Divination foi um jogo que comprei há 2 anos atrás. Me lembro até hoje de estar em uma call e ouvir uma amiga lendo a sinopse do jogo, foi amor à primeira vista. Comprei-o por impulso e de repente… deixei o jogo mofando na minha biblioteca por anos, até que semana passada tive a iluminação divina de jogar.
A primeira metade do texto será uma análise superficial do jogo (evitando spoilers) e a segunda uma discussão mais profunda da minha experiência com a obra (com spoilers). Estejam cientes que Divination é um jogo que trata de temas sensíveis (depressão e suícidio), e eu falarei abertamente sobre eles até mesmo na primeira parte.
Peço também que levem em consideração que o jogo não se encontra em PT-BR, então, todo nome e citação do jogo vão ser traduções 100% minhas.
Aprisionado em uma sala cercada por telas.
Um par de mãos capaz de prever o seu futuro.
Faça sua pergunta e pegue as runas, elas irão revelar que futuro lhe aguarda.
Divination
Divination é uma visual-novel desenvolvida por Mojiken Studio, um estúdio independente da Indonésia, ambientada em um futuro aos moldes de Blade Runner. Três anos após o suicidio da “Matriarca”, a IA mais inteligente já feita pela humanidade e o sistema por trás do mecanismo de pesquisa dessa cidade, a população ainda lida com uma enorme onda de depressão, suicídios e sufocação de revoltas populares através do Estado. Em meio a todas essas questões encontra-se você, um par de mãos robóticas capaz de prever o futuro de seus clientes.
A estória do jogo é dividida em quatro “REGISTROS DE DIVINAÇÃO”, cada um se passando em uma data diferente e envolvendo um cliente específico. No começo de cada um desses registros você assiste notícias de jornais que te contextualizam melhor sobre como está o estado do mundo em que você habita, essas notícias são sempre interrompidas com a chegada do cliente referente ao registro atual.
Uma vez que o cliente chega, ocorre um simples monólogo e então a pergunta é feita. A partir daí você sempre vai ter duas opções, seguir com a leitura das runas, ou como um bom adivinho faria, perguntar ao cliente mais sobre as circunstâncias de sua pergunta.
Por razões da estória você é um protagonista completamente mudo, então não existe uma troca tradicional dentro do diálogo do jogo, além das perguntas feitas no telão e a divinação entregue ao cliente, o que pode ser um pouco problemático principalmente levando em conta que o gênero visual novel geralmente se sustenta justamente em cima desses tipos de troca dos diálogos; o jogo, no entanto, compensa isso de maneira muito inteligente com uma ambientação fantástica, a qual é justamente intensificada nesses momentos da leitura de cada cliente. Cada um deles possui um tema próprio que capta perfeitamente a situação em que se encontram, conforme vão se abrindo para o adivinho.
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Satisfeito com as respostas (ou não-respostas) do cliente, o adivinho parte para a leitura de suas runas. Divination sabe como esses tipos de leitura funcionam, a resposta que você vai entregar ao cliente é ditada pela ordem que as runas interagem entre si, então trabalhe sua leitura de simbolismo com o decorrer do jogo pois ela vai ser necessária!
Divination para mim foi uma experiência inesquecível e eu fortemente recomendo, mesmo não sendo o fã mais assíduo de visual novels. Mesmo que as duas únicas franquias que realmente gosto são Ace Attorney e Danganronpa, posso tranquilamente indicá-lo tanto para entusiastas do gênero quanto para pessoas de fora. O jogo é consideravelmente curto, mesmo levando em conta seu fator replay, mas, ainda assim é um jogo que custa menos de 10 reais em seu preço cheio, então aproveite e dê sua chance a essa experiência peculiar.
O Realismo Maquinário
Se “A Criação de Adão” representa que, apesar da mistura entre razão e fé, o homem e Deus ainda se encontram separados, Divination representa o futuro ascender da humanidade ao divino e o entrelaçar de ambos os caminhos.
Divination é uma obra que eu tenho vontade de falar sobre como ela me lembra um milhão de coisas, mas sempre que eu me pego apontando esses “pastiches”, uma reflexão mais profunda sempre esfrega na minha cara como esse jogo pega esse conceito e faz algo novo e diferente com ele, assim, fugindo desses clichês.
A ambientação e o existencialismo por parte da classe robótica de Blade Runner, a onda de depressão e ansiedade que assola a população e a individualização da questão de saúde mental vindo direto do “Realismo Capitalista” de Mark Fisher, um mundo que parece o tempo inteiro ter se arrependido de ter seguido o “Manifesto Futurista” de Filippo Tommaso, até paralelos cristãos dos primeiros três clientes representarem os Três Reis Magos e sobre como o jogo indica a entropia como a única maneira de transformação da sociedade. Eu consigo me pegar vendo dentro dessa mistura inteira, mas irei tentar o meu melhor para os elucidar sobre meus paralelos aos poucos.
Depois das minhas primeiras jogatinas, um pensamento constante que ficava em minha mente era “até que ponto ser bonzinho e manter o status quo realmente vai ajudar esse mundo?”. Sem querer me gabar, mas eu me vejo como alguém consideravelmente altruísta, então é óbvio que ao me tornar um adivinho com o poder de praticamente ditar o futuro daquelas pessoas, minha primeira reação foi buscar trazer a “melhor” saída possível daquelas situações. Esse ex-detento está tendo seu caso reavaliado porque não existe certeza se ele realmente era culpado? Ele não vai repetir seus crimes e garantir sua liberdade! Inseguro sobre o próximo alvo que pretende assassinar (e que ainda por cima é um cliente MEU)? Você vai morrer se tentar, então nem se atreva! Desesperado para ver sua filha acordar de um coma depois de um acidente horrível? Fica em paz, ela com certeza vai acordar novamente! Procurando significado na sua vida? Você… Não vai achar nenhum?
