Dead Rising Deluxe Remaster e a estética da violência — Análise

Dead Rising Deluxe Remaster e a estética da violência — Análise

Se eu ganhasse um real para cada jogo de zumbi da sétima geração que recebeu um remaster esse ano e foi coberto pelo Recanto do Dragão, eu teria dois reais. O que não é muito, mas ainda bem que Dead Rising Deluxe Remaster acabou acontecendo!

Dead Rising

Dead Rising Deluxe Remaster (DRDR para os mais íntimos) é um jogo de ação lançado pela Capcom em setembro de 2024. O título é uma reconstrução do sucesso de 2006 com gráficos atualizados, dublagem em todos os diálogos e algumas alterações voltadas à jogadores mais casuais.

Em Dead Rising você acompanha Frank West, um jornalista independente que, ao receber informações sobre um furo envolvendo o exército na cidade de Willamette, vai até lá de helicóptero com a ajuda de seu amigo e piloto Ed. Chegando lá, os dois presenciam múltiplas cenas de caos, desordem e violência em toda a cidade. Ao perceber uma comoção maior no shopping local, Frank pede para Ed o deixar por lá e ambos combinam do helicóptero retornar para buscá-lo após 72 horas. Ao adentrar o shopping, Frank descobre que o caos generalizado se deu por uma epidemia de zumbis pela cidade e é obrigado a se refugiar na sala de manutenção com o zelador Otis e os misteriosos agentes Brad e Jessica. Cabe então à Frank West nos próximos três dias dar o seu melhor para sobreviver e fazer esse furo jornalístico valer a pena.

O loop de jogo de Dead Rising é muito simples. Passada essa introdução inicial, o jogador é livre para sair da sala de manutenção e explorar o restante do shopping como uma espécie de “mini mundo aberto”. A progressão da narrativa é dada por casos que Frank deve acompanhar estando no lugar certo, na hora certa e com os personagens necessários vivos. Fora estes, o jogador é livre para ficar zanzando pelo shopping lidando com zumbis, expandindo seu arsenal de armas e ou enfrentando psicopatas e salvando civis que são avistados por Otis de tempos em tempos.

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Para sobreviver no shopping, Dead Rising nos apresenta sua característica mais exótica: uma extensa e cômica seleção de armas. Se é um modelo 3D no jogo as chances de que você pode pegar aquilo e usar para se defender são de pelo menos 95%! Pistolas, canos de aço, bancos de madeira, caixas registradoras, parassóis, vespas rainhas, serras elétricas, foices de jardinagem, ursinhos de pelúcia, restos de outros zumbis… O limite é realmente sua imaginação… e a disposição de ir atrás destas armas exóticas.

No geral, Dead Rising é uma experiência que flui entre muitos estados. A narrativa do jogo sabe alternar muito bem entre o horror, o drama, a comicidade e a ação sem nunca fazer um momento parecer destoante em relação aos outros. A dificuldade é extremamente desafiadora no começo mas vai se tornando bem manejável conforme você vai derrotando psicopatas, conquistando, armas, subindo de nível e expandindo seu leque de habilidades. E também é um jogo que vai se tornando mais satisfatório a cada jogatina; começar um save novo com um Frank West mais experiente, saber onde cada sobrevivente vai estar e a melhor rota para levá-lo para a sala de manutenção, entender logo de cara como desbloquear os melhores atalhos do shopping e se aproveitar dele para descobrir finais novos. No geral, para mim foi uma experiência que me entendeu demais e que de fato fez muito bem em retornar para o mercado depois de 18 anos do seu lançamento inicial.

DRDR

Agora falando mais sobre a experiência dele como “Deluxe Remaster”: O remake (já que o jogo foi refeito por inteiro na RE Engine) apresenta muitas melhorias em relação a seu lançamento original, começando pelos modelos de personagem que foram elevados à outro patamar. A RE Engine basicamente fez milagres com os modelos originais, trazendo camadas inteira de expressividade para os personagens e consequentemente acentuando as flutuações de tom da narrativa.

Jogando Dead Rising 2, 3, 4 e ouvindo a opinião de diversos fãs nos ajudou a reafirmar quais elementos precisavam ser incluídos em Dead Rising 1. Em especial, colocamos muito esforço e carinho na caracterização de Frank.

