Green Hell — quando uma simulação de “Bear Grylls” vai longe demais (Análise)

Por mais estranho que pareça, Green Hell é um dos jogos de sobrevivência que se encaixam perfeitamente na categoria “desafiador demais”.

Lançado em 2018 para PC e, posteriormente, para os consoles da antiga e nova geração, este simulador consegue misturar elementos positivos de jogos como Minecraft com partes negativas de jogos como Amnesia.

Posso ter te confundido agora, fazendo uma relação de sobrevivência na mata com Amnesia, não é mesmo? 

Mas sim, a Amazônia (local no qual a obra realmente se passa) pode ser bem mais insana do que acordar em um local desconhecido como no game de terror. Isso se deve a uma série de fatores que podem, ou não, influenciar na experiência do jogador em dizer se Green Hell é um jogo bom ou ruim.

Nesse sentido, durante as próximas linhas você vai ser contemplado com um aprofundamento sobre o universo do jogo.

Ah, vale dizer que não vamos dar dicas relevantes ou macetes para se dar bem durante sua moradia na Amazônia; porém, este texto, que é direcionado tanto para novatos quanto para experts, será bem vindo para quem busca ter um conhecimento maior do Green Hell e sua experiência de sobrevivencialismo.

A sobrevivência como ela é

Green Hell

A experiência de Green Hell não é uma das coisas mais simples e divertidas do mundo, oferecendo desafios constantes do dia a dia de uma vida na mata, o que o faz ser uma experiência longe de relaxante. Além de ter que se preocupar constantemente com a fome e com os três macronutrientes do corpo humano, questões como sono e sede dificultam ainda mais a gameplay.

Outro fato referente a parte dificultosa de Green Hell é a presença dos animais, já que não são poucas as vezes que você vai virar uma “esquina de pedras” e dar de cara com uma onça-pintada prestes a dilacerar seu pescoço.

Ainda, sanguessugas, abelhas, água não-filtrada, febre, quedas, tribos nativas de indígenas possivelmente canibais e mais um punhado de coisas existem dentro do ambiente do jogo, todos eles com uma única finalidade: fazer da sua vida um inferno (e te matar).

Por fim, há a presença da barra de sanidade, que caso você a preencha por completo o personagem começará a ouvir vozes (assim como em jogos de terror como na franquia Amnesia), podendo causar uma morte lenta e dolorosa. 

Este fator faz com que tudo seja ainda mais assustador, trazendo o que seria de fato uma experiência próxima a uma vida dentro de um “inferno verde”.

Certamente não é injogável

Óbvio que todos esses obstáculos naturais podem ser chatos ou frustrantes ao longo da jogatina, porém, eles se tornam superáveis depois de um tempo se acostumando com a atmosfera.

As questões referentes aos animais mortais logo podem ser solucionadas à base de armas, como lanças e arcos.

Já a água do jogo é facilmente manipulável utilizando cocos e sistemas de coleta de água da chuva, além de ser possível encontrar poços com água insalubre (mesmo que isso te garanta alguns adoráveis parasitas no seu sistema digestivo).

Por outro lado, a incansável busca por alimentos pode ser cansativa, já que em nenhum momento (pelo menos durante os 10 primeiros dias) o jogador encontrará um período em que vai parar e pensar “nossa, não tenho nada para fazer agora a não ser me preocupar com achar comida”.

E, inclusive, algumas mecânicas com relação à parte dietética do corpo humano são feitas incorretamente, se seguirmos o padrão real de nutrição. Isso porque quando você está lotado de carboidratos, seu corpo precisa de gordura e, quando não é isso, é a proteína que está baixa. Mas vamos falar mais disso lá pra baixo.

Assim, mesmo com o passar dos dias na gameplay, os alimentos se tornam algo constante que poderia ser mais manipulável, talvez um pouco mais trabalhada.

O modo história é o foco do jogo?

Sendo um jogo de sobrevivência, é normal que existam modos destinados somente a trazer o desafio de sobreviência ao jogador, que deve encarar os perigos daquele mundo sem necessariamente correr atrás de um objetivo específico.

Porém, este game nos apresenta a um modo história com uma narrativa rasa, apesar de ser cativante.

Tendo como objetivo central achar a esposa do personagem enquanto busca uma cura para uma doença mundial, o roteiro serve como pano de fundo para a sobrevivência no meio da mata.

