Se você é interessado no mundo indie, provavelmente já ouviu falar de Cave Story e visto/jogado ao menos uma de suas três versões distintas. Sua simples, mas impactante história e design utilitário são apenas algumas das qualidades que o fazem entrar em discussões até hoje, junto do seu status como um dos primeiros jogos independentes que atingiram um público abrangente, já que lançou originalmente em 2005.
Julgando pelas múltiplas versões e ports de Cave Story, é justo assumir que seu único desenvolvedor, Daisuke “Pixel” Amaya, passou um bom tempo ruminando no que fazer após conseguir um hit daquela escala. Os únicos jogos que ele publicou após Cave Story foram Guxt e Ikachan.
Guxt é um jogo curto de bullet hell, enquanto Ikachan é um jogo casual de arcade exclusivo dos iPhones. Mesmo sendo completamente diferentes, estes dois tem algo em comum, que é a pequena escala dos projetos. Cave Story é múltiplas vezes maior em tamanho que ambos, e possui vários personagens, inimigos, finais, entre outras características.
Ou seja, Amaya estava levando seus jogos mais como experimentos do que projetos grandes. Isso pelo menos até 2014, quando lançou Kero Blaster.
Definir Kero Blaster é simples. Você controla um sapo chamado Kaeru, que atira em várias coisas e no fim de uma fase enfrenta um chefão. Basicamente, a forma clássica dos jogos de ação em plataforma da era dos arcades. Não parece nada demais, mas, conforme você vai jogando, mais detalhes únicos vão atraindo seus olhos.
Estes detalhes são o que fazem Kero Blaster se destacar como uma experiência memorável. Já de início, sua história é incomumente interessante para algo que a maior parte dos jogos do seu gênero costuma limitar à apenas uma “desculpa” para acontecer toda a ação.
Ainda assim, a história de Kero Blaster é fácil de se descrever e, longe do foco dele. Kaeru trabalha na Cat&Frog Inc junto de seus colegas Sasuke (que é um gatinho [felino!] ), Cocomo (que é uma coisinha rosa) e sua chefe Nanao (que é uma gatinha [felina!!] ).
NOTA: Os nomes dos personagens não são revelados diretamente pelo jogo, mas sim em seus arquivos/outras fontes oficiais.
O jogo começa quando Nanao (que acabou de adotar um novo animal de estimação) encarrega Kaeru de arrumar quatro teletransportadores da empresa em diversas áreas remotas, algo que ele faz com certa apreensão, já que muitas das ordens dela fazem com que ele e seus colegas tenham que trabalhar horas extras no fim dos dias, ou pior, das semanas.
Esta é a base inteira da história de Kero Blaster. Mas o que importa não é o conceito básico, mas sim sua execução.
O animal de estimação de Nanao vai se transformando em uma eventual abominação, à medida que você vai arrumando os teletransportadores, e várias criaturas iguais à este animal (inseto?) são encontradas durante as missões, que são ocasionalmente até agressivas.
Todas as interações com a chefe de Kaeru são divertidas. Diferente de seus colegas, suas falas são demonstradas apenas por rabiscos, insinuando um tom de resmungo que não muda nunca, independente dos bons resultados das missões.
Por falar nisso, todos os colegas de Kaeru são ótimos nas poucas cenas nas quais estão presentes. Cocomo até chegou a receber dois pequeninos jogos gratuitos sobre suas próprias aventuras: Pink Hour e Pink Heaven (que servem como ótimas demos para medir seu interesse em Kero Blaster).
Mas a história não expressa seu charme sozinha, pois ela é diretamente acompanhada pelos visuais, que são fofos. Dá pra entender aqueles que não gostam desse estilo de pixel art extremamente simplificado que Amaya escolheu para o jogo, pois ele é consideravelmente menos detalhado que o de Cave Story, mas eu estaria mentindo se dissesse que não gosto do que recebemos nessa área em Kero Blaster.
A inconsistência na quantidade de detalhes em cada personagem distinguem seus designs, e definem seu estilo e personalidade. Kaeru tem uma expressão permanente de tédio e estresse colada em seu rosto de pouquíssimos pixels, uma característica que compartilha com a única outra personagem jogável da “franquia”, Cocomo. Essa é a única coisa que o design dos dois possui em comum, já que Cocomo estampa uma felicidade inquebrável em seu sorriso de bochechas rosadas.
Os sprites de vários dos inimigos, e de Sasuke, entram em um meio termo onde possuem um pouquinho mais de detalhe, o suficiente para ser contrastante de maneira desconfortável com os de Kaeru. Nanao conclui o ciclo por ser cheia de pixels, principalmente em meio à sua gradual transformação tramada por seu pet.
O mesmo pode ser dito para os ambientes de Kero Blaster, mas eles são mais consistentes. As fantasiosas e vibrantes cores das seções naturais vistas no início das fases contrastam muito bem com os interiores das bases de pesquisa da C&F, que são cheias de cinzas e outros tons mudos.
