bell. Na missão “Emergence”, temos um microcosmo de System Shock 2 e até uma grappling hook para brincar nas limitações da geometria.

Case se perde de Troy ao investigar a fonte do Cradle, e acaba inalando muito do gás. Ele está acostumado com isso. Case é um codinome dado à ele em meio nos experimentos que sofreu com Cradle. Agora vemos uma alucinação quase-real-talvez-nem-tanto de uma central de laboratórios do Pantheon ocupada por zumbis, manequins que funcionam como os Weeping Angels de Doctor Who (eles se mexem quando você vira os olhos!), e cinco lutas contra chefes. Sim. Chefes em COD. Não inéditos, mas raros nos jogos não-futuristas. E sim, cinco deles.

Call of Duty: Black Ops 6 análise - Cradle

A nossa percepção da realidade de Case é questionada por aí em diante, mas não recebemos uma linha do tempo completa como no caso de Bell. Agora qualquer tentativa de meia-tigela do jogo de te surpreender vai ganha um ar de surrealismo. Os heróis de Call of Duty parecem seus amigos em Black Ops 6. Woods, lenda viva, te acha uma figura. Entre toda santa missão, temos uma seção no The Rook, o esconderijo do Rogue Black Ops. Ali, podemos sempre conversar com Woods, Troy, Sev, Felix e por vezes Adler. Nossos amigos. Felix é ex-Stasi e notoriamente violento, mas largou esta vida e agora cozinha pro pessoal e hackeia o que for preciso. Ele é uma pessoa carinhosa e carismática. Sev é uma ex-assassina profissional criada desde criança para matar, no maior estilo John Wick. Ela é engraçada e confiável, dá até dó saber de seu passado. Troy é extremamente competente e apaixonado pela Jane Harrow, a agente que continuou infiltrada na CIA como os olhos do Rogue Black Ops na organização. Woods, em sua quarta aparição na franquia, finalmente parece uma pessoa multifacetada. O rosto do combate, do Vietnã, e de alguém que provavelmente deveria descansar, mesmo que nunca queira. Adler é frio, seco e focado. Mais uma motivação que um humano. A face impenetrável da CIA.

Cada uma das conversas possíveis com estes personagens esbanja personalidade. Eles andam por aí, interagem, e fazem outras coisas enquanto voltam suas atenções para Case, que nunca fala nada além das suas escolhas, que não são vocalizadas. Estas personalidades dão um cerne à ação e espionagem. Um elenco constante e profundamente memorável nos confins de Call of Duty. Além de símbolos. Nos eventos do jogo, Case vive entre eles, escuta suas conversas privadas, e os acompanha. Assim como muitos outros protagonistas mudos, Case é tecnicamente o jogador. Nós, novamente tomando o espaço mais importante de personagem em um videogame.

“Como animais.”

Case sabe tanto de Black Ops quanto nós. Aparentemente ele sabe até do icônico mapa multiplayer “Nuketown”, considerando a estética anos 50 dos manequins presentes no laboratório de “Emergence”. Case sabe do modo Zombies presentes nos jogos da Treyarch desde Call of Duty: World at War. Case busca tudo que um COD pode oferecer; Case busca ir além.

Entre a miríade de estilos de missão presentes em Black Ops 6, temos “Hunting Season”, a grande setpiece da Guerra do Golfo prometida no marketing. Esta é, de longe, a maior missão do jogo se feita por completo. No meu texto de MWIII, lamentei que o estilo Open Combat de algumas de suas missões seria abandonado em jogos futuros não tão apressados — em parte por serem atrelados à um jogo extremamente mal recebido. Este não foi o caso! Black Ops 6 estoura seu orçamento em uma missão de mundo aberto com mais de 20 objetivos possíveis (apenas três dos quais são obrigatórios). Você anda de Humvee no deserto expansivo do Kuwait com a sua velha demônia Helen Park do MI6, Troy e Adler. Sempre o Adler.

Call of Duty Black Ops 6 análise - cemitério de tanques no Kuwait

À distância e de perto, vemos um cemitério de tanques, dunas, aviões destruídos, e muitos SCUDs à destruir. Um grande Metal Gear Solid V: Ground Zeroes, ou talvez um micro The Phantom Pain. A Guerra do Golfo possui o apelido de “a guerra do videogame” por um motivo, não? Sua transmissão detalhada ao vivo na televisão de meio mundo fez seus soldadinhos parecerem brinquedinhos nos anos 90. É impressionante como Black Ops 6, mesmo ao te colocar no calor da ação com o objetivo final de invadir a mansão de Saddam Hussein, ainda te faz sentir como se estivesse brincando. 

Call of Duty Black Ops 6 análise - Mansão de Saddam Hussein

Pule como o Max Payne para matar seus inimigos. Faça dual-wielding — brinque com seu carrinho de controle remoto explosivo. Aproveite os inéditos perks-na-campanha que podem ser comprados com dinheiro encontrado em missões e acumulados à esmo para melhorar todas as habilidades possíveis de forma passiva. Ache os áudios extras espalhados em campos diferentes como em Bioshock. Toma, Metal Gear, Call of Duty é tão videogame quanto você, e em plena guerra do videogame.

Case, com sua balaclava e óculos escuros como representado na visão em terceira pessoa do Humvee, é basicamente ninguém. Estamos praticamente naquela seção de exploração semiaberta de Uncharted 4 com um Jeep. Ouvimos conversas extras, vemos coisas extras, jogamos como extras em nosso próprio protagonismo. O mundo é seu, Call of Duty.

Call of Duty Black Ops 6 análise - Harrow e MKUltra

Eu nem consigo descrever Call of Duty: Black Ops 6 como um FPS moderno militar. Ele é um jogo de aventura, ação, espionagem, RPG, immersive não, e walking simulator. Você é extremamente livre nas missões em comparação com os antigos jogos, e em muitas não recebe ordens tão diretas. Pode matar todos ou se esquivar deles, escolher suas armas em tempo real de forma diegética no decorrer das missões; temos aqui tendências de design contemporâneo e idiossincrasias traçáveis desde os primórdios da Raven. Já posso dizer que Black Ops 6 é Soldier of Fortune 3 que nunca tivemos (sai fora, Payback)? e Hexen III? Singularity 2? Ultimate Alliance 3 (sai fora, Team Ninja)? Qualquer IP se encaixaria, honestamente.

Call of Duty Black Ops 6 análise - Harrow.

Tudo que a cultura pop pede, tudo que a cultura pop abomina. Apocalypse Now enlatado em redes de irrealidade, englobando uma teia de influências tão grande que é mais fácil só seguir reto e levar tudo na esportiva. Se o objetivo foi causar uma epilepsia sensorial, então Black Ops ainda não perdeu seu apelo. De tudo que fez estes jogos um fenômeno, finalmente temos o maior, mais ambicioso, mais lucrativo e mais confuso Call of Duty, 17 jogos removido de seu debut como a maior sensação de seu meio. Adler, você me paga.

Call of Duty Black Ops 6 análise - Adler

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Uma cópia gratuita de Call of Duty: Black Ops 6 foi concedida pela Activision Blizzard para análise no Recanto do Dragão.