Entrevista com o time de desenvolvimento pela IGN

Mas, apesar do trabalho hercúleo nos modelos e na iluminação do jogo como um todo, em troca houve uma sanitização dos cenários e interface. A interface é um assunto delicado porque sua funcionalidade está bem melhor. Agora você não tem mais que ficar sofrendo com uma seta que simplesmente aponta para uma direção que te larga pra se virar. Agora existe uma interface limpa que funciona em 360º e mostra exatamente em que direção e a quantos metros do seu objetivo você está. Apesar dessa clareza extra, senti que o resto da interface, que antes antes era toda feita para simular rolos e bateria de câmera, agora é composta só quadrados com baixa transparência para ocupar o mínimo de espaço possível na tela, fazendo com que parte do charme original (ainda que por vezes um tanto cafona quando mostrava fotos dos bosses e seus movimentos desbloqueados nas telas de loading) seja perdido em troca do que é considerado “limpo e aceitável” atualmente. O mesmo se aplica para os cenários, agora super bem renderizados e iluminados. Eles se mostram como quase sem cores quando comparados com suas antigas encarnações e isso, em certos casos, afeta diretamente a atmosfera de certos lugares. Um exemplo está na luta contra o açougueiro que, em tese, faz sentido se passar um lugar mais limpo, já que é o açougue de um supermercado em um shopping grande, mas com esta mudança a atmosfera é atingida. A cena original que demonstrava o local todo ensanguentado era mais impactante visualmente e reforçava o estado de loucura do açougueiro.

Fora as questões gráficas, essa nova versão contou também com duas grandes melhorias. A primeira dessas é o sistema de save automático em cada mudança de mapa. O sistema do Dead Rising original se resumia a locais muito pontuais espalhados pelo shopping onde você podia salvar e avançar o tempo caso não quisesse ficar zanzando até chegar a hora do próximo caso. No geral, não é um sistema muito punitivo quanto os de survival horror que te forçam a ponderar recursos antes de qualquer chance de salvar mas, em contrapartida, como estes locais em Dead Rising eram extremamente pontuais, era muito comum você perder horas de progresso por simplesmente esquecer de passar em algum deles. Com o save automático, esse ”problema” foi amenizado, uma vez que você pode sempre recomeçar da última transição de mapa. Apesar de facilitar um pouco o jogo, te força sempre a lidar com as consequências das suas ações mais recentes caso você não queira perder tempo retraçando seus passos para um curso de ação melhor.

A segunda melhoria é a presença de dublagem. Sim meus amigos, o jogo se encontra completamente dublado em português brasileiro com uma direção incrível e com grandes nomes como Mauro Ramos, Charles Dalla, Fernando Mendonça e outros. Fiz duas runs do jogo, a primeira em em português brasileiro e a segunda em inglês. A dublagem se mantém super firme em comparação com as interpretações originais e esbanja personalidade em todos os momentos necessários. A princípio a única parte que eu realmente estranhei a dublagem foi em uma conversa entre mãe e filha na introdução do jogo, mas acabei aceitando que foi uma decisão criativa de deixar a cena meio tosqueira para já introduzir o tom cômico do jogo logo cara.

Agora, minha única crítica ao remaster é no seu uso do sistema de proteção de cópia DENUVO. Normalmente não é algo que eu trago para as discussões por não sentir que impacta tanto a experiência (pelo menos em um nível superficial), mas nesse caso precisei mencionar já que acabou me impactando mais de uma vez. Sério, o jogo é muito bem otimizado na versão para PC, mas tive travamentos mais de uma vez por conta do DENUVO começar a gerar algum tipo de relatório. Como o jogo estava em tela cheia, ele nem me permitia ver o que exatamente a mensagem de DENUVO estava fazendo, me forçando a fechar o jogo e retraçar meus passos do último save.

No geral, esse remake é um aprimoramento muito claro da experiência original, apesar de pecar um pouco nas decisões estéticas do original e outros problemas técnicos, os prós mais do que compensam os contras.

Atualmente, Dead Rising Deluxe Remaster se encontra disponível para Xbox One, PS5 E PC. Caso opte por jogar no PC, não esqueça de conferir os preços pela nossa querida parceira Nuuvem!

Uma cópia gratuita de Dead Rising Deluxe Remaster para PC foi concedida pela Capcom para análise no Recanto do Dragão.

Violência como estética e cápsulas temporais

Isso nos traz ao cerne da questão. Uma preocupação com a estética da violência é um assunto à parte da perpetuação da violência que, de diversas formas, tanto fazem se fazem presente no nosso mundo atual.

Reflexões sobre a Estética da Violência de Arnold Berleant

Apesar da chuva de elogios, eu quero dedicar essa parte final do texto para pontuar algumas reflexões sobre a obra como um todo e sobre como olhar para algumas coisas delas 18 anos depois do seu lançamento. 