Assim, podemos levar em conta que a narrativa é superficial e não tão presente, servindo apenas como um pretexto para que você explore mais a fundo o “universo amazônico” e não se canse tão rápido da experiência.

Mesmo assim, é importante dizer que não vejo isso como um ponto negativo. Pelo contrário, eu até gostei da maneira como a história é conduzida, conseguindo misturar uma linearidade com o dia a dia de uma experiência de sobreviência nada casual, casando a gameplay com fatores que vão elaborando a narrativa aos poucos.

Por fim, respondendo a questão que abriu este tópico: não considero esse modo como o principal do Green Hell. Por mais que o jogo queira fazer com que você experimente a história proposta, é muito mais interessante sobreviver por conta própria e enfrentar seus desafios no próprios no “mundo aberto” oferecido.

A má distribuição dos carboidratos e a oxidação de gordura mal planejada

Pessoas que entendem melhor sobre nutrição e as funcionalidades do corpo humano podem não concordar (e com razão) dos mecanismos de fome e de macros presentes no Green Hell.

green hell

Isso porque como já foi dito lá em cima, o jogo não tem uma “barra de fome” em si, mas na verdade há três indicadores referentes do que você precisa consumir constantemente:

  • Carboidratos;
  • Proteínas;
  • Gordura.

Tudo bem que faz sentido ser assim, já que isso limita ainda mais suas possibilidades de continuar vivo na floresta, além de trazer um quê de realismo na gameplay. Porém, há particularidades errôneas quanto a esse sistema.

Gordura pode substituir carboidrato por muito tempo

Um dos princípios da nutrição do corpo humano abrange a chance de converter os três macronutrientes principais em energia para ser utilizada em atividades físicas.

Neste quesito, Green Hell entende as coisas de um jeito errado.

Para exemplificar melhor isso e fazer com que você, caro leitor, entenda o que estou dizendo, vou explicar de maneira resumida como nosso corpo produz energia.

Basicamente, há uma hierarquia de consumo de energia realizada pelas nossas células. Dentro disso, a primeira fonte a ser transformada em “gasolina humana” são os carboidratos, seguido da gordura e, por último, as proteínas.

Desta maneira, quando não consumimos o suficiente de um dos três pilares, nosso corpo tem a habilidade de fazer uma substituição pelo próximo.

Por exemplo: se você ficar sem comer qualquer fonte de carboidrato por muito tempo, seu corpo entrará em cetose, um processo no qual ele transformará a gordura consumida em energia, deixando (temporariamente) de lado o consumo de carboidratos.

Se isso fosse seguido no Green Hell, com certeza não precisaríamos nos preocupar com o consumo de carbos, um nutriente altamente presente em frutas e cogumelos.

A distribuição de macros na alimentação é falha

Seguindo a tabela nutricional disponibilizada por agências ligadas à nutrição, pode-se concluir que os macros dos alimentos naturais presentes em Green Hell estão muito incorretos.

Vamos olhar, por exemplo, para o coco, uma das principais fontes de água limpa dentro do jogo que também te fornece uma boa quantidade de gordura.

Se seguirmos a premissa dada pelo game, o coco poderia ser usado livremente nas dietas de atletas e pessoas que querem manter um maior controle sobre o que ingerem.

Isso se deve pois, ao contrário da vida real, no “inferno verde” metade de um coco inteiro fornece em torno de 15 gramas de gordura e de 4 a 6 gramas de carboidratos.

Desta maneira, se considerar que ingerimos cerca de 100 gramas de coco digital (tirando o peso da casca e do líquido), a quantidade dos macros que deveriam ser fornecidos ao player seriam:

  • Carboidratos: 10 gramas;
  • Gordura: 30 gramas.

Além disso, colocando em calorias, o coco teria 400 kcal a cada 100 gramas. 

Ou seja, este fruto na vida real possui o dobro de macronutrientes em comparação com o jogo.

Assim, apenas 100 gramas do fruto ofertaria mais da metade da gordura indicada para um dia de uma rotina saudável (para uma pessoa perdida na selva essa quantidade poderia ser válida para uma semana inteira, visando as funções vitais do corpo humano).

Desta maneira, metade de apenas um único coco poderia ser o suficiente para um indivíduo sobreviver um dia inteiro na mata… Mas isso não acontece em Green Hell.

Enfim, não quero me prolongar no contexto nutricional mal-executado deste jogo, mas a falta de balanceamento na proporcionalidade dos nutrientes é um ponto negativo evidente que poderia ser trabalhado melhor com uma consulta com profissionais da área.

