Não é todo dia que vemos um jogo como FAITH: The Unholy Trinity. Ele é basicamente uma trilogia de jogos de terror visualmente inspirados na estética do Apple II na gameplay e nas capabilidades do Atari 2600 para suas cutscenes dolorosamente rotoscopiadas. É completamente mergulhado na religião católica e todo o potencial que seus demônios e passagens bíblicas acompanham.
O desenvolvedor quase-solo de Faith é Airdorf (e a distribuidora é a NewBlood), que anda trabalhando na trilogia desde 2014. O primeiro capítulo lançou em 2017 de maneira gratuita, o segundo também gratuitamente em 2019 e o terceiro agora em 2022, vendido como um bundle junto dos outros capítulos e diversos modos extras. Foi uma jornada longa e trabalhosa de desenvolvimento que é representada até dentro das diferenças encontradas entre os capítulos. Mesmo assim, é impressionante o quão conectados eles ainda são.
Ao jogar o novo em folha capítulo 3, conceitos estabelecidos e não explorados desde o primeiro começam à florescer na história, que é lotada de cultos satânicos, exorcismos falhos, padres determinados até demais e, como de costume em filmes de terror, diversos finais ruins. A atmosfera negativa toma inspiração direta de filmes de terror antigos enquanto mistura isso com o pânico sobre satanismo que os EUA estava passando no fim dos anos 80, que é quando o jogo se passa.
Por mais que diversas inspirações de terror formem uma enorme parte da identidade de Faith, até em sua figura do padre inexperiente se metendo em circunstâncias acima de seu conhecimento e capabilidade, a lente pessoal do jogo trás um ar de originalidade não tão comum. Nós seguimos a visão do protagonista John Ward e sua dúvida em relação à seu papel como padre. Faith deixa isso claro desde seu primeiro capítulo: no aniversário do exorcismo falho de Amy Martin onde apenas ela e John sobreviveram, ele volta à mansão da família Martin sem aprovação alguma do Vaticano para terminar o que começou. Daí pra frente, tudo que acontece é consequência deste primeiro encontro misterioso. O jogo inicialmente deixa uma quantia enorme de detalhes em branco para estabelecer o mistério e te fazer questionar o próprio John, que sofre de alucinações constantes.
Eu pessoalmente não curto teorias que dizem que tudo era uma alucinação do protagonista, mas a incerteza plantada no jogador pela narrativa de Faith torna essa uma dúvida constante que afoga a experiência em dúvidas constantes do que é real e o que não é, o que é exacerbado ainda mais com as notas que você acha durante o jogo. Algumas são obtidas naturalmente enquanto você progride, outras obtidas após exorcizar objetos ou pessoas, e outras segredos muito bem escondidos que podem até levar à finais alternativos. Elas estabelecem o tom e pedaços da história tanto quanto confundem e se contradizem, o suficiente para torná-las um pedaço indispensável do tom do jogo.
E que tom… Faith segue um ritmo bem lento, desde sua movimentação sorrateira e lenta até suas pausas de minutos de cada vez para ler as notas e cartas espalhadas pelo cenário. Até quando você morre (uma ocorrência comum em sua primeira playthrough), voltar onde estava muitas vezes te custará alguns minutos. Acredite em mim, eu não tô passando um pano geral para movimentação lenta aqui. Quando joguei The Count Lucanor ano passado, essa foi uma das minhas maiores dores de cabeça com ele, já que requeria que você fizesse backtracking constante em uma mansão estilo Resident Evil enquanto praticamente engatinhava. Já que em Faith você quase sempre está desbravando o desconhecido, a sua movimentação mais serve para estabelecer tensão do que enrolar.
