Fear & Hunger — os altos e baixos da Dark Fantasy | Análise

Fear & Hunger é um jogo tão cativante quanto problemático. Admito ser um pouco difícil escrever esse texto porque a terrível realidade é: Nunca existiu e nunca existirá “propaganda negativa”.

Ainda assim, depois de ler algumas análises (principalmente brasileiras) me sinto obrigado a falar sobre o jogo, puramente porque alguém precisa apontar os problemas da obra que aparentemente ninguém quer falar sobre.


ATENÇÃO: Fear & Hunger é um jogo que trata sobre temas sensíveis e contém situações de violência extrema, gore, violência sexual, abuso de substâncias, entre outros; por isso, pedimos que leitores sigam por responsabilidade própria.


Fear & Hunger

Fear & Hunger é um dungeon crawler com elementos de terror, survival horror, roguelike e J-RPG’s desenvolvido por Miro Haverinen/Orange~/Happy Paintings. O jogo conta a história de um dos quatro personagens jogáveis em sua exploração à Masmorra do Medo e Fome. (The Dungeon of Fear & Hunger tem uma sonoridade melhor na garganta, mas ainda assim vou traduzir alguns termos durante esse texto só por diversão.)

Os personagens jogáveis que você pode escolher no começo do jogo são:

  • The Mercenary (O Mercenário)
    • Mercenário, ladrão, assassino… O que trouxer pratas para a mesa. O Mercenário é conhecido por seus truques sujos em batalha e maneiras habilidosas.
  • The Knight (A Cavaleira)
    • Uma cavaleira que segue o caminho dos puros e justos guerreiros. Sendo treinada desde a infância, a cavaleira se sobressai em combate corpo a corpo e com diferentes armas.
  • The Dark Priest (O Sacerdote das Trevas)
    • Por não carregar o fardo da moralidade e da ética, o sacerdote das trevas possui afinidade com magia sangrenta. Entretanto, se dedicar à magia deixou seu corpo fragilizado. 
  • The Outlander (O Forasteiro)
    • Calejado pelos congelantes ventos do norte, o forasteiro é a epítome da sobrevivência. Ele conhece todos os truques para sobreviver até na mais impossível das situações.

Todas possuem estilos de jogabilidade distintos, passados e motivações diferentes que os levam para a masmorra do medo e fome; entretanto, o que todos têm em comum é a busca pelo cavaleiro Le’garde. Outra questão interessante é que escolher um personagem como jogável não significa necessariamente excluir os outros da estória, tanto que é possível encontrá-los ainda em suas jornadas e até talvez unir forças.

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Ao escolher seu personagem você tem a opção de assistir uma intro (onde são ditos alguns pormenores do passado de seu personagem, e você pode fazer algumas decisões envolvendo suas jornadas até o momento, resultando em novos itens, habilidades e fobias iniciais) ou pular tudo e sair com a build “padrão”. Depois disso é só você, a masmorra e sua coragem.

Fear & Hunger não é um jogo fácil. Mesmo escolhendo a dificuldade base (Fear & Hunger) o jogo não vai ter misericórdia nenhuma, e esse é um pouco do charme da coisa. O jogo opera de maneira similar à um roguelike no sentido que é no mínimo esperado que você tente muitas e muitas vezes antes de sequer chegar perto de um final enquanto enfrenta o mesmo desafio, mas com umas mudanças procedurais aqui e ali. No entanto, diferente de um roguelike, a única coisa mantida de uma run para outra (com exceção da dificuldade secreta que é desbloqueada após zerar a primeira vez) é o seu próprio conhecimento. Fear & Hunger não vai te dar nada de mão beijada pelas suas falhas ou vitórias passadas.

Honrando o nome que carrega, suas maiores preocupações durante a run vão ser lidar com o seu medo e sua fome. O jogo consta com 3 medidores: body (corpo), que representa sua vida; mind (mente), que representa sua sanidade/mana; e hunger (fome) que é auto-explicativo. Body é o recurso mais “fixo” entre eles. Contanto que você não seja atingido por armadilhas ou ataques, ele vai se manter fixo, diferente de hunger e mind que vão ser drenados constantemente, mind mais que hunger inclusive, uma vez que ficar menos exposto à luz e usar magias drenam mais rápido sua sanidade.

