Everhood 2 — a inexistente verdade | Análise 

Everhood 2 — a inexistente verdade | Analise 

Como Game Designer (não praticante) e como alguém que tenta fazer crítica de videogames, RPG sempre me foi um gênero meio blasé. Estruturalmente parecidos, por vezes longos demais, seja pelo bem de uma densidade narrativa ou apenas por escolhas malditas do desenvolvimento de como o jogo distribuirá as recompensas de cada batalha; RPG sempre foi uma grande questão para mim, por mais que eu não goste de admitir. 

Por motivos que não consigo explicar, a minha atenção de um peixe-beta se esvai com o tempo, e jogos que possuem mais de 20 horas se tornam mais um trabalho que uma diversão. E aí, atrelado à repetição excessiva, historias convolutas e o meu tédio, esses jogos no fim perdem muito a potência no que poderia ser mais uma jornada magistral na mídia, né Final Fantasy XV

Yume Nikki (2004)

E com tantas experiências agridoces, acho que acabei me encontrando na cultura de jogos feitos por RPGmaker. Mais diretos, falavam sobre temas mais atuais e mais caros à mim. Além disso, o mesmo loop de gameplay estava lá, tudo isso encapsulado em rápidas experiências de geralmente poucas horas. Mas, além disso, havia formas muito distintas de se expressar dentro da arte do jogo ou de brincar com conceitos do gênero, vide Yume Nikki, Ao Oni ou lb, mesmo que em algum nível todos eles sejam direta, ou indiretamente inspirados pela série Mother.

E isso nos leva a 2021, já com jogos espiritualmente inspirados em RPG Maker bem consolidados no mercado, desde a ascensão de Undertale, eu diria. Lançado sem muito alarde, Everhood trouxe uma proposta não tão convencional, um RPG de ação bullet hell de ritmo hiperpsicodélico. E não deu outra, assim que eu o vi, foi amor a primeira vista. Era o jogo que tinha tudo que eu não imaginava querer.

A história, os personagens, as viagens de ácido, tudo nesse jogo me apaixonou, inclusive a falta de compromisso com a verdade, o que era um dos pontos mais interessantes dele. O quão não confiável ele poderia ser — o que está na tela pode não ser real. Já com o meu amor declarado, em 2025, e exatos quatro anos depois, Everhood 2 lança, e eu não poderia estar mais feliz em escrever esse texto para vocês e dizer que, mais uma vez, Everhood aparece para ser um dos melhores jogos do ano. 

Everhood 2 retorna com um punhado de premissas parecidas, mas ainda diferente. É um jogo muito familiar àqueles que jogaram o primeiro, desde a sua estrutura anti-rítmica dos combates, personagens familiares e a identidade visual. Sendo direto, após um questionário nada extenso e nada suspeito para definir a cor da sua alma, você nasce; um humano jogado no mundo e encontra um Corvo que diz que assim que você derrotar o Dragão, recuperará a sua voz. Assim, você segue no mundo através de portas (no melhor tipo Yume Nikki mesmo) em busca de ficar mais forte enquanto enfrenta diversas aventuras através das dimensões… e pelo tempo para derrotar o temido dragão. Bem a ideia de um RPG tradicional, eu diria.

Muito da graça do jogo vai morar na (aparente) não-linearidade. Você pode escolher por qual porta começar; qual aventura viver. São lugares muito diferentes entre si, desde os inimigos, o visual ou até mesmo a política daquele cenário. Talvez uma das mudanças mais rápidas de serem notadas é que, como no primeiro, você não necessariamente precisava acertar as notas, mas apenas fugir. Em Everhood 2, ainda temos o tabuleiro com cinco caminhos, meio parecido com Guitar Hero. Porém, existe a possibilidade de absorção das notas desde o início do jogo, o que te possibilita a oportunidade de matar os inimigos em apenas um hit, e de formas diferentes. Se você aguentar tempo o suficiente na batalha e absorver notas o suficiente ou descobrir qual cor que aquele inimigo tem fraqueza. Quando vi pela primeira vez, mexeu com a minha cabeça.

Mesmo que ainda a logo prazo você se torne refém de tentar matar todos os inimigos com apenas um hit, eu não vejo isso como um grande problema, e mais como um desafio, já que muitos deles tem comportamentos realmente bem difíceis de lidar, mesmo jogando no normal. Ainda no combate, Everhood 2 agora possui armamento com animações e atributos diferentes entre si, sendo eles habilidades passivas e mais ou menos afinidade com um tipo de cor de nota. Mas, sendo sincero, não senti tenta diferença entre as armas, nem mesmo subindo o nível delas. Na questão da afinidade ela só diminui a quantidade necessária de notas para fazer alguma ação, seja de cura, dano direto ou dano + quebra de escudo, depende do quanto é absorvido.

Também tem os talismãs, que possuem a função de dar habilidades extras para o nosso humano, desde Desafios de Morte até contestação de dano e você pega eles explorando o mundo por aí, geralmente estão atrás de segredos em que vai tropeçar durante as missões. É muito comum algum NPC te falar uma sequência de números que te levam para algum lugar se você os colocar no elevador do Hilbert Hotel, assim gerando uma dinâmica interessante, como se os segredos fossem um interlúdio entre as aventuras. 

Também vale o destaque para a narrativa do jogo que, sim, possui uma grande história sendo construída, mas ela está mais focado em ter essas pequenas aventuras a cada momento, e ao decorrer do jogo se passa tanto tempo desde que o núcleo principal apareceu que se torna comum você achar que ele está sempre prestes a acabar; um fim sempre eminente, uma ansiedade para a conclusão se instala e não… é apenas mais um núcleo que passou e talvez nem volte. Isso sempre é um frescor. É engraçado como esse jogo é o maior inimigo da monotonia, desde mudanças de gênero e perspectiva até mudança de dimensão, com cenários e personagens ficando em 3D em certas ocasiões.

É digno de nota também que, em Everhood 2, usando do imaginário de um RPG convencional, o jogador é parte daquela realidade. Não só como o jogador, mas como pessoa em si. O jogo leva em consideração que você é um ator lá dentro, uma pessoa que está tomando as decisões, e não apenas guiado pela imersão do que você entende ser apenas uma interação entre pessoa e máquina. Você é apenas uma marionete que vive em um mundo de mentira, uma peça de um show maior do que a sua própria existência. 

E meio que o jogo irá andar nessa premissa e sempre tentar te surpreender de alguma maneira. Por vezes, ele até vai mentir para você. Essa é a peça central do que porque eu acho Everhood 2 um jogo brilhante. Particularmente acredito ser difícil você brincar com a expectativa do jogador, até mesmo para aqueles que não esperam nada em específico. Quero dizer, em um contexto onde jogos já são uma mídia estabelecida e com diversos bastiões, obviamente existem tropos que se repetem, ainda levando em conta o quão próximo do cinema alguns roteiros de jogos estão.

No caso de Everhood 2, os tropos aqui estão realmente direcionados a esses então bastiões desse sub-gênero de jogos inspirados por Earthbound. Ao jogá-lo eu não pude parar de pensar em como ele se assemelha a jogos como Space Funeral que, além de um exercício estético, quase parte daquilo que entendo ser o anti-design dentro dos vidoegames, é também um jogo que fala de uma realidade ideal (principalmente na arte).

(Space Funeral 2010)
Space Funeral (2010)

Space Funeral é mais um desses jogos feitos em RPG Maker, em que você busca combater a corrupção de uma deformação que assolou aquele mundo, mesmo que pareça uma campanha comum e no fim muito contrastante à excentricidade da direção do jogo. E parando para pensar em como jogos no RPG Maker em um certo momento buscavam homenagear os grandes bastiões do gênero, Space Funeral vem para zombar disso, com visuais nada amigáveis.   

E ok, enquanto Everhood 2 respeita certas normas não explícitas do que se conhece para ser um bom jogo, eu acredito que eles conversam quando ambos os jogos quebram convenções estéticas e de game design para passar uma mensagem. Space Funeral diz sobre como não tem como se criar nada perfeito em um mundo de perfeição, até que em seu fim ele se camufla então como um RPG comum, com visuais comuns. Uma mentira exposta, uma realidade que parte dos jogadores gostaria de vivenciar por talvez não gostarem do contato com o diferente.

Mas é que em ambas as experiências o jogador está lá ativamente, quase como em carne e osso para ouvir uma mensagem-mor. Ambos os jogos se desdobram em sua frente sem que você possa fazer algo para reverter ou impedir. Em Space Funeral a busca pelo perfeito se torna inútil; em Everhood 2 a busca pela verdade não tem fim, porque não existe uma verdade aqui. E não, não digo em um sentido direto algo como uma “pós-verdade” onde você acreditar naquilo que quer é mais importante do que a própria verdade, e mais em um sentido que você nunca irá alcançá-la.

Sendo sincero, após 20 horas de jogo e duas telas de crédito, eu não tenho certeza se realmente zerei o jogo, talvez sim? talvez não? É uma parada meio Getting Over It que você pode terminar onde quiser e meio que tá tudo bem? Ou não? Eu realmente não sei. Eu juro que busquei por todos os cantos algo que se aproximasse de alguma resposta: tomar decisões diferentes, refazer momentos inteiros do jogo revirando tudo, e até agora eu não sei dizer se existe uma real verdade, se existe algo confiável em que eu posso acreditar e em consequência passar nessa análise. 

Buscar respostas para aquilo que não entendemos é o que move a humanidade desde o primórdio daquilo que entendemos como vida, e é frustrante não chegar em algum resultado. Talvez tenha e ok, e se realmente não tiver, tudo bem, eu aceito isso como uma batalha que perdi. Não de um jeito em que eu me sinta mal, mas reconhecendo que meu oponente foi sagaz. Eu estou bem com o que recebi e com o que experienciei, foi algo realmente mágico.

No mais, Everhood 2 é uma clássica sequência: mais, maior e melhor. É um dos jogos que eu mais estava esperando jogar. Espero que esse ano, já com o seu nome no imaginário popular, ele se torne ainda maior e tenha o devido reconhecimento do público que faltou em seu título antecessor.

Para além de uma não-convencional experiência de RPG de ação, é uma viagem ao centro do seu ser. A mistura de comédia e existencialismo dá o tom para todo o cinismo envolvente que o texto do jogo traz, e sempre ao passar de uma aventura a vontade de nunca sair de lá é latente. Desde a melancia que parece o Big Boss de Metal Gear Solid até a confabulação de um golpe de estado, existem diversos mundos para ver e sinto falta de todos eles.

E, ao deixar claro de onde vem as suas inspirações, é nítido que Everhood 2 é um projeto que tem muito coração e muita consciência de si e de onde está inserido. Acho importante ter isso em mente quando você finalizar o jogo, funciona quase como uma anagnórise em um roteiro, toda a jornada é ressignificada, mesmo que o significado para mim e para você seja diferente, não existe um certo, mas existe o subtexto.

Imortalidade e verdade são, respectivamente, temas de ambos os Everhood, temas caros a qualquer humano que tente buscar viver fora de suas amarras e, em resposta, o jogo em questão, livre de qualquer pudor, vem te avisar que isso é possível. Desprender das convenções; quebrar as correntes da normalidade, mesmo que em troca da sua alma. Mas saiba que não será um caminho fácil. A verdade é uma trilha a se seguir, e isso nunca acaba em Everhood 2.

Uma cópia de Everhood 2 para PC foi concedida pela Foreign Gnomes para análise no Recanto do Dragão.