Essas mudanças ambientais se intensificam junto da gameplay. Ou seja, quanto mais longe você chega em Kero Blaster, mais a vista cinzenta dos laboratórios vai se conectando com os encontros de inimigos ameaçadores e os desafios de plataforma que o acompanham.
Tudo isso é para dizer que os visuais de Kero Blaster funcionam. Não de maneira funcional, mas sim com a sensibilidade de um artista de pixel-art que sabe o que está fazendo. O estilo bestinha e bem humorado combina com o que Kero Blaster quer ser, que é apenas um jogo de boa sobre trabalhar demais.
É, de longe este é o tema mais forte de Kero Blaster. Isso fica claro até em Pink Hour, onde Cocomo fica desesperada para conseguir entregar sua papelada intacta à Nanao. Mas eu diria que este tema só funciona tão bem assim por causa da execução dele na gameplay.
Com sua primeira arma, o lançador de ervilhas, pode parecer que Kero Blaster irá seguir o exato mesmo estilo de gameplay de outros jogos como Commander Keen ou Mega Man, mas isso muda rapidamente quando você começa a lidar com os inimigos. Todos eles possuem alguma estratégia que os deixa mais fácil de matar, algo que requer que você use a arma certa e misture isso com pulos e outras nuances como o terreno.
Não me leve à mal, Kero Blaster passa bem longe de ser o jogo mais complexo do mundo; essa também não era a intenção, claro. O que importa neste caso é que a gameplay se mantém simples enquanto não se passa como uma exata cópia de jogos de ação de plataforma antigos.
E não só isso, pois a gameplay estratégica se conecta perfeitamente com a sutil sensação de que você está presenciando o trabalho de Kaeru. Você decora todos os ataques inimigos e as estratégias para derrotá-los, e só vai adaptando ao cenário correspondente.
Existe uma sensibilidade de repetição e “missão cumprida” constante em Kero Blaster. Ele não pega pesado na dificuldade, mas a tarefa de Kaeru que requer que ele arrume os teletransportadores é estruturada tão estaticamente quanto um dia de trabalho com hora extra.
NOTA²: Kero Blaster “não é pesado na dificuldade” se você não estiver jogando no modo Zangyou (difícil), que possui até uma nova história e fases diferentes! Eu recomendo ela para a experiência completa, mas cuidado, pois ele não economiza nem um pouco na dificuldade. Esta análise não discute ela para não dar spoilers fortes!
É por este motivo que as partes curtas de história demarcam tão bem seu progresso. Elas nos lembram dos momentos mais leves que você tem com colegas de trabalho no horário de almoço, ou em qualquer oportunidade que aparece para você conversar com eles.
Inclusive, uma das partes mais divertidas do jogo para mim foi quando Sasuke diz que Kaeru terá que voltar de trem, o que faz a próxima fase continuar diretamente de onde você terminou a anterior, quebrando completamente a estrutura rígida que eu citei agora a pouco. Ela é uma das poucas partes de Kero Blaster que passam a sensação de entrar em uma aventura no meio de um dia comum.
Quando você está preso à uma rotina, seja ela de ir à escola ou de trabalhar durante a semana, qualquer coisa que desvia minimamente do comum é acentuada como uma mini aventura que torna aquele dia memorável.
Eu pessoalmente tenho várias dessas histórias guardadas comigo. O fato de Kaeru ter que se encontrar em um ambiente desconhecido e tentar achar a estação de metrô especificamente me lembra de algumas vezes que fui buscar amigos em locais que encaixam nesta descrição.
Estes desvios da rotina não acontecem frequentemente, e é por isso que eles se destacam em meio à bagunça homogênea que são as memórias relacionadas a pegar um ônibus ou metrô diariamente. Kero Blaster replica essa raridade perfeitamente, já que este momento é uma ocorrência única em sua história, e só é um pouco relacionável com a fase final do modo normal.
E essa é uma das coisas que eu mais amo em qualquer meio artístico, a conexão pessoal que algumas obras conseguem tirar da audiência. Existe um motivo pelo qual ‘A Vida Secreta de Walter Mitty’ é um dos meus filmes favoritos, ‘Evermore’ é o melhor álbum da Taylor Swift, e ‘Kero Blaster’ consegue ser tão marcante mesmo sendo tão simples: todos eles são obras pessoais que descartam convenções para recriar sensações mundanas.
Parece que este é um tema comum nos jogos de Amaya. Cave Story me passou emoções similares, mesmo com sua premissa mais fantástica, e isso é um sinal de que ele conseguiu se achar como desenvolvedor após tantos anos de ausência.
Por falar nisso, Amaya lançou mais um jogo este ano, o seu primeiro desde Kero Blaster. Ele se chama Haru To Shura e foca completamente em narrativa, algo que combina muito com suas ambições vistas em seus outros jogos.
O que isso tem a ver com esta matéria? Bom, este é o começo de uma série de análises de vários jogos independentes que considero importantes para o meio, e existe uma chance considerável de Haru To Shura entrar para a lista de análises futuras.