O “Simulador de Bear Grylls”

Não dá para deixar de lado comparações envolvendo o Green Hell com quaisquer séries de sobrevivência na mata.

O jogo lembra bastante algumas situações do seriado Man vs. Wild, produzido pela Discovery, onde acompanhamos as aventuras do explorador Bear Grylls.

Mais especificamente, para quem já assistiu (ou ainda assiste) aos episódios desta série, é comum se deparar com elementos similares dentro do jogo, como a dieta à base de larvas (digna de um episódio florestal do seriado) e o parkour em árvores sobre riachos.

Lost: sim ou não?

Não posso deixar de lado outra conexão de Green Hell com o seriado Lost, que realizei durante as horas de gameplay.

Isso acontece devido, principalmente, à presença de eventos relacionados à sanidade onde o personagem controlado pode acabar morrendo de “loucura”. Assim, eventuais inimigos mentais e coisas irreais acabam atrapalhando e confundindo nossos sentidos.

Da mesma forma que, na série americana, a maioria dos personagens devem lutar contra a ilha ao mesmo tempo em que enfrentam problemas causados pelas próprias mentes.

Além disso, a presença de locais destruídos, restos de embarcações e aviões destroçados (provavelmente por nativos) fazem dos cenários vistos no jogo uma verdadeira adaptação da ilha presente no seriado americano.

green hell

A falta de dicas atrapalha ou ajuda?

Um ponto positivo, pelo menos partindo da minha experiência, é a ausência de dicas extremamente relevantes dentro do gameplay.

É óbvio que o jogo fornece um tutorial (muito bem explicado e dinâmico), no qual o player consegue entender o funcionamento da jogabilidade básica para entender como não morrer tão cedo.

Porém, ao iniciar uma partida, são raras as vezes em que nos deparamos com instruções ou algo do tipo. Na verdade, a partir dos primeiros 15 minutos, isso praticamente não existe.

Há a presença de um livro de registros no qual são disponibilizados opções de fabricação de itens e maiores explicações sobre plantas nativas.

Porém, para conhecer melhor cada instrumento, mecânica e saber se um cogumelo é comestível ou se irá te mandar direto pros portões de São Pedro, o player terá que fazer apenas uma coisa: jogar, experimentar e descobrir tudo por conta própria.

Desta maneira, a experiência se torna mais difícil e extremamente refrescante, sempre contando com elementos surpresas e fazendo com que o jogador pense e repense mil vezes antes de tomar novas decisões.

Isto faz de Green Hell uma bela experiência desafiadora, já que não será fácil planejar seu dia a dia dentro do jogo.

+Leia também: As lições dos videogames sobre foco, recompensas e motivações na vida

O multiplayer recompensador e com maior dinamismo

Por fim, há a presença de um modo multiplayer dentro do Green Hell, permitindo que o jogador entre em um mundo com até outras três pessoas.

Assim como em outros jogos do mesmo gênero, o jogo ganha um ar mais leve e sua sobrevivência acaba sendo beneficiada pela interação com os outros.

Além de protagonizar cenas engraçadas entre você e seus colegas, a procura por comida, água e outros itens especiais fica muito mais simples e veloz.

Desta maneira, o game fica mais agradável e “leve”, trazendo maiores recompensas a riscos menores e contando com um dinamismo que permite ao usuário aproveitar mais horas de gameplay sem repetições constantes.

Afinal, Green Hell vale a pena?

Se colocarmos todas as “cartas na mesa”, dá até para considerar o Green Hell um ótimo jogo de sobrevivência.

Tendo uma pegada parecida ao núcleo de jogabilidade de Rust e The Forest, este game ainda consegue lidar com novos questionamentos sobre sanidade e nativos assassinos no meio.

Tudo isso ao mesmo tempo em que sua fome vai diminuindo a cada ação realizada, fazendo com que seus atos tenham de ser planejados com cautela.

Claro, há pontos negativos que podem afastar certos jogadores mais “casuais”, como a dificuldade de encontrar comida (até em modos mais fáceis) e a ausência das dicas relacionadas a alimentos perigosos e construções eficazes (ou não).

Posso concluir que Green Hell fica longe de ser uma experiência necessariamente ruim, apresentando uma sobrevivência relativamente realista e certamente desafiadora, prendendo alguns e deixando outros desconfortáveis durante suas horas e horas de jogatina.