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Dead Rising tem como estética principal a violência, e eu não digo isso com um tom de julgamento moralista ou como uma preocupação sobre com os impactos que isso pode causar à psique de quem o joga, mas sim só como o apontar de um fato. A obra não só sabe disso como faz questão de deixar de esconder ou se envergonhar de sua violência. O sistema de pontuação inteiro é centrado em um sensacionalismo temático, te recompensando por tirar fotos que se enquadrem como brutais, eróticas, dramáticas, cômicas ou assustadoras; encapsulando ondas de sentimentos destas 72 terríveis horas preso num shopping zumbificado em categorias simples e rasas.

Mas, ainda assim, essa visão sensacionalista existe no jogo porque o ângulo funciona. É extremamente satisfatório atropelar centenas de zumbis nos estacionamentos do shopping, ver o ataque especial de decapitar um zumbi com um único hit ao usar a foice, e ver os pontos subindo sem parar ao tirar uma foto “erótica” da Jessie no que era pra ser um momento de fragilidade. O jogo se aproveita disso ele entende que foi feito para isso. Afinal, ele nasceu como conceito justamente querendo se distanciar o máximo possível da seriedade de Resident Evil e abraçar a comicidade das obras sobre zumbis. É curioso como o próprio ângulo cômico é sempre quebrado quando os psicopatas entram em cena.

Aí já entra uma questão complexa do jogo: os bosses são capitalizados como psicopatas por serem humanos que, mesmo não tendo sido infectados, se deixam levar pela loucura da situação e comentem atos horríveis contra outras pessoas. Normalmente, eles são encontros que quebram o tom do jogo por completo e te fazem focar somente neles. Terminam sempre com um show de gore e um Frank horrorizado ao presenciar isso do início ao fim. Entretanto, apesar de Dead Rising como um todo ser um jogo caricato na maior parte do tempo, o que torna essas lutas extremamente interessantes é porque esses “psicopatas” nunca são necessariamente desumanizados. Na verdade a humanidade deles é elevada a um nível que os tornam caricaturas do que um dia tornou eles humanos. O exemplo mais memorável para mim é Cliff, um ex-soldado (provavelmente veterano da guerra do Vietnã) que, ao perder sua neta para a súbita invasão dos zumbis, colapsa em um surto de TEPT (ou PTSD como é mais conhecido) e passa a executar múltiplos civis achando que são traidores ou soldados inimigos infiltrados na sua base. O desfecho dessa luta é possivelmente a que o jogo mais se esforça para tornar comovente, só que apenas em seu leito de morte Cliff consegue recuperar a lucidez para contar ao Frank o que o levou a este ponto.

E aí que entra a verdadeira parte curiosa, os tão ditos “psicopatas” são, em sua esmagadora maioria (já que obviamente existem exceções como o literal líder de culto™ e os caçadores) pessoas fragilizadas. Normalmente isso criaria camadas para a situação, já que você pode ver que o seu inimigo é uma pessoa workaholic, ou com TEPT, ou ansiosa por humilhações passadas; todas são pessoas que, devido à circunstância, são levadas a suas piores versões. O jogo chega muito perto de fazer esse comentário de maneira consistente, como é o caso da luta do Kent, que termina com ele querendo que Frank capitalize em cima da morte dele, o que ele se recusa a fazer. Entretanto, o jogo simplesmente escolhe não se aprofundar nessas camadas. Estaria tudo bem se essa escolha não afetasse uma luta em específico: Jo, a policial. Possivelmente a única representação queer no jogo, Jo é apresentada como uma policial fetichista que se aproveita de sua posição de poder para assediar sexualmente outras mulheres e agredir delas por elas serem mais bonitas que ela, já que Jo é apresentada como possivelmente a única mulher “não atraente” de toda a obra, o que reforça o mito de pessoas LGBT serem assediadores repulsivos e ainda colabora a estética de violência do jogo. Não somente por ela ser um dos poucos bosses que tem a possibilidade de matar civis durante a luta mas também pela reação dos civis após sua derrota, que a chamam de nojenta e outros expletivos.

Como se trata de uma obra de 18 anos atrás, ainda é um pouco surpreendente que essa seja a única parte que de fato não envelheceu bem. Assim, um comentário poderia ser feito sobre como o único boss negro é justamente um dos criminosos que é mau porque é presidiário e é presidiário porque é mau, mas você tem representação de outros personagens de cor durante o jogo como Brad, Otis e até Carlito e Isabele entrando como latinos do jogo, então ao menos existe uma gama de representações extensa que ajudam a ver a situação de forma menos maliciosa.

No geral, acredito que é importante perceber essas coisas e apontar que elas existem – não com um tom de desprezo e implicando que a obra mereça queimar por isso, mas sim reconhecer que essas decisões existem e não podem ser simplesmente consumidas sem questionamento.

#RECANTODOSUSTÃO2024