Inclusive eu iria até mais longe para dizer que o ritmo de Faith é uma de suas maiores virtudes. Cada capítulo tem uma forma diferente de apresentar seus desafios. Enquanto o primeiro é solto, considerando que você navega o mapa com triggers semi-aleatórios com apenas três pontos de interesse principais, os outros dois vão deixando a gameplay cada vez mais linear, culminando na obsessão do terceiro em salas de puzzle definidas. Isso espelha a jornada de John de maneira super limpa: ele começa visitando o local do exorcismo falho sem plano ou conhecimento algum à fim corrigir seu erro passado e acaba sendo guiado perfeitamente pelo culto que deu gênese à tudo que ocorreu no passar do jogo. Seu objetivo se torna cada vez mais claro, então sua jornada cada vez mais guiada.
Mas não falo bem do ritmo só por causa da relevância temática, pois na gameplay momento-a-momento, as coisas também se mantém surpreendentemente variadas para um jogo onde suas únicas ações são andar e levantar seu crucifixo para afastar tudo que é profano. Não existe nem um botão específico para interações. Mesmo assim, Faith sempre apresenta novas mecânicas e maneiras de utilizar suas ações principais para te assustar e desafiar. Tipo, existem até boss fights definidas com estratégias e mecânicas diferentes entre si, e diversos puzzles que usam sua movimentação de maneiras inesperadas. O engraçado é que uma grande parte deles também usam inimigos diferentes para servir como tensão extra, o que deixa as coisas ainda mais interessantes.
É impressionante quantos monstros notórios (digo os que recebem cutscenes próprias) possuem ligações diretas com a lore vista nas notas. O porquê de suas existências junto dos finais horrendos que os fizeram chegar naquele ponto são enervantes. O exemplo mais cedo disso é Michael, o cara que corre de quatro como um chupa cabra e te persegue no primeiro capítulo. Logo no início do segundo, você testemunha o que o levou àquela forma horrorosa de primeira mão. Tinha uma chance dessas revelações constantes acabarem dando informação até demais sobre os monstros a ponto de deixar o jogo menos assustador, mas acredito que Faith desvia disso por focar no ângulo trágico das histórias. Quando você vê a origem de Michael, suas perseguições não ficam menos assustadoras, mas sim ganham uma melancolia extra por causa do que o afligiu. São tragédias que adicionam sentimentos valiosos ao invés de arrancá-los do jogador.
Algumas das pessoas possuídas conseguem temporariamente retomar o controle, o que te fornece a chance de ver seus resquícios de humanidade sem realmente poder salvá-las na maioria dos casos. Ou seja, Faith se aproveita de uma das maiores forças do gênero de terror: o ângulo da tragédia.
No fundo, John já sabe que o que aconteceu já aconteceu, então o motivo de sua luta é para impedir os demônios de continuarem suas possessões. Mesmo assim, ele continua querendo ajudar os gêmeos da família Martin e até Amy apesar de suas almas já estarem longe demais para serem salvas. É uma figura tradicionalmente trágica, assim como a “garota final” de um filme de slasher tentando salvar um de seus amigos em vão. O trauma de alguém que viu demais é muitas vezes mais aterrorizante que os outros assassinatos em si. Já que Faith não é um slasher mas sim uma jornada mais pessoal onde não presenciamos tantos assassinatos de maneira direta, eu diria que o trauma de John é o foco maior.
Assim, eu não sou nenhuma autoridade em terror. Gosto bastante de explorar o gênero em ocasião e me interesso de maneira geral nele, mas não engajo tanto com os jogos quanto gostaria. O motivo disso é porque eu realmente não curto a fórmula clássica de survival horror e muito menos a mais moderna de jogos como Outlast e Amnesia. Resident Evil 1 é um bom exemplo… porque eu odiei os puzzles e exploração dele, coisas que vieram a definir o survival horror. Isso acontece porque eu me desconecto completamente da atmosfera quando sou apresentado à puzzles ao menos um pouco complexos. Começo a pensar de maneira técnica para tirar aquilo da frente o mais rápido possível, e assim o jogo vira apenas um exercício monótono de puzzles que odeio solucionar. Sério, por mais que o remake de RE1 seja lindo e tal, eu não consigo sentir nada jogando aquilo.