Nas masmorras seus recursos são sempre escassos, então é uma série de decisões constantes: “Eu devo comer essa carne crua ou tentar achar um fogão para assá-la?”, “Devo dar esse vinho para a criança e deixar meu personagem com uma sanidade menor, ou não deixar o protagonista com medo e correr risco de perder esse party member?”. Fear & Hunger te faz tomar esse tipo de decisão crítica o tempo todo, o que contribui muito para a imersão do jogo e aprofunda a sensação de urgência no decorrer de cada run.

O sistema de combate de Fear & Hunger ainda conta com um twist interessante, ao invés de selecionar apenas qual inimigo atacar (como na maioria dos JRPG’s) Fear & Hunger também te questiona sobre onde atacar. Todos os membros visíveis de inimigos são alvos individuais que podem ser eliminados por armas cortantes, dando a obra sua fama de “O jogo do desmembramento”. Mas vale lembrar que a regra do desmembramento também é considerada para você, senhor jogador, já que inimigos portando armas cortantes também podem arrancar seus membros permanentemente. Isso adiciona uma tensão em todo combate pois existe uma segunda camada na escolha de cada ataque: “Devo focar todos meus ataques no braço do meu inimigo que está segurando um cutelo, ou será que dedico alguns ataques às pernas do mesmo para tirar seu equilíbrio e diminuir drasticamente sua chance de acerto e esquiva? Ou ainda, será que arrisco tudo tentando acertar a cabeça para acabar com o combate o mais rápido possível?”.

Uma questão importante a se ressaltar é que, diferente dos soulsbornes nos quais Fear & Hunger se inspira, o jogo é transparente sobre o quão injusto é com o jogador. Ele não espera que você apenas repita o mantra “Get good” até se acostumar com controles malfeitos, padrões de ataque repetitivos e bugs; Fear & Hunger esfrega constantemente na sua cara que sempre vão existir inúmeros fatores além do seu controle e que tudo que você pode fazer é literalmente torcer para que o pior não ocorra. E como ele faz isso? Através da mecânica de moedas.

Em diversos momentos do jogo, seja para lootear baús e estantes aleatórias, desviar de armadilhas e ataques que te matam com um único golpe ou até salvar o jogo, Fear & Hunger vai te obrigar a fazer uma aposta, cara ou coroa, onde o resultado da moeda vai ditar o sucesso de sua ação. Isso não ocorre o tempo todo no jogo, tanto que em tese existem alguns loots que são fixos e exatamente dois locais no jogo onde você pode salvar sem precisar fazer a aposta. Além disso, o jogo te dá uma mãozinha com uma mecânica chamada de “Lucky Coins“.

O jogo geralmente já te faz começar com pelo menos uma lucky coin e você pode achar mais por aí na pura sorte. Toda vez que o jogo te forçar a escolher entre cara ou coroa, se você segurar SHIFT enquanto escolhe o jogo lança duas moedas simultaneamente, assim, aumentando sua chance de acerto. Isso não torna o jogo exatamente justo, mas te dá uma pequena sensação de controle e mais um elemento para tomada de decisões ao decorrer do jogo.

Boa parte de Fear & Hunger é construído proceduralmente, fazendo com que quase a dungeon toda (com exceção de áreas finais do jogo) seja diferente de run para run, alterando o layout, localização de inimigos e itens disponíveis, o que incentiva bastante experimentação em cada novo começo tanto na montagem de party quanto na customização da build de cada personagem.

Todos esses elementos e outras decisões de estética e criação de mundo elevam a ambientação de Fear & Hunger a outro patamar, tornando ele possivelmente o jogo de RPG Maker mais imersivo que já joguei. A atmosfera sombria e rancida fazem com que quando você encare o vazio ele não apenas te encare de volta, mas sim te engula por completo.

O elefante na masmorra

Depois de comentar sobre todos os aspectos que me levaram a amar o jogo, agora devo falar sobre o que me propus no começo dessa análise, criticar o que ninguém fala sobre.