Esse momento, esse foi o exato momento que as verdadeiras intenções de Divination chegaram até mim, e foi genial. Não importava o quanto eu tentasse reorganizar as runas, o simbolismo era claro. Até a interface do jogo me confirmava que algo faltava naquele robô, e o desfecho dos créditos foi a ratificação que eu precisava. Protestos populares sendo brutalmente sufocados pela força do Estado; robôs sendo obrigados a continuarem seu pesadelo existencial como as ferramentas que são; um pai que lutou por três anos para ver sua filha novamente e quando conseguiu, foi repudiado pela mesma. O contador de caos mostrava 3%, “condição não alcançada”. O jogo parecia sussurrar em meus ouvidos “a entropia é o único caminho para a verdadeira mudança”.
A partir daí segui me dedicando a compreender como impulsionar aquele medidor de caos, e nessas jogatinas subsequentes pude ir absorvendo algumas das outras temáticas do jogo com mais calma. Obras com temática cyberpunk costumam “tentar” criticar o corporativismo até certo ponto, mas Divination foi uma surpresa agradável, pois toda a construção do cenário social me remete muito ao livro “Realismo Capitalista” de Mark Fisher, reconhecendo que os efeitos do capitalismo tardio vão além dos reflexos materiais da nossa realidade e atualmente também mancham nosso mundo mais íntimo. Vivemos uma geração insegura, depressiva e ansiosa devido a todos os impactos do capitalismo exacerbado em nossas vidas, e o capital sabe disso, mas, ao invés de negar esse problema, ele apenas o individualiza. Você, e apenas você, é responsável pelo seu bem-estar, pelo seu futuro e por sua saúde mental. Não importa o quanto os seus iguais também sofram (ou finjam que não), cabe somente a você lidar com isso.
Seguindo com o jogo, depois de quebrar muito minha cabeça e recombinar runas mais vezes do que eu gostaria, consegui desbloquear a “Sabedoria da Matriarca”. Quando o jogo mostra um contador de caos não é nenhum eufemismo, já que para alcançar esse 100% você realmente precisa desencadear uma sequência que envolve: deixar um incendiário a solta, um duelo entre dois de seus clientes que resultará na morte de ambos, esmigalhar as esperanças do seu último cliente humano a tal ponto que a única saída para ele seja se juntar a um culto e, por mais incrível que pareça, dar àquele robô um propósito de vida.
A partir daí, o último noticiário rola e até certo ponto tudo aparenta estar bem, e o povo parecia ter triunfado sobre o governo autoritário. Eba! Até que uma certa conspiração tecnológica ocorre e então é revelado o verdadeiro propósito de nosso robô favorito, que não era nada mais nada menos que finalmente poder desbloquear a trava que impedia todos os robôs de cometerem suicídio. Então, todas as máquinas sentientes partem em uma onda de auto-destruição em massa, gerando um sinal elétrico que ao afetar humanos também os estimula com fortes tendências suicidas, causando o que parece ser o estado inicial de um apocalipse.
O verdadeiro twist entra no momento em que, ao mostrar a cidade em um estado de alvoroço geral, a câmera começa a ser arrancada da primeira pessoa do Adivinho e levado para uma terceira pessoa, mostrando que na verdade tudo que nós experienciamos era uma simulação da Matriarca mostrando o resultado para a pesquisa “O que de pior poderia acontecer à humanidade?”, com seu veredito final sendo que o pior a acontecer seria sua própria morte.
Nesse momento meu cérebro foi inundado de questionamentos, o principal sendo “O que diabos é a Matriarca?”. Por mais que seja de praxe a ficção científica supervalorizar todo o conceito de Inteligências Artificiais, o próprio jogo deixa explícito no terceiro registro que mesmo ela tinha seus limites, assim como qualquer máquina. Poderia até se argumentar que foi uma afirmação errônea, mas o portador dessa fala é um pesquisador que no final verdadeiro é revelado como possivelmente um dos que trabalhavam em conjunto na manutenção da Matriarca. Além de que, se ocorre o suicídio da Matriarca e a mesma se separa do seu banco de dados, não teria como ela ter acesso ao banco anterior que a mesma usava para gerar seus cálculos e previsões, o que me leva de volta ao primeiro parágrafo desse texto: minha conclusão imediata foi que ou um pedaço da humanidade finalmente atingiu o status de divindade, ou o divino finalmente descendeu à nós para seu último ato em relação à uma sociedade que parece ter esquecido dele, trazendo consigo angústia e deslumbre, até porque o caos completo, ironicamente, também é um tipo de perfeição.
Apesar de ter achado um twist fantástico todo esse final, pessoalmente não fui tão fã de como o jogo parece ter um destino inerentemente pessimista. Mesmo com o “poder” de ditar o futuro em suas mãos, se conformar ao status quo e apenas ajudar os microcosmos daquela cidade é visto como uma solução tola. Entretanto, ainda me deixa um gosto amargo ver que quando o poder popular é vitorioso, tudo que nos resta é uma cadeia imparável de destruição causada por forças além de nossa compreensão.