Por isso acabei amando jogar Silent Hill 3, que possui poucos puzzles no geral (mesmo que ainda tenha um ou outro complicado) e um foco maior em pura exploração e conflito. Pra mim, enfrentar inimigos com recursos limitados já é o suficiente para me assustar. Por isso acabei adorando tanto Faith. Curiosamente, eu diria que por mais que a densidade de puzzles seja maior que em Silent Hill 3, Faith costuma levar uma filosofia mais focada em salas de puzzle ao invés de áreas labirínticas com múltiplos puzzles e soluções espalhados por aí. Além disso, as salas de puzzle não são muito complexas, para ao invés focarem em te punir com ataques lindamente animados ao falhar.
Eu só tinha citado isso no comecinho, mas uau, como Faith é lindo. Não digo só as cutscenes, mas até o jogo em si. Clássico exemplo de limitações criando arte linda. Airdorf disse em um AMA lá em 2018 (quando ele ainda tinha apenas 200 seguidores!) que os gráficos estilo Apple II vieram após algumas iterações de vários outros estilos, e acabou sendo escolhido por refletir como eram os jogos na época em que a história se passa. Ele queria ver o quão assustador poderia ser um jogo de terror tão minimalista em uma época onde temos fidelidade gráfica imensa como nos Resident Evils atuais, e conseguiu.
Até o sound design reflete sua filosofia muito bem. Devido ao quão comprimidos são os efeitos sonoros, é difícil distinguir se os barulhos que você está ouvindo são parte da trilha, sons ambientes ou o áudio de um inimigo nas sombras prestes a te atacar. Diria que o ápice desse caos sonoro é na parte dos apartamentos no terceiro capítulo enquanto você enfrenta o Elevator Friend.
É bem… uh, amaldiçoado? E claro, o jogo não é de todo sério, pois tanto suas cutscenes quanto o cenário é utilizado para piadas. Existem referências e easter eggs à outros jogos (e até lore) da NewBlood como Dusk, Ultrakill e a lendária thread do fórum da Steam que você pode ver abaixo.
No caso das cutscenes, a comédia está nos movimentos e faces que os personagens fazem. No início do segundo capítulo a carinha que o John faz ao se olhar no espelho do primeiro ponto de save é hilária, ao menos em um primeiro olhar. As animações de Michael e o próprio nome e identidade de Gary, uma figura misteriosa que adora falar que te ama em toda oportunidade possível. O jogo possui um senso de humor aguçado e, como gosto de apontar sempre que falo sobre terror, é importante ter em mente que o medo e riso são emoções muito próximas uma da outra. Ambas são involuntárias e difíceis de controlar, e ambas são emoções fortes. Combinando as duas em momentos diferentes, Faith anda a linha tênue entre as duas sem tantos problemas (e evita se tornar apenas uma experiência miserável).
Juro que ainda tenho muito à dizer sobre os três capítulos de Faith, mas trato eles como três jogos diferentes, ou seja, quis evitar spoilers até do primeiro capítulo aqui no texto. É por isso que vou encerrar o texto por aqui.
Airdorf conseguiu criar uma experiência realmente única com Faith após todos esses anos de desenvolvimento. O jogo conseguiu mais um lugar na lista de jogos maravilhosos publicados pela NewBlood ao lado de títulos como Amid Evil, Dusk e Ultrakill, além de mostrar um lado inesperado da curadoria da distribuidora. É uma das experiências de terror mais polidas e cuidadosamente criadas que toquei nos últimos anos, e em breve espero que se junte à outros jogos do gênero na categoria dos que não precisam de introdução.
#RECANTODOSUSTAO2022
Uma cópia gratuita de FAITH: The Unholy Trinity para PC foi concedida pela NewBlood para análise no Recanto do Dragão.