Fear & Hunger é uma obra mórbida e sombria, neste jogo fazer uma criança fumar ópio não é uma escolha moral e sim uma necessidade. É muito visível que o criador bebe de inúmeras obras do gênero Dark Fantasy e do terror para a construção da obra, e isso não vem sem o seu preço. Não pretendo me aprofundar muito no assunto porque ainda desejo fazer um texto explorando o mesmo mais a fundo, mas fato é, o gênero Dark Fantasy tem um enorme problema com a banalização da violência sexual, e isso é presente e decepcionante em Fear & Hunger.

Fear & Hunger tem uma cena de estupro presente no jogo que por mais que sim, você pode passar o jogo inteiro sem presenciar ela, é 98% de certeza que você vai cruzar com ela nas suas primeiras runs. E meu grande problema não é com o jogo abordar isso como uma temática, mas sim tratar essa violência sexual de maneira leviana apenas como material de choque barato.

E além do mais, essa cena fica ainda extra decepcionante porque nem considerada a pior coisa do jogo ela é. Fear & Hunger é extremamente criativo em mostrar quais destinos mórbidos aguardam seus personagens e eles não só são perturbadores como eles dão ênfase em como aquele mundo opera. O que só torna a cena de estupro algo tão mais desgostoso em comparação com todo o restante do jogo, ela não cumpre um papel em te mostrar como aquele inimigo opera, ela não te mostra nada sobre aquela parte do mundo, ela não te choca com todo o potencial que o jogo demonstra ter em diversos outros momentos. É puramente um gosto amargo na boca e nada além disso.

Meu maior dilema em decidir se eu queria escrever essa análise ou não era saber se eu queria dar palco para isso, não por ser algo extremamente chocante e incabível de ser mostrado a público, mas sim porque é só desnecessário e eu sinto que podia acabar normalizando mais ainda que “Ah, realmente é só uma coisinha que ocorre no jogo e vida que segue né”. Mas depois de ler outras análises eu me senti na obrigação de escrever sobre porque parece que ocorre uma glamourização/superproteção em relação a essas questões na obra e no gênero de Dark Fantasy como um todo.

O jogo ter essa cena (que honestamente? Não é nem de longe tão explícita quanto poderia ser, mas ainda mais explícita do que eu gostaria) não é edgy e irredimível, só é algo chulo e fraco em comparação a todo o resto que o jogo se mostra capaz de entregar. Entendam que o jogo ainda pode ser reconhecido com uma boa obra e ainda ter esse aspecto reconhecido como algo problemático e fraco, tanto que o próprio criador parece reconhecer isso até certo ponto.

Houveram algumas coisas removidas entretanto, não porque elas eram pesadas ou sombrias demais, mas sim porque eu senti que elas estavam levando o jogo para território de meme. Como por exemplo o ataque do “Stinger Thrust” dos guardas originalmente causavam — eerr — …Diferentes status de sangramento durante a batalha. Era um pouco tosco demais. O status ainda está presente no jogo, mas não é tão frequente atualmente.

Miro Haverinen em entrevista ao site dark rpgs

O jogo demonstra potencial para ser muito maior que isso, e honestamente? Já passou da hora de nós começarmos a questionar porque tantos tipos de mídia mostram estupro de forma tão banal pelo choque, existem maneiras muito mais criativas de demonstrar o quão pútrido um ser humano pode ser, de chocar uma audiência, de mostrar o quão vil é o mundo que vivemos. O estupro se tornou apenas um choque infantil que no pior dos casos ainda reforça um olhar masculinizado da cena onde o alvo do estupro é sexualizado durante o ato (Que eu devo enfatizar em defesa da obra Fear & Hunger, não é algo que ocorre durante a cena), nós devemos exigir mais das obras que consumimos e não deixar que essas banalizações se tornem normas porque o mangázinho engraçado dos anos 90 fez uma cena muuuiitooo daora usando isso.

Em suma, Fear & Hunger é uma experiência singular da qual eu não me arrependo de ter tido, mas é importante frisar que o jogo é difícil e contém decisões que devem ser sim questionadas e criticadas, aparentemente o criador aprendeu com o primeiro jogo e em “Fear & Hunger 2: Termina” a violência sexual parece não ter um papel tão grande na obra, mas a veracidade disso será confirmada em